Cinema: Vidas partidas

Em Vortex, Gaspar Noé narra o dia a dia de uma casal de idosos em processo de senilidade. Com ousadia de partir a tela ao meio, constrói espécie de poesia audiovisual sobre os labirintos da mente, a passagem do tempo e a fragilidade da condição humana

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

O cinéfilo cansado de filmes e séries que são meras ilustrações audiovisuais de histórias essencialmente literárias tem duas boas opções em cartaz, uma no streaming e a outra nos cinemas: o francês Vortex, de Gaspar Noé, está na plataforma Mubi, e o brasileiro Enquanto estamos aqui, de Clarissa Campolina e Luiz Pretti, entra nesta quinta-feira no circuito exibidor.

Vortex (vórtice) narra, basicamente, o dia a dia de um casal de idosos não nomeados, vivendo num apartamento parisiense. Ele (Dario Argento) é crítico e ensaísta de cinema e sofreu um AVC dois anos antes; ela (Françoise Lebrun), psiquiatra aposentada, está entrando num processo de senilidade, possivelmente de Alzheimer.

Poderia ser mais um bom drama sobre a degeneração mental de uma pessoa idosa, como são, cada um à sua maneira, Amor, de Michael Haneke, e Meu pai, de Florian Zeller. O que o torna Vortex singular e estimulante é a sua forma de exposição, ou melhor, o modo inusual como se serve dos recursos especificamente cinematográficos.

As primeiras imagens situam o casal em seu ambiente cotidiano. Eles se olham de uma janela a outra do apartamento e transmitem uma sensação de harmonia e cumplicidade. Juntos, bebericam no terraço um moscatel ou algo parecido, e ele emite uma frase que será recorrente ao longo do filme, o verso de Edgar Allan Poe segundo o qual “a vida é um sonho dentro de um sonho”. Entram imagens em preto e branco de Françoise Hardy cantando “Mon amie, la rose”, que também fala sobre a brevidade da vida. Até aí, tudo parece meio redundante.

Dois mundos

As coisas começam a mudar na sequência seguinte, em que vemos, em plongée, os dois deitados na cama, de pijamas, ele dormindo e ela bem desperta, com a expressão denotando pavor. Aos poucos uma tarja preta começa a cruzar o meio do quadro, de cima para baixo, como se fosse tinta escorrendo, até dividir a tela em duas. A partir daí, o filme será todo narrado assim, com a tela repartida ao meio.

Pode-se especular que essa cisão da imagem corresponde à separação do casal em dois mundos, com a mulher passando a outra dimensão ou frequência, por conta da senilidade. Rompe-se assim a harmonia do início. Mas mais interessante que o possível sentido desse recurso formal, a meu ver, é o efeito múltiplo que ele suscita nos sentidos do espectador, em sua atitude mental e anímica.

Tento explicar melhor. A relação entre as duas metades da tela muda ao longo do filme. Em alguns momentos, elas mostram ações simultâneas em locais diferentes: ele dorme, por exemplo, enquanto ela percorre, meio perdida, os corredores de um mercadinho do bairro. Nesse caso, nossa atenção se volta toda para a metade em que há movimento – da personagem e da câmera. Em outras passagens, há ação nas duas metades, e somos forçados a dividir o olhar e a concentração, como se cada olho captasse uma coisa diferente, ou como se víssemos dois monitores de TV, cada um deles exibindo um filme diverso.

Há ainda cenas em que o ambiente é o mesmo, mas captado por câmeras em posições diferentes, gerando um leve efeito de vertigem, em que ficamos esperando em que instante um dos personagens, ou uma parte de seu corpo, vai “vazar” para a outra metade. E há, por fim, momentos em que um dos personagens cruza com o outro numa porta ou corredor e eles “trocam” de lado na tela.

Labirinto pessoal

Nessa construção dinâmica do espaço, nessa relação cambiante entre o contíguo e o separado, explorando os meandros do apartamento, com seus corredores estreitos e seus cômodos atulhados, o filme de Noé transcende a banalidade da situação que retrata. É a forma desse labirinto, muito mais que os diálogos um tanto óbvios e redundantes, que eleva o relato à condição de poesia audiovisual sobre a passagem do tempo e a fragilidade da condição humana.

De modo acessório, há um diálogo subterrâneo com o próprio cinema, não só pelo ofício do marido, cercado de referências a filmes célebres, mas pela mera escalação dos protagonistas. Dario Argento é o diretor de clássicos do cinema giallo (o sangrento suspense/terror italiano), como O pássaro das plumas de cristal e Suspiria. Françoise Lebrun, por sua vez, brilhou na juventude como atriz de uma espécie de segunda dentição da Nouvelle Vague, em especial em A mãe e a puta (1973), de Jean Eustache.

O argentino-francês Noé disse que resolveu fazer Vortex, saindo de seu registro provocador habitual (Irreversível, Love, Clímax), depois de sofrer uma hemorragia cerebral grave que quase o matou. Argento, por sua vez, só concordou em atuar depois de impor uma condição: que seu personagem tivesse uma amante, o que de fato acrescenta densidade e melancolia ao filme.

Perdidos no mundo

Embora radicalmente diferente quanto ao tema e ao estilo, Enquanto estamos aqui tem em comum com Vortex a virtude de retirar o espectador de sua condição passiva e convocá-lo a participar ativamente da construção da obra, ou de seus sentidos.

A estrutura do filme de Clarissa Campolina e Luiz Pretti é de uma heterogeneidade extrema, misturando registros documentais, home movies e ações encenadas (poucas, aparentemente) para plasmar em poesia cinematográfica os encontros e desencontros de dois exilados que se cruzam em Nova York: o brasileiro Wilson (Marcelo Souza e Silva) e a libanesa Lamis (Mary Ghattas). O que dá sentido dramático a essa colagem são as vozes que se sobrepõem às imagens. Ouvimos a narradora (Grace Passô) e os próprios personagens, lendo suas cartas e diários. Há ainda trechos de poemas e canções, adensando a tessitura do conjunto.

Uma aproximação possível, no cinema brasileiro, seria com o igualmente híbrido Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, em que também existe uma tensão entre imagem e voice over, como se a ficção corresse na banda sonora e o documentário nas imagens, formando uma terceira coisa. Mas Enquanto estamos aqui radicaliza a ruptura da continuidade narrativa, exigindo mais do espectador.

Nova York, Berlim e Belo Horizonte aparecem em fragmentos inabituais, seja porque os locais filmados são pouco conhecidos, seja porque são lugares conhecidos filmados de ângulos incomuns. O importante é que o resultado traduz de modo único a ideia ou sentimento de deslocamento, transitoriedade e incerteza que caracteriza esses personagens apátridas, quase anônimos, perdidos num mundo movediço e indecifrável, em perpétua busca de afeto e pertencimento.

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