Caverna dos Sonhos Perdidos

Werner Herzog lança luzes sobre arte mágica da pré-história e sugere que deveríamos recompor relação com natureza e cosmos

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Por Arlindenor Pedro

Na instigante entrevista que deu ao jornalista Bill Moyers (divulgada em vídeo no Brasil em 1988), Joseph Campbell [leia texto a seu respeito] relata que ficou muito emocionado quando ele e sua mulher visitaram a caverna de Lascaux, no sudoeste francês e interagiram com as imagens dos artistas do paleolítico que deixaram imortalizadas suas obras de arte nas profundezas das grutas, nas suas paredes.

Antes, tinham visitado as catedrais medievais do interior da Europa. Ele, então, aproveitou para fazer um paralelo entre as forças que motivaram tanto os criadores dos belos vitrais dessas igrejas quanto os das imagens rupestres. Os ambientes criados por estes artistas não cumpririam as mesmas funções? Não seriam locais de adoração aos deuses, onde os reflexos do mundo real seriam afastados e as mentes poderiam ser tocadas pelas imagens, levando o observador para o mundo do oculto, do irreal, do fantástico – o mundo dos espíritos?

Levados pelos xamãs, imaginou Campbell, os jovens que se iniciavam na caça desciam às profundezas da caverna e ali, em plena escuridão, que só desparecia com as luzes dos archotes, desenrolavam-se cerimônias de contato com os espíritos presentes nos animais que iriam abater mais tarde. Iluminadas pelo fogo, as figuras desses animais, dispostas ao longo das paredes e aproveitando as protuberâncias das pedras para gerar sensação de movimento, tomam vida e, como num filme, saltam aos olhos. Ao som de músicas rituais e inebriados pelo fumo ervas, chegam ao êxtase e ao desprendimento do mundo lá de fora. É um rito de passagem muito presente nas sociedades primitivas. Campbell deduz que por esta razão as obras, feitas pelos homens do paleolítico, encontram-se, invariavelmente, no fundo das cavernas – onde não existem a luz e o som do exterior. Isto é, sem a interferência do mundo real.

Tais cerimonias tornaram-se incompreensíveis para nós, cidadãos das pólis contemporâneas. Mas são plenamente aceitáveis e necessárias num mundo onde se articulam os conceitos de fluidez (o que torna possível uma parede falar, um animal se manifestar, um homem transformar-se em árvore, etc.) e de permeabilidade (não existem barreiras entre o mundo dos espíritos e o nosso, o chamado mundo real). Em seu êxtase, o xamã eleva-se ao mundo dos espíritos e leva com ele os participantes do cerimonial.

O cineasta alemão Werner Herzog também viveu essa experiência de que nos fala Campbell. Mas em outra caverna, a de Chouvet, próxima ao rio Ardèche, no sul da França. Foi descoberta em 1994, três dias antes do Natal, pelo cientista Jean-Marie Chouvet (de onde vem o nome do lugar) acompanhado dos pesquisadores Cristian Hillaire e Elliete Brunel.

Estavam à procura de uma corrente de ar indicativa da presença de cavernas. Toparam com uma fenda em um grande rochedo que os levou a uma das maiores descobertas arqueológicas de todos os tempos: uma grandiosa caverna, com cerca de 400 metros de extensão, aprofundando-se terra adentro. No seu fundo depara-se com majestosos painéis e inúmeras pinturas, praticamente intactas, com cerca de 30 mil anos de existência. Devido a um deslizamento que vedou sua entrada, há dezenas de milhares de anos, a caverna manteve-se intocada, transformando-se numa verdadeira cápsula do tempo, com a história congelada em um momento.

Herzog, ciente desta descoberta e do seu valor para a humanidade, empenhou-se e negociações com o ministério da Cultura da França e converteu-se no único cineasta que conseguiu mostrar imagens da caverna de Chouvet. Produziu um documentário que tem papel inestimável papel para o debate sobre formação da cultura humana e o papel dos mitos em nossa existência. Denominou-o A Caverna dos Sonhos Perdidos – um título que expressa bem sua visão do que viu e queria mostrar.

O governo francês tinha experiência com os problemas surgidos antes em Lascaux, que teve que ser fechada devido ao mofo criado, nas paredes, pela respiração dos turistas. Por isso, estabeleceu, em Chouvet, uma política de restrição de acesso quase total. A entrada da caverna está lacrada por uma porta que se assemelha à de um banco. A permanência no interior é monitorada, restringindo-se a um curto tempo. Os prazos de Herzog e sua pequena equipe foram restringidos ao máximo: ele só conseguiu licença de filmagem graças ao prestígio que desfruta junto no país, e por se comprometer a tornar o filme disponível ao público francês como elemento de difusão cultural, sem fins comerciais.

Temos um filme muito bem acabado: escrito, dirigido e narrado por Herzog, com imagens em 3D, o que dá à obra caráter espetacular. Merece ser vista: destacam-se a fotografia, a música inquietante do violoncelo do compositor Ernest Reijseger, além do texto recitado pelo diretor, que convida a profundas reflexões. Foge ao clichê dos documentários científicos, possuindo a chancela de um dos cineastas mais criativos do cinema contemporâneo, que sempre encarou seu oficio de forma intuitiva e como parte da sua própria existência, legando uma obra extensa, onde a realidade funde-se à ficção.

Participante do movimento do Cinema Novo alemão, influenciado pela Nouvelle Vague francesa e pelo Cinema Novo do Brasil, amigo e admirador de cineastas e artistas brasileiros, como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Milton Nascimento, e outros, Werner Herzog produziu grandes clássicos do cinema pós-guerra, filmando várias obras na América do Sul. O brasileiro certamente conhece Aguire – A Cólera dos Deuses (de 1972, que retrata a natureza humana submetida a um processo-limite de tensão provocando o caos e total descolamento com a realidade) e Fitzcarraldo (de 1982, que vive a determinação de um alemão disposto a mover um barco montanha acima, para concretizar a utopia de ver sua ópera encenada em plena Amazônia). Ambos filmes têm elenco grandioso, com elementos estéticos inesquecíveis. Destaca-se, sem dúvidas, o polêmico ator Klaus Kinski, amigo-inimigo de Herzog. Filmes com a marca registrada do diretor, inclusive com seu humor ácido e desconcertante nas falas de alguns personagens.

Em determinado momento do documentário sobre a caverna de Chouvet, com a câmera acompanhando as sobras e luzes que emanam das figuras postas nos murais, um dos cientistas pede aos visitantes silêncio total, para que o som local se destaque. Chegamos a ouvir o bater do coração dos visitantes. Herzog propõe, então, a seguinte questão: ¨será que escutamos nossos corações, ou o dos artistas que pintaram nessa caverna? Seremos capazes de compreender a visão dos artistas através desse abismo de tempo?¨

A câmera sai da caverna e, ao som de musica incidental, nas imagens em 3D, tomamos contato com o entorno, a exuberância do vale do rio Ardèche, e um pórtico de pedra chamado Ponto D’Arc. Herzog diz: “há certa áurea de melodrama nesta paisagem (o rio, o marco, as árvores), retirada de uma ópera de Wagner ou de uma pintura do romantismo alemão. Seria essa a nossa ligação com eles? Esta representação da paisagem como um evento operístico não pertence apenas ao romantismo: os homens da idade da pedra podem ter tido a mesma percepção, ao retratar essa paisagem.”.

Esta é também a minha opinião.

Fica claro, é plenamente perceptível, que perdemos hoje a integração com a totalidade do cosmos, com a natureza. Somos seres dissociados da totalidade, vivendo uma vida partida que se contrapõe ao mundo natural. Na escalada da nossa história, na busca do conhecimento, do esclarecimento, fomos nos afastando do mundo mágico das incursões fantásticas de nossos ancestrais, tornando-nos escravos dos ditames da ciência. Para nós, qualquer movimento no terreno da magia tornou-se ridículo, pois os tachamos como próprios de sociedades primitivas e sem cultura. Mas, observando tais murais, atentando para a elegância dos cavalos e outros animais da Caverna de Chouvet, percebemos que existe um artista em cada um de nós, em cada ser humano. Como exercer essa arte num mundo tomado pela mercadoria? Como integrar-se à passagem, se todo nosso tempo foi tomado pela economia, que dirige o nossas horas e nossa alma?

Associamos a arte ao dinheiro e ao valor no mercado. Isto se faz com pintura, musica, cinema: tudo, enfim, o que possa pertencer à “indústria cultural”. Herzog associa a arte das cavernas a movimentos grandiosos, como os que nos deram Schiller e Goethe. Ele tem razão, pois a manifestação artística está associada ao mundo em que foi gerada. Um movimento, como o romantismo alemão é um momento único: deu-se quando almas sensíveis fizeram aflorar sua arte a despeito das amarras sociais, avançando para um novo tempo. A percepção do ambiente estava presente tanto para os artistas alemães, quanto para os do paleolítico. Mas a força da mercadoria e do dinheiro separa hoje o homem da natureza e o impede de ter com ela uma relação direta. Daí a atual crise do processo criativo, que vaticina a morte da arte.

Platão nos propõe que saiamos da caverna para conhecer a realidade, onde está a luz do sol. Mas Sócrates sugere que somos como um rebanho de carneiros, que precisam de um pastor para sobreviver. Propõe, então, que o pastor (aquele que sabe) conduza as nossas vidas. Sairíamos da caverna, porém veríamos os dias com os olhos dos outros (como fazemos no dia-a-dia com os “especialistas” dos meios de comunicação, que nos “explicam” o que ocorreu e ocorrerá), acentuando nossa postura de mera contemplação no mundo.

Ao contrário, acredito que devamos voltar à caverna e, pelas mãos do xamã (nesse caso o artista) experimentar o êxtase diretamente, vivendo a sensação da inter-relação com a natureza e seus elementos míticos – como os jovens caçadores, dos quais nos falou Joseph Campbell. A forma de escaparmos da intermediação do mercado e do dinheiro (que se interpõem entre o homem e a natureza) é chegarmos a uma relação direta com o cosmos e experimentarmos nossas emoções num processo direto de vida-vivida. Afinal, cada sensação na relação com o mundo é única, pois certamente cada jovem caçador reagia à sua maneira aos estímulos dos espíritos da caverna.

Serra da Mantiqueira, junho de 2012.

 Arlindenor Pedro (email | blog) é professor de história, funcionário público e especialista em projetos educacionais. Anistiado por sua oposição ao regime militar, atualmente dedica-se à produção de flores tropicais na região das Agulhas Negras.

> Edições anteriores da coluna:

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5 comentários para "Caverna dos Sonhos Perdidos"

  1. Saudações Carlos Fuser,
    Excelente comentário este seu, a parte que mais gostei foi a definição dada para ateísmo: “é apenas uma ausência, um sentimento que falta (reprimido pela razão), seja uma espécie de privilégio, uma marca de superioridade.”
    Tudo de bom para você… até os próximos comentários…

  2. José Frid disse:

    Belo texto. Vi o filme do Werner Herzog e também gostei dele. Você propõe a volta à caverna, com a mediação do xamã, para experimentar o êxtase diretamente, vivendo a sensação da inter-relação com a natureza e seus elementos míticos.
    Passados quase 30.000 anos desde que aqueles desenhos foram feitos, ainda precisamos de xamãs? Ainda podemos (ou devemos) ver a natureza como nossos ancestrais a viam?
    O sol já foi Deus, os deuses já controlaram os raios, os trovões, as chuvas, a fecundidade, o fogo, o vento, o mar, as colheitas, as doenças, etc. Ainda precisamos de deuses? De Deus e seus representantes?
    O êxtase não pode ser alcançado diretamente, o ser consigo mesmo? Ou a pessoa e a obra do artista?
    O Dynisson propõe que nos vejamos como “parte da natureza, antes que seja tarde”, deixando de sermos “escravos dos ditames da ciência”. Tarde para quê? A evolução do homem nesses trinta anos foi exatamente na direção de se afastar da natureza, de entendê-la, de domá-la, de nos salvarmos dela. Salvarmos? Sim! Integrado à natureza o homem fica submetido aos seus ditames, vira parte indiferente da cadeia alimentar, vive (mal) até uns trinta anos, abatido por toda espécie de doenças, parasitas, animais, fomes, etc. Graças à ciência não precisamos mais adorar o sol …
    O Carlos propõe que em vez do sol adoremos religiões e seus representantes. Para quê? Assim como os antigos adoram o sol com o temor de ele nunca mais voltar e reinar a noite eterna, alguns homens hoje adoram deuses de diversas religiões, com o temor da vida não mais voltar e reinar a noite eterna para cada ser. Será que nada mudou nesses 30 mil anos?

  3. Carlos Fuser disse:

    Gostei muito do artigo do Arlindenor Pedro. Também concordo com o comentário do Dynisson. Mas tem mais: o “encontro com a totalidade do cosmos” não se faz apenas pela arte. Todos os dias, milhões de pessoas empreendem esse encontro, nas diferentes religiões. Cada mantra, cada oração, cada cântico pode conduzir o fiel, seja qual for a religião, a esse encontro. A arte também está presente, mas não como objeto de contemplação, mas servindo de portal entre o mundo cotidiano e o mundo dos espíritos. Religião, arte e vida cotidiana se encontrando na “totalidade do cosmos”. As matronas carolas praticam esse encontro em cada terço rezado, assim como os evangélicos, os carismáticos, os umbandistas e até os espíritas, com todo o seu racionalismo! Mas, a tudo isso, intelectuais positivistas torcem o nariz, fazendo comentários sarcásticos às escondidas. Jornalistas e médicos ainda acreditam que o ateísmo, que é apenas uma ausência, um sentimento que falta (reprimido pela razão), seja uma espécie de privilégio, uma marca de superioridade.

  4. “tornando-nos escravos dos ditames da ciência.” Concordo e por essa linha de pensamento, diria que: “todo tempo é tempo de revolução” e á arte proporciona isso aos homens… “viver para além de seu próprio tempo, propiciada pela capacidade imaginativa e criativa”. Estas são acionadas pela inspiração. A natureza favorece inspiração. Precisamos nos vê como parte dela, antes que seja tarde.

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