Uma poeta uterina

A mulher e o feminino são centrais no novo livro de Angélica Freitas, que com graça fortalece o deboche da padronização e dos valores generalizantes

Por Gianni Paula de Melo, na Revista Continente

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A mulher e o feminino são centrais no novo livro de Angélica Freitas, que com graça fortalece o deboche da padronização e dos valores generalizantes

Por Gianni Paula de Melo, na Revista Continente

Lembro bem quando surgiu, para mim, a expectativa em relação ao livro da Angélica Freitas. Durante os meses de agosto e setembro, ela participou da seção Correspondências, no site do Instituto Moreira Salles, trocando missivas com Fabrício Corsaletti, numa das mais divertidas colaborações que passaram por lá. Em seu primeiro texto, o poeta perguntava se a nova cria da gaúcha ia mesmo se chamar Um útero é do tamanho de um punho e ela, na carta seguinte, confirmaria.

“Que título!”, eu pensei na hora.

Quando a publicação chegou às minhas mãos, em outubro, ela já era a de poesia mais esperada do ano (para esta que escreve, claro), muito por eu estar envolvida com as reflexões sobre gênero e por serem exatamente a mulher e o feminino tópicos centrais na criação do livro de Angélica. Entretanto, e obviamente, o mais marcante na escritora não é “a causa”, mas as formas que ela ganha nas suas construções poéticas nada solenes.

Desde Rilke-Shake, o humor pouco óbvio – às vezes com certa dose de nonsense – e, por isso mesmo, provocativo chamou atenção como importante elemento da sua poesia. Em Um útero é do tamanho…, a graça fortalece a contestação; há, de certa maneira, um deboche da padronização, dos valores generalizantes que selam o nosso estar-no-mundo. A fuga de Amélia com a mulher barbada, a mulher de valores – dos investimentos na bolsa -, ou a mulher em construção – “um conjunto habitacional”, “todo rebocado”, “com buracos demais” – são alguns exemplos de representações inesperadas, justamente por iluminar uma pluralidade de comportamentos e personalidades.

Curiosamente, um dos meus poemas preferidos desvia deste eixo temático que havia me seduzido de antemão. Ítaca brinca com o clássico, o mito, o quase intocável do humanismo. Põe a ilha de Odisseu, belamente cantada por Constantino Kavafis, na rota do turismo: “se quiser empreender viagem a ítaca/ ligue antes/ porque parece que tudo em ítaca/ está lotado/ os bares os restaurantes/ os hotéis baratos/ os hotéis caros/ já não se pode viajar sem reservas/ ao mar jônico (…)”. Pura blasfêmia literária, de muito bom gosto.

O texto homônimo ao livro, devo concordar com Corsaletti, é o ponto mais alto da obra de Angélica. Ao menos, dentre tudo que já li dela. O fôlego é completo: na construção de imagens, de sentidos e de sonoridades. Uma sequência de socos, os que o útero não pode dar. E para que serve um útero quando não se fazem filhos? Lembro que foi já neste verso que precisei de uma pausa, ainda na primeira página, e pensei na hora: “Que poema!”.

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Foto por Bel Pedrosa

Foto por Bel Pedrosa

Sou meio poeta-quadrinista”, avalia a escritora.

Em conversa por email, Angélica Freitas falou brevemente sobre o processo de criação de Um útero é do tamanho de um punho; ela também assina a seção Bastidores do Suplemento Pernambuco de novembro, onde conta com mais detalhes este percurso. Leia aqui.

CONTINENTE: Depois de ter se debruçado sobre as questões de gênero e criado a partir destas inquietações, conseguirias esboçar uma resposta sobre o que é ser mulher?

Angélica Freitas: Depois dessa incursão pelo feminino, voltei com uma boa notícia: qualquer brasileiro, acima de 18 anos e quites com a Justiça Eleitoral, pode ser mulher. As inscrições estão abertas no site do Ministério da Saúde por tempo indeterminado. Infelizmente, essa iniciativa ainda não contempla indivíduos de outros gêneros do reino animal (no momento, contudo, estão sendo analisados pedidos de três bípedes da espécie Struthio camelus. Já que as mulheres possuem duas pernas, isso facilita o processo).

CONTINENTE: No livro, agregada às reflexões de gênero, notamos a forte presença do corpo e da sexualidade. A tua poesia é precedida por leituras teóricas nestas áreas que te interessam?

Angélica Freitas: Antes de começar a escrever alguns poemas, pesquisei textos na internet sobre a mulher, porque queria uma diversidade de registros. Foi importante porque meu objetivo era ver como esses textos estavam escritos, com que palavras, se havia algum preconceito, uma ideia generalizante por trás. E depois fui trabalhando isso, intuitivamente, nos poemas. Mas não li teoria de gênero: aí teria um livro diferente. Seria outra proposta.

CONTINENTE: Como foi o processo de elaboração de Um útero é do tamanho de um punho? Você se considera uma escritora disciplinada?

Angélica Freitas: Sou uma disciplinada espontânea. Acredito que você deve dar uma ajudinha à Musa: ter um caderno e uma caneta por perto, se dispôr a escrever todos os dias, no mesmo horário… Dedicar um período do dia para isso. Costuma funcionar. Parece óbvio, mas escrever também é prática, é como tocar um instrumento. E, quanto mais você escreve, mais tem vontade de escrever. Tem mais ideias.

CONTINENTE: O poema que dá nome ao livro surgiu de uma experiência de encerramento de gravidez que você acompanhou. Teus textos costumam estar ligados àquilo que você experiencia na vida prática?

Angélica Freitas: Sim. Por exemplo, uma vez, quando morava em São Paulo, vi uma faixa na rua com a inscrição “Família Vende Tudo”. Fiquei pensando… e escrevi um poema sobre uma família que vendeu tudo mesmo, até o limoeiro, o cachorro, que era cego de um olho, o avô. Tenho outro poema inspirado por uma faixa, que é o Sashimi. Era uma propaganda de um curso de formação de sushimen. Talvez um dos grandes baratos de escrever poesia seja isso, tudo pode virar um poema. Tem épocas da minha vida em que escrevo muito a partir da observação, sento numa praça ou num café e mando ver. É como desenhar. Sou meio poeta-quadrinista.

CONTINENTE: Você acredita que a poesia é uma arte ainda muito sacralizada? E dessacralizá-la é importante?

Angélica Freitas: Eu me pergunto se alguém já escreveu sobre a influência do cristianismo, da Bíblia, na nossa ideia de poesia. Às vezes fica muito claro para mim que, muito do que passa por estética e ética na poesia, tem fundo religioso. Tem que ver isso daí.

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