O pensamento de Silvia Federici, por suas tradutoras brasileiras

Coletivo Sycorax apresenta as ideias (e o processo de tradução) de Reencantando o Mundo, livro recém-publicado, e das demais obras da pensadora italiana publicadas no Brasil. Quem apoia nosso jornalismo concorre a dois exemplares

Reencantando o Mundo foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 2018, pela editora PM Press. O livro reúne artigos escritos por Federici ao longo de 20 anos, nos quais a intelectual italo-americana provoca a interpretação de conceitos marxistas sob a ótica feminista. “Federici voa pelos oceanos, viaja em ônibus sacolejantes (…) e conversa com pessoas comuns, especialmente mulheres, na África, na América Latina, na Europa e na América do Norte (…) Como mulher e feminista, ela observa a produção dos comuns nos trabalhos cotidianos de reprodução”, escreve Peter Linebaugh, historiador e colega de Federici. 

Lavar, abraçar, cozinhar, consolar, varrer, agradar, limpar, animar, esfregar, tranquilizar, espanar, vestir, alimentar os filhos, ter filhos e cuidar de doentes e idosos. Federici analisa que não há comuns sem comunidade, e não há comunidade sem mulheres. 

O livro é o terceiro da autora lançado no Brasil pela Editora Elefante, parceira de Outras Palavras, após O Calibã e a Bruxa (2017) e O Ponto Zero da Revolução (2019). O primeiro foi a grande apresentação de Federici ao Brasil. Sua análise sobre a caça às mulheres consideradas bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho da época mercantilista tentou evidenciar “a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confinou as mulheres ao trabalho reprodutivo”, segundo suas próprias palavras. 

Já em o Ponto Zero, “um lugar de perda completa mas também de possibilidades”, Federici discorre sobre momentos históricos importantes para o feminismo anticapitalista e anticolonialista, sob a premissa de que “só quando todas as posses e ilusões foram perdidas é que somos levados a encontrar, inventar, lutar por novas formas de vida e reprodução”. 

Dada a complexidade do pensamento de Federici, a tradução minuciosa de suas obras torna-se imprescindível para a apresentação de seu pensamento ao público brasileiro. O Coletivo Sycorax foi responsável pelo trabalho em todas as publicações da autora pela Editora Elefante. Em conversa com o Outros Quinhentos, as tradutoras contam um pouco sobre a experiência. 

Como o livro Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns se relaciona com a obra de Silvia Federici?

O primeiro grande marco da trajetória de Silvia Federici foi o seu trabalho no coletivo feminista Wages for Housework (Salários para o Trabalho Doméstico), fundado em 1976. Formado no contexto do movimento sindical italiano, o coletivo advogava pela visibilização do trabalho doméstico, majoritariamente executado por mulheres, como um elemento indispensável (porém não pago) da produção capitalista. No cerne desta questão estava a diferença entre o trabalho produtivo (que gera o produto comercializável) e o trabalho reprodutivo (limpar, cuidar, amar) dentro do pensamento de esquerda. O coletivo argumentou que o trabalho reprodutivo permanecia invisível e não pago, por ser considerado “natural” e “afetivo”. Daí o famoso adágio “o que vocês chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”. 

Outras Palavras e a Editora Elefante sortearão entre os apoiadores do nosso jornalismo dois exemplares de Reencantando o Mundo. Também serão disponibilizados descontos de até 25% no site da editora. O formulário para participar do sorteio será enviado por e-mail. As inscrições ficarão abertas até a terça-feira (26/04), às 15h.

Federici continuou a questionar e complementar a tradição marxista na sua obra mais importante, Calibã e a bruxa. Nele, ela fez uma pesquisa histórica pelos documentos da inquisição europeia – e a sua posterior implementação nas Américas – para construir um paralelo entre o processo de cercamentos na Europa e a caça às bruxas. Os cercamentos são parte do que Karl Marx chamou de acumulação primitiva (ou originária), que ele aponta sendo como a origem da riqueza das elites capitalistas. Contrariando a teoria liberal da mão invisível do mercado, Marx celebremente argumentou em O capital que a acumulação de riquezas do capitalismo aconteceu no fim do feudalismo, quando os soberanos cercaram as terras ancestrais dos seus vassalos, incorporando as terras comuns dos camponeses e forçando-os a se integrar à força de trabalho capitalista, sem a qual eles não poderiam mais sobreviver. 

Federici argumenta que a caça às bruxas foi também um fator fundamental deste processo. Enquanto as elites asseguravam que toda a população fosse absorvida como força de trabalho por meio dos cercamentos e da criminalização da mendicância, as mulheres foram vítimas de um processo de difamação e posterior criminalização das suas atividades produtivas interpretadas como “bruxaria”, o que as obrigou a integrar o universo produtivo capitalista como força de trabalho doméstico. Ela conclui que a acumulação primitiva do capitalismo não só agiu sobre os territórios campesinos, como também sobre o corpo das mulheres, expropriando-as de sua autonomia reprodutiva. De certa forma, Calibã e a bruxa explica e reconstrói historicamente o processo que causou as condições de trabalho repudiadas pelo coletivo Wages for Housework.

Em Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns, o processo intelectual que Federici iniciou nos anos 70 se completa. Neste livro, a autora se concentra na questão dos comuns, espaços de produção coletiva que questionam os sistemas de valores capitalistas. Ela argumenta que o capitalismo trava uma guerra constante e por vezes invisível contra os saberes, os valores e os produtos que resistiram ao seu monopólio. Ao longo do livro, ela faz um mapeamento global de iniciativas e associações que resistiram a esse processo (movimentos campesinos da África, resistência indígena nas Américas), além de apresentar, no caso brasileiro, uma crítica ao modelo de crescimento econômico contraditório do Partido dos Trabalhadores. 

Neste último livro, Federici nos incita a pensar em formas de resistir ao “desencantamento” capitalista, que apaga o sagrado, destrói a terra e esgarça os laços sociais, fazendo com que o desenvolvimento capitalista pareça a única forma sensata de pensar e experimentar o mundo. Este desencantamento, diz ela, é um dos motivos que impedem que o nosso descontentamento se transforme em ação política. A sedução das inovações prometidas pela tecnologia invisibiliza cada vez mais os verdadeiros processos de produção capitalista, que ainda dependem e obtêm seu lucro do trabalho precário, do extrativismo ambiental e da violência. Tal sedução não nos permite enxergar o processo de empobrecimento, de desacumulação de saberes ancestrais e riquezas naturais pelo qual estamos passando. 

Neste sentido, o trabalho reprodutivo como uma forma ainda relativamente alheia à cooptação capitalista pode ser uma chave para entender como resistir a ele. Em nossa opinião, o processo de reencantamento do mundo proposto por Silvia Federici desfaz algumas das visões binárias com as quais o capitalismo constrói os seus sentidos: público versus privado, doméstico versus produtivo, rural versus urbano, tecnológico versus arcaico. 

Como foi a experiência de tradução para vocês e qual a relevância de traduzir os livros de Silvia Federici para o público brasileiro?

No encontro com os movimentos feministas e de mulheres de outros países da América Latina e da Espanha, entramos em contato com ideias que inspiraram a nossa organização. Foi assim que o Calibã e a bruxa chegou às nossas mãos e foi do processo de tradução desta obra para o português brasileiro que o Coletivo Sycorax surgiu em 2016. 

Para nós, a prática da tradução coletiva não se resume à produção de um texto traduzido, envolvendo também formação intelectual e política. O processo tradutório é um exercício de diálogo – não apenas com o texto, mas com os outros sujeitos envolvidos – e uma experiência de gestão coletiva. O método coletivo de tradução é especialmente construtivo no contexto da tradução de obras feministas entre mulheres, pois permite alinhar conhecimento teórico e prático sobre feminismo. Além disso, a tradução é um processo que vai desde a escolha do título até a movimentação coletiva com o texto e os paratextos, engajando formas de circulação que questionam as atuais condições de acesso ao conhecimento. 

A tradução de Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns se desenvolveu em um formato diferente das duas traduções anteriores feitas pelo Coletivo Sycorax. Este projeto teve início no final de 2019 e contou com a participação de vinte mulheres, tendo que ser adaptado para o formato remoto devido à pandemia da Covid-19. Além de propormos discussões sobre os termos e conceitos específicos a serem traduzidos, encaramos a tradução como uma ferramenta militante e de formação política teórica e prática. Partimos, assim, de uma concepção de tradução “coletiva” em direção a uma tradução “comunizante”, em busca de novas formas de politizar as práticas e o conhecimento construídos no processo tradutório. 

Nossas traduções dos livros de Federici coincidiram com um momento histórico e político chave no Brasil, o impeachment da primeira presidenta eleita, Dilma Rousseff, e a consequente crise econômica, política e social trazida pelos governos Temer e Bolsonaro. Tal trabalho nos permitiu entender a relação entre a misoginia que fomentou as articulações do impeachment e o desmantelamento das políticas sociais e ambientais rapidamente articuladas pelos governos neoliberais que o sucederam. Se o trabalho reprodutivo é o ponto zero da revolução porque representa a resistência ao monopólio de saberes capitalistas, faz todo sentido que os movimentos que avançam na desapropriação de terras indígenas, na precarização da força de trabalho e no ataque às reservas ambientais brasileiras tenham se unido com um slogan machista como “tchau, querida”. Autoras como Silvia Federici nos permitem entender o feminismo não na sua versão liberal, individualizante, mas como uma força de resistência fundamentada historicamente em práticas políticas coletivas.

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