Cinema: O apocalipse da vez

As férias de uma família são abaladas por eventos misteriosos. O mundo depois de nós é uma reflexão sobre o American way of life e a indústria cultural, expressos em um painel dos “males de nossa época” e na filha que só quer ver o final da série Friends

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

De quando em quando o cinema nos proporciona pesadelos sobre o fim da vida humana na terra. O mais recente é O mundo depois de nós, de Sam Esmail, em cartaz na Netflix.

Seu mérito principal – e talvez também sua fraqueza – é enfeixar numa trama eficiente de suspense uma série de inquietações atuais, da emergência climática ao racismo, da vulnerabilidade cibernética ao nacionalismo fascistoide, do medo do terrorismo às teorias da conspiração. Todos esses temas afloram em algum momento, ainda que nenhum deles seja levado às últimas consequências.

Tudo começa quando uma família nova-iorquina de classe média aluga uma casa isolada em Long Island para passar uns dias de férias perto da praia. Amanda (Julia Roberts) é pesquisadora de marketing, Clay (Ethan Hawke) é professor universitário. O casal tem dois filhos: Archie (Charlie Evans), de 16 anos, e Rose (Farrah Mackenzie), de uns 14. O garoto está com os hormônios à flor da pele e acha tudo um saco; a menina é viciada em Friends e está começando a ver o último episódio da série em streaming quando seu tablet trava, sem internet.

Sinais de perturbação

É o primeiro sinal de perturbação da ordem normal das coisas. Logo virão outros: um gigantesco navio petroleiro que avança sobre a praia e encalha na areia, uma legião de cervos que invade o terreno da casa alugada, etc. Mais importante do que tudo: a visita noturna inesperada de um homem (Mahershala Ali) e sua filha (Myha’la). O homem se apresenta como G. H. Scott, o dono da casa. Está vestido a rigor, pois saiu de um concerto de gala, e não pôde voltar a seu apartamento em Manhattan porque houve um blecaute que paralisou seu prédio e a cidade toda.

Amanda desconfia do homem e de sua história, não quer deixá-lo pernoitar na casa com a filha. Sua desconfiança, o espectador não demora a perceber, tem um motivo inconfessável: o homem é negro.

Não será a única vez em que as credenciais democráticas e humanistas do casal serão testadas ao longo do filme, com resultados variados. Talvez nisso resida o ponto mais interessante de O mundo depois de nós: o abalo no interior dos personagens é tão importante quanto o abalo no planeta. O que faz cada um de nós diante (ou dentro) do apocalipse? Como se comporta em relação aos companheiros de infortúnio?

Do ponto de vista formal, o filme tem algumas opções interessantes. O início abusa, tudo indica que de modo intencional, de uma estética ostensivamente publicitária. As primeiras imagens da casa de férias, moderna e opulenta, parecem uma propaganda de empreendimento imobiliário, com família feliz incluída. Logo ficará clara a intenção irônica do procedimento.

As coisas ficam mais interessantes quando a narração se divide em várias linhas paralelas, acompanhando ora um, ora outro personagem, com graus diversos de suspense em cada uma delas.

Praia, mata, metrópole

Aqui cabe um cotejo (sem juízo valorativo) com outra fantasia apocalíptica recente, Batem à porta, de M. Night Shyamalan, com o qual O mundo depois de nós tem vários pontos em comum. No filme de Shyamalan, a família de férias também recebe em seu chalé a visita inesperada de desconhecidos. Mas tudo se passará de modo concentrado naquele espaço, enquanto o mundo se esfacela do lado de fora. Aqui, ao contrário, a ação se bifurca ou trifurca na maior parte do tempo.

Um ponto forte de O mundo…, a propósito, é o aproveitamento da situação geográfica, alternando praia de mar aberto, mata fechada, rodovia deserta e a vista do skyline de Nova York, sem a necessidade de grandes deslocamentos dos personagens.

Um recurso de que o diretor Sam Esmail abusa é o da câmera alta, em plongée vertical, eventualmente descendo para uma posição horizontal à altura dos atores. Muitas vezes uma tomada é iniciada com a câmera “deitada de lado”, ou de cabeça para baixo, criando artificialmente um estranhamento momentâneo, nem sempre justificado pela condição psicológica ou anímica dos personagens.

Algumas sequências são visualmente poderosas, como aquela em que G.H. foge correndo de um avião que se aproxima em voo rasante (numa referência óbvia à cena análoga de Intriga internacional, de Hitchcock) e se refugia numa casa que acaba tendo os vidros arrebentados por uma inundação de água e areia. Difícil ficar indiferente também ao engavetamento monstro de carros Tesla sem motorista.

Certas passagens, porém, chegam ao limiar da caricatura, como na visita de Clay e G.H. a um individualista irascível (Kevin Bacon), adepto de teorias conspiratórias, que os recebe na varanda com um rifle nas mãos, sob uma tremulante bandeira norte-americana. Só faltou a placa: “Aqui mora um extremista de direita, eleitor de Donald Trump”.

Tão interessante quanto esse painel de males de nossa época, a meu ver, é uma reflexão embutida sobre o lugar da indústria cultural nisso tudo. Ao ser informada sobre a fixação de Rose pela série Friends, a jovem filha de G.H. diz algo como: “É a nostalgia de um mundo que nunca existiu”. Grande parte do cinema de Hollywood foi ou ainda é isso: a crença num American way of life que nunca existiu de verdade. Para muita gente, o verdadeiro pesadelo é tomar consciência disso.

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