De onde vêm os bebês reborn?

Polêmica em torno das “mães” de bonecos hiper-realistas diz muito sobre a maternidade real e normativa da cultura influencer. Nela, amor e afeto entram em cena em busca de curtida e publis – bebês vivos devem parecer bonecos; bonecos, um ser vivo. Há algo de maquínico em ambos casos

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Nas últimas semanas o tema dos bebês reborn viralizou na internet, ou pelo menos na minha timeline. Fui atravessada por muitas perguntas sobre a prática reborn mas principalmente sobre a reação diante de tal prática. A surpresa, o assombro, o estranhamento dos usuários das redes sociais diante de algo denominado como “bizarrice”, “anormal”, “doentio”. O que seria o normal e saudável, então?

Ensaios, artigos, postagens, vídeos e reportagens de TV abordaram o tema com tom semelhante; a prática traria benefícios para carências emocionais, traumas e frustrações em relação a maternidade mas a perda do limite entre realidade e brincadeira significaria um risco para a saúde mental. Cada caso é um caso. As reflexões que circulam nas redes focam na singularidade como parâmetro de avaliação da prática com os bebês reborn. Ponderação importante, uma vez que qualificar a prática como genericamente negativa significaria perder a chance de observar sua complexidade.

No entanto, há algo do “genérico”, no sentido de como tal prática se dissemina, se replica e se prolifera que aponta para as subjetividades desse nosso tempo de redes sociais. Seriam elas criadoras da demanda de bebês reborn? Não, mas elas adensam uma cultura da performance da vida íntima, sempre no limiar do documentário e do encenado, da espontaneidade roteirizada, das relações subordinadas a captura da câmera do celular, da cena vivida como sinônimo de compartilhamento nas redes, da diluição entre experiencia e simulação, simulação e experiência. A experiencia não é simplesmente capturada pela câmera mas simulada para ser capturada. Na lógica das redes, é somente a partir desse modo de captura da cena simulada que as experiências parecem ter legitimidade. Cena capturada para ser experienciada. É ilusão achar que algum dia houve experiência sem simulação, sem mímese, sem cena a priori, na qual nos encaixamos, confrontamos, desconstruímos e reinventamos, mas agora, nas redes, há um “plus”; a fantasmagoria de um público em potencial.

Quem nunca viu (ou mesmo já fez) aquela selfie onde a pessoa documenta-se a si mesma no abraço amoroso com um bebê? Isso quer dizer que o abraço foi menos experienciado? Não, mas quer dizer que ele tem uma intenção que interpela a legitimidade da experiência; ser visto, ser curtido. Amor e afeto como cena, como roteiro ansioso por visualizações e curtidas, aquela gramática de reconhecimento das redes. Há, portanto, um tipo de cuidado, um tipo de maternidade, um tipo de exposição e reconhecimento de vínculo afetivo sendo validado porque viraliza (ou não) na internet. Esse parâmetro de pertencimento nas redes, cria uma universalidade, um sujeito genérico digital, que é porque existe no digital. É a partir desse lugar “genérico” de participação e performance social-digital – onde as singularidades em torno da maternidade e da organização do cuidado são homogeneizadas (mais do que nunca) – que observo a prática com os bebês reborn.

E daí vêm uma avalanche de perguntas. O que tá por traz da reação necessariamente negativa diante do bebê reborn? Que significante ele oferece à uma sociedade organizada (também) a partir das redes sociais? Seria um espelho? Com o que se surpreendem aqueles que rotulam a prática reborn como “bizarra” e “anormal”? Por que nos perguntamos se é “saudável” ou não? À qual demanda de mundo a prática reborn responde? À que tipo de maternidade ela responde? Que mãe e que bebê é possível performar através da prática reborn? Que mãe e que bebê tal prática mimetiza? O que seria a prática reborn senão uma paródia hiper-realista de uma maternidade afunilada pela lógica das redes? Por que se estranha a mãe reborn e nem tanto aquelas postando cada suspiro de seus filhos “reais”? A qual realidade estão sujeitas as crianças continuamente compartilhadas na timeline de seguidores?

Talvez a inércia responsiva às câmeras performada pelas crianças, acostumadas com um celular sempre testemunhando cada passo, não seja tão diferente dos olhos (sem olhar vivo) dos bebês reborn. Por uma oposição eles se encontram. De um lado bebês vivos que precisam parecer bonecos, do outro bonecos; que precisam parecer vivos. Há algo de maquínico em ambos. Talvez o estranhamento estridente da comunidade digital diante da prática reborn normalize a ficção que inspira pessoas a quererem bebês bonecos. Talvez a realidade encenada, a maternidade espetacularizada nas redes, a incansável tarefa de promover experiências de cuidado transformada em manual de vendas, seja capaz de produzir um tipo de desejo: ser mãe de um boneco basta!

É assim que o estranhamento diante dos bebês reborn escancara um sintoma da sociedade que normalizou um formato de maternidade que virou produto, faz tempo. Mesmo que a relação com bonecas seja antiga, a prática com os bebê reborn inaugura um tipo de brincadeira que ultrapassa o lúdico, a ficção e transborda um hiper realismo que responde a demanda de um tipo de performance de maternidade celebrada nas redes sociais.

Mas quem disse que a maternidade não é ficção? Quem disse que a realidade que a prática com os bebês reborn mimetiza não é uma invenção? De que realidade estamos falando? Bom, se há uma realidade inquestionável na maternidade é aquela do tropeço, do inusitado, do erro, da falha, da falta, DA FALTA, do desconhecido, do que não se pode prever, precipitar, antecipar, encenar. Uma mãe (seja lá quem for desempenhar essa função) está sempre diante da tarefa de desidealizar a maternidade, justamente porque nela há pelo menos dois sujeitos em formação. De um lado o sujeito que se pretende na função materna com suas expectativas, memórias e história, e do outro o bebê que chora, sente fome, frio, calor e cresce atravessado por satisfações e faltas nunca antes experimentadas. Há conflito.

Apesar de a maternidade aparecer nas redes como status, posição fixa, cena, identidade, na realidade ela se impõe como construção singular da função materna. O que as redes sociais nos oferecem como conteúdo digital a ser produzido e consumido é a maternidade que vira cena pra ser curtida e compartilhada. Na contemporaneidade digital é difícil dissociar a maternidade de sua presença nas redes e toda uma gramática de pertencimento e reconhecimento que a lógica dos seguidores empreende. Mães bem sucedidas nas redes são aquelas que viralizam com dicas e tutoriais de cuidado, educação, saúde e etc. Acontece que a maternidade não é instagramável. Mesmo que a frase de Winnicott possa até virar estampa de camiseta passando pela sua timeline, a mãe “suficientemente boa” não é o que o algoritmo quer. Ele quer performance, regularidade de posts, a ininterrupta produção de conteúdo e de preferência com o bebê na cena, porque é ele que captura nosso olhar. Mas a complexidade da função materna não cabe em uma síntese de post. Ufa! A maternidade é tortuosa, imprevisível. A maternidade é frustrada e produz frustração em uma jornada onde aprender a lidar com a falta é uma via de mão dupla. Da mãe pro bebê, do bebê pra mãe e idealmente de todas as pessoas que atravessem essa relação. A maternidade é uma experiência cheia de vazio.

O que a prática com os bebês reborn nos mostra não é tanto sobre o desejo de pessoas quererem a todo custo experienciar a maternidade, mas sobre um tipo de sociedade que afunila as possibilidades de estar no mundo dentro do registro de um tipo maternidade. É como se a experiencia do cuidado e da relação com a infância estivesse encerrada em uma cena fixa, congelada, como aquele sorriso das muitas selfies que capturam olhares inertes nas redes.

Há algo na prática reborn que parece reafirmar, como paródia, um tipo de maternidade pasteurizada, produzida para virar post, linear o bastante para compor o infinito acúmulo de imagens homogêneas das redes, aquela repetição do mesmo, sem diferença. De certa forma, o bebê reborn encena a paródia de um tipo de maternidade que se pretende imune a desidealização. Diante da mãe, o bebê reborn é um boneco e por mais realista que possa parecer, ali não há pulsão, ali não há falta, apenas uma superfície que recebe (sem resistência) as projeções de alguém que encena um tipo de maternidade.

E encena pra quem? A presença de bebês, crianças e (principalmente) mães nas redes passa a ocupar papel importante no dinamismo de um mercado de anunciantes e de marketing digital. Cativam e capturam os olhares ávidos por uma nova imagem nas redes e isso faz toda a diferença para a economia da atenção. Ter um bebê segue sendo um troféu, como sempre foi em uma sociedade que circunscreve o lugar da mulher pelo da maternidade, por um tipo de maternidade. Mas nas redes esse troféu ganha um novo dinamismo. Bebês são agora embalagens de uma matéria-prima que garante visibilidade e, se for bem feito, até pode proporcionar pra mamãe alguma projeção profissional em um mundo de extrema precarização. Se ele não falar, não chorar, não cagar, não sentir, não demandar, melhor ainda. A “maternidade” virou um ramo da cultura influencer que dinamiza as redes com dicas de cuidado e todo um menu de produtos e serviços associados a ela. Nas redes, o cuidado é majoritariamente um mercado e muito pouco um processo. O que se performa como influenciadora, denominada muitas vezes de “instamom” é um estilo de vida, um tipo de vínculo familiar, um tipo de bebê, um tipo de mamãe, um tipo de relação performada com realismo e espontaneidade instagramável.

É inevitável associar o crescimento da prática com os bebês reborn e a cultura influencer. Cultura que encara cada aspecto da vida íntima como palco de uma cena que atrai a atenção de anunciantes, product placements, publis e toda uma dinâmica do marketing digital. A maternidade está em alta nesse mercado e sua narrativa é pujante nas redes. Qual é a cena que se repete, que se replica, reproduzida como infinita variação do mesmo? Fotos e mais fotos, textos confessionais, tutoriais, receitas, brincadeiras, salas de parto transformadas em estúdios de filmagem, chás de bebê organizados como shows de pop-stars que ainda não nasceram, mamães e bebês felizes em cenas muito bem decoradas e toda uma infância que precisa caber na lógica das selfies, roteirizada para uma performance na praça pública digital.

Agora com os bebês reborn qualquer um pode participar do mundo digital como mãe, produzir conteúdo, viralizar, fazer um parto ao vivo em um programa de TV e até ser patrocinada por uma marca sem nem mesmo precisar passar pela tortuosa experiência da maternidade, digamos, com fluídos, choro, faltas e demandas passíveis de frustração. Nas redes sociais parece não haver falta e essa ausência de vazio, que está na própria mecânica algorítmica de produção acelerada e ininterrupta de dados, transborda para nossas subjetividades, produz nossas subjetividades. Nesse sentido, arrisco dizer que o tipo de maternidade que as redes sociais celebram é aquela onde a falta não tem vez. É isso o que a prática com os bebês reborn parece nos contar. As pessoas que não puderem ter filhos, que tiverem um trauma de perda ou que não quiserem parir e cuidar de um sujeito em eterna negociação com suas pulsões, poderá, mesmo assim, participar do grupo identitário “mães”. Tem pra todo mundo, tudo é possível. Essa é a promessa.

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