Cinema: Filosofia de barricadas na Argentina

O titular da cátedra de filosofia política morreu. O cargo ficará com seu tímido adjunto ou um midiático professor? Entre a sátira social e a melancolia, Puan confronta o pensamento ocidental (de Rousseau a Spinoza) com a balbúrdia de nossa época

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

O principal problema de Puan, de María Alché e Benjamín Naishtat, é seu título, compreensível de imediato apenas por argentinos razoavelmente familiarizados com seu sistema universitário. Puan é o nome informal do departamento de filosofia e letras da Universidade de Buenos Aires, localizado próximo à estação de metrô de mesmo nome. É como, para um paulistano, dizer que “Fulano estudou na São Francisco”.

Esse topônimo é o epicentro de uma “comédia filosófica” que põe em cena algumas das características mais louvadas do cinema argentino: construção narrativa inteligente, sátira social, abordagem ao mesmo tempo sutil e incisiva de grandes questões de nosso tempo, elenco formidável.

Tudo começa quando morre inesperadamente o titular da cátedra de filosofia política, o respeitadíssimo professor Caselli, deixando o departamento acéfalo e os colegas aturdidos. O sucessor natural de Caselli seria o tímido Marcelo Pena (Marcelo Subiotto), seu adjunto durante décadas. Mas ocorre que, de modo igualmente inesperado, chega de volta da Alemanha o midiático, sedutor e narcisista professor Rafael Sujarchuk (Leonardo Sbaraglia), disposto a brigar pelo cargo. Para complicar, Rafael está namorando uma jovem atriz (Lali Espósito), a celebridade do momento.

Ironia e melancolia

Essa disputa acadêmica, opondo homens de personalidades contrastantes, serve aqui como catalisador de embates e ideias muito mais amplos. Durante um par de horas, veremos os temas centrais da filosofia política e existencial ser testados e tensionados nas mais diversas situações: de um “show filosófico” no aniversário de uma madame a uma aula para adultos na periferia; de uma manifestação política de rua a uma conversa com artistas e ativistas nos confins dos Andes bolivianos; de reuniões acadêmicas à ocupação de uma fábrica por suas trabalhadoras.

As contradições sociais, as questões de gênero, a cultura descartável das celebridades, a eterna crise econômica argentina, tudo isso aflora na tela sob um olhar que se equilibra entre a ironia e a melancolia. Ideias basilares do pensamento social ocidental (Rousseau, Hobbes, Locke, Spinoza) são confrontadas com a algaravia de nossa época. Tudo passa pelos olhos e pelos silêncios do protagonista Marcelo Pena, que parece a todo momento se perguntar que diabos está acontecendo com o mundo.

A narrativa é dinâmica, mudando de velocidade e de tom de acordo com as exigências dramáticas, passando com segurança do timing de comédia de costumes para uma cadência mais lenta e reflexiva em certos momentos.

Contra a corrente

Conscientes de que estão fazendo cinema, e não literatura ou discurso político, os diretores constroem cenas visualmente poderosas e plenas de sugestão metafórica, como a do pacato café buenairense “sitiado” por uma manifestação de rua, ou a subida de uma ladeira íngreme por um táxi em marcha-à-ré. O caos do mundo invadindo as reflexões etéreas do professor; a necessidade de inverter o sentido usual do trânsito, equivalente urbano do “remar contra a maré”.

O tango “Niebla del Riachuelo”, citado várias vezes ao longo do filme e cantado pelo protagonista no final, acentua a melancolia portenha e confirma, talvez, o verso de Manuel Bandeira: às vezes “a única coisa a fazer é tocar um tango argentino”.

Nota à margem: a codiretora María Alché surgiu para o mundo como a perturbadora protagonista adolescente de A menina santa (2004), de Lucrecia Martel. Anos depois, passou à direção, estreando em longa-metragem com Família submersa (2018). Seu parceiro de direção em Puan, Benjamín Naishtat, realizou, entre outros, o ótimo Vermelho sol, também de 2018.

Sucesso de público em seu país, ganhador dos prêmios de roteiro e ator (Marcelo Subiotto) no festival de San Sebastián, Puan chega a nós num momento de incerteza e apreensão quanto ao futuro do cinema argentino, diante das ameaças do presidente eleito de extinguir o Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA). No recente festival de Mar del Plata, a comunidade cinematográfica argentina produziu um vídeo poderoso em defesa da instituição. Ele fala por si:

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