Cinema: Uma chanchada de amor

O melhor amigo narra um reencontro num paradisíaco (e hedonista) litoral cearense. Numa paixão homoerotica, com traços oníricos e de Almodóvar, investiga a solidão humana – uma jornada pelo desejos, pulsões e frustrações, embalada por canções populares Gretchen

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Por José Geraldo Couto, no blog da IMS

O cinema cearense não cessa de nos surpreender por sua vitalidade e diversidade, produzindo filmes relevantes nos mais variados gêneros, estilos e temáticas. Reafirmando o fenômeno, entra em cartaz nesta quinta-feira O melhor amigo, de Allan Deberton, que talvez possa ser definido como uma comédia musical homoerótica romântica.

Essa tentativa de definição sugere algo de Almodóvar. A aproximação não é descabida, mas o que torna singular o filme cearense é sua profunda imersão na cultura popular brasileira, em especial nordestina, e em sua paisagem tropical.

Paraíso hedonista

A história se passa quase toda em Canoa Quebrada, no paradisíaco litoral cearense, onde o jovem arquiteto Lucas (Vinicius Teixeira) vai passar umas férias e reencontra casualmente o amigo Felipe (Gabriel Fuentes), por quem se apaixonara sem sucesso no tempo da faculdade.

O filme acompanhará as ambíguas e desencontradas relações entre Lucas e Felipe, que se tornou um misto de guia turístico e amante profissional à beira-mar. O ambiente em que se dá esse trânsito entre a amizade, o sexo e o amor é uma Canoa Quebrada consagrada ao hedonismo, onde todos parecem viver dia e noite em função da alegria e do prazer.

Nesse ambiente exótico-erótico-onírico, pintado em cores vívidas, sob música dançante de influência caribenha, Lucas parece buscar a si mesmo, tentando entender seus desejos, pulsões e frustrações. É um personagem completo, multidimensional, num cenário meio cartunesco, ou antes chanchadesco.

Dessa fricção entre fundo e figura, entre personagem e ambiente, O melhor amigo extrai muito de seu encanto. Com todo seu humor escrachado, não é um filme frívolo; é uma obra dedicada a investigar a solidão humana – assim como o longa-metragem anterior de Deberton, Pacarrete.

Tradição cultural popular

Aos números musicais marotos e envolventes, soma-se o resgate carinhoso de canções populares que marcaram época nas vozes de Tetê Espíndola, Zizi Possi e Banda Herva Doce, além de Gretchen, que aparece ao vivo para um grande show na boate gay local, num dos pontos altos do filme. O melhor amigo recupera e atualiza, de certo modo, uma tradição que vem das chanchadas, do teatro de revista e passa pelos programas televisivos de auditório, sem medo do kitsch e do exagero.

Na mesma linha de revitalização de figuras marcantes hoje um tanto esquecidas, Mateus Carrieri, ex-ator mirim convertido em ícone LGBT, aparece como amante veterano chegado a um trisal, e Claudia Ohana se destaca como a cartomante que faz Lucas olhar para o interior de si mesmo. Tudo somado, é um filme de amor.

Um parêntese sobre a personagem de Claudia Ohana. Por algum motivo, papéis de videntes ou cartomantes costumam ser atribuídos a atrizes míticas (para escapar do horrível adjetivo “icônicas”): foi assim com Marlene Dietrich em A marca da maldade, de Orson Welles, e foi assim com Fernanda Montenegro em A hora da estrela, de Suzana Amaral. Fecha parênteses.

Em tempo: O melhor amigo é uma espécie de desdobramento do curta-metragem homônimo que o diretor Allan Deberton realizou em 2013, com Jesuíta Barbosa e Victor Souza nos papéis de Lucas e Felipe, dois amigos que iam passar férias juntos em Canoa Quebrada.

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