Zema aposta na secessão?

Há algo muito grave na fala xenofóbica do governador de MG. Sob Bolsonaro, Brasil aderiu a convenção sobre o futuro dos países, após sua divisão. Por que quase ninguém ratificou o documento? Qual sua relação com a extrema-direita adepta às armas, violência e separatismo?

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Por Evandro Menezes de Carvalho e Raul Bradley Cunha, na Revista Fórum

Um país soberano deve ter a capacidade de defender a sua integridade territorial, seja de ameaças externas ou internas. Não por acaso, o artigo 1º da Constituição Federal dispõe que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. Contra as ameaças estrangeiras à nossa integridade territorial e, portanto, à nossa soberania, temos as nossas leis e as forças armadas; contra aqueles que incitam discursos separatistas e discriminação regional dentro do país, temos todo o aparato de justiça e a força policial.

O Brasil tem conseguido assegurar há mais de 100 anos a soberania sobre seu território continental contra ameaças externas. Não temos conflitos de fronteira com os nossos países vizinhos. Um feito diplomático notável. As fronteiras dos países não são um dado da natureza, mas conquistas políticas de seus governantes e seus povos – e que precisam ser reafirmadas continuamente. Contudo, no âmbito interno há sinais preocupantes de discursos que incitam o ódio contra a união nacional.

As recentes declarações do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, em relação ao Norte e ao Nordeste do Brasil causaram espécie e repercutiram mal por todo o país. O assustador, entretanto, é que tal postura, longe de ser um ato falho, foi um ato consciente. E nos autoriza a questionar se este ato não é parte de um projeto político da extrema direita e que foi enfraquecido com a vitória de Lula em São Paulo, capital, e em Minas Gerais, demonstrando que o discurso xenofóbico e separatista, ainda que tenha grande número de adeptos nos estados do Sul e Sudeste, está longe de obter unanimidade até mesmo naqueles Estados da federação.

O que nos leva a cogitar que a extrema direita do sul e sudeste do Brasil tem um projeto separatista não são simplesmente as divagações do governador de Minas, mas o conjunto da obra e dos pronunciamentos públicos de seus representantes políticos e apoiadores nos últimos anos.

De fato, passou despercebido pela grande mídia que um dos primeiros atos de Bolsonaro um mês após ter assumido a presidência do Brasil foi ter depositado junto ao Secretariado-Geral das Nações Unidas o instrumento de ratificação da Convenção de Viena sobre Sucessão de Estados em Matéria de Tratados que entrou em vigor para o Brasil, no plano internacional, em 9 de março de 2019. A promulgação do texto desta Convenção no direito brasileiro se deu por meio do Decreto 10.214, de 30 de janeiro de 2020. Importa salientar que a referida Convenção foi firmada em 23 de agosto de 1978 e que o Congresso Nacional somente a aprovou em 28 de novembro de 2018 (Decreto Legislativo n. 166), quando Bolsonaro já havia sido eleito presidente.

De que trata tal Convenção? A sucessão de Estados ocorre sempre que houver substituição de um Estado (Estado predecessor) por outro (Estado sucessor) no exercício da soberania sobre parte ou a totalidade de um território. A dissolução da antiga União Soviética deu lugar a vários países independentes. A Iugoslávia se desintegrou e assim Bósnia e Herzegovina, Croácia, Macedônia, Montenegro, Eslovênia e Sérvia tornaram-se estados soberanos. Em 2008 foi a vez da Sérvia ver Kosovo – uma província sua – declarar-se independente. Kosovo contou com o reconhecimento dos Estados Unidos e da União Europeia, embora seu estatuto de país soberano não seja aceito pela maioria dos Estados do mundo, incluindo aí o Brasil. O fenômeno sucessório entre Estados tem profundas implicações políticas, econômicas e jurídicas para os governos e populações envolvidas. Países terceiros também se preocupam com as consequências de tal evento na defesa de seus interesses na relação com os Estados envolvidos na sucessão.

Apenas 22 países haviam ratificado a referida Convenção antes do Brasil. Dentre eles Bósnia-Herzegovina (em 1993), Croácia (1992), Estônia (1991), Moldávia (2009), Sérvia (2001), Montenegro (2006), Eslovênia (1992), Iraque (1979) e Ucrânia (1992). Da América do Sul, somente o Equador. Chile, Paraguai, Peru e Uruguai assinaram a Convenção, mas não a ratificaram. Estranho que um país como o Brasil, que se orgulha de sua unidade nacional e territorial, cujo caso de sucessão de Estado foi em 1903 com a compra do território do Acre, então pertencente à Bolívia, tenha confirmado seu vínculo jurídico à Convenção. Estados Unidos, Rússia, França, China, Alemanha, Itália, Espanha, Índia, Japão, Inglaterra, México, Canadá e tantos outros países sequer assinaram o tratado.

Qual interesse está por trás da adesão do Brasil a um tratado internacional que interessava, sobretudo, aos novos Estados Nacionais surgidos no final do período colonial, e daqueles que surgiram após o fim da Guerra Fria no leste europeu? Alguns destes países nasceram em decorrência de problemas sérios na construção da unidade nacional por parte do Estado predecessor. Interesses econômicos estrangeiros também foram as razões pelas quais populações inteiras foram separadas umas das outras. Segundo a convenção, em seu preâmbulo, “outros fatores podem conduzir a casos de sucessão de Estados no futuro”. Ninguém casa pensando em se separar. E só os mais realistas aceitam a possibilidade da separação e assinam um pacto antenupcial que estabelece antecipadamente as regras sobre a divisão dos bens do casal. Ao ratificar a Convenção, o Brasil parece ter feito um pacto antenupcial e aceito a possibilidade de haver em seu território um divórcio regional que implicaria em novo rearranjo espacial de sua soberania. Lula faria bem em denunciar a Convenção, retirando o Brasil daquele grupo de países que pareciam destinados ou sentem-se ameaçados pela sombra da separação.

Fiquemos de olhos bem abertos pois os adeptos das armas, da violência e da guerra podem estar cultivando sob nossos olhos uma guerra de secessão inédita em nossa história republicana.

Evandro Menezes de Carvalho é doutor em direito internacional pela USP e Professor de direito internacional na UFF e na FGV Direito Rio.

Raul Bradley Cunha é advogado e Mestre em Teoria do Direito pela UFPE.

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