Cinema: Um mundo sem humanos
Vencedor do Oscar de melhor animação, Flow é a saga de animais que tentam sobreviver a uma inundação. Do homo sapiens, restam só vestígios. A força do filme é a beleza da simplicidade e manter uma “verossimilhança zoológica”, sem antropoformização de muitos desenhos
Publicado 06/03/2025 às 17:12

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS
Assentada a poeira dos festejos e diatribes, é possível dizer que um dos grandes acontecimentos do Oscar deste ano, além da espetacular conquista de Ainda estou aqui, foi o merecidíssimo prêmio de melhor animação a Flow, de Gints Zilbalodis, que chegou da Letônia como quem não quer nada e derrotou gigantes da indústria como Dreamworks e Disney/Pixar. Com a consagração, o filme ganha uma sobrevida nos cinemas. Quem ainda não viu não deve perder.
Uma das características mais louvadas de Flow tem sido sua suposta “simplicidade”. Mas se trata de uma simplicidade construída meticulosamente, com paciência e talento. Conta-se ali a saga de um grupo heterogêneo de animais que buscam sobreviver a uma inundação repentina, num mundo de que estão ausentes os seres humanos.
Eis aí, a meu ver, o primeiro grande acerto dessa fantasia arrebatadora. Ausente, o homo sapiens só é evocado pelos vestígios que deixou: ruínas de casas, templos, cidades, restos de objetos descartados, barcos, vasilhas, ferramentas, espelhinhos. Trata-se de um mundo pós-humano, em que tais vestígios são ressignificados (passe a palavra da moda) pelos protagonistas: um gato, um cão, uma capivara e um lêmure.
Longe do homem
A outra sacada brilhante, embora seja quase um ovo de Colombo em sua singeleza, foi a de recusar a antropomorfização dos bichos. Cada um deles se expressa com a voz, os gestos e até as expressões faciais de sua própria espécie.
Esse simples procedimento ilumina por contraste toda uma larga tradição dos desenhos animados desde as produções mudas de Walt Disney, qual seja, a de converter os animais em ilustrações do comportamento humano, quase como se fossem gente fantasiada de bicho. Essa tendência (que na verdade remonta às fábulas de Esopo) contamina até mesmo os documentários do tipo “mundo animal”, que tendem a atribuir sentimentos – e até valores – humanos às espécies selvagens.
Na contramão dessa tradição, em Flow procura-se tanto quanto possível manter uma “verossimilhança zoológica”, com eventuais liberdades poético/dramáticas, sendo a principal delas a manipulação do leme de um barco por uma ave secretário (também chamada de serpentário) e por uma capivara.
Claro que, num contexto mundial de exacerbação do ódio e da intolerância, o filme pode ser visto como uma celebração da fraternidade na diversidade. Até a escolha de dois animais domésticos (cão e gato) e dois selvagens (capivara e lêmure) reforça essa ideia. O bonito é a forma audiovisual que ela assume em Flow, ao rimar a primeira imagem – o gato protagonista contemplando seu reflexo na água – com o plano final, que não vou descrever aqui. Ganha mais quem for ver no cinema.
Hitchcock na Cinemateca
O Carnaval acabou, mas o cinéfilo paulistano tem motivo para festejar: começa nesta quinta-feira na Cinemateca Brasileira uma grande Retrospectiva Alfred Hitchcock, com catorze longas-metragens do mestre, entre eles obras-primas absolutas como Psicose, Um corpo que cai, O homem que sabia demais, Pacto sinistro, Janela indiscreta e Os pássaros.