Uma Lava Jato em Portugal?

Renúncia do primeiro-ministro socialista, por suposto esquema de corrupção, contém erros do Ministério Público, suspeitas genéricas e alvoroço da velha mídia. Quem surfa na conjuntura é a ultradireita, que capitaliza a crise política

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Por Carlos Hortmann, na Jacobin Brasil

Quando circularam as primeiras notícias sobre a demissão do premiê português, António Costa, e a queda do seu governo, muitas questões foram levantadas. Qual o motivo que o governo de maioria absoluta do Partido “Socialista” (PS) caiu? O que aconteceu? Sinteticamente, no último 7 de novembro ocorreram diversas buscas e apreensões no Palácio São Bento, a residência oficial do chefe do governo – sendo encontrado mais de 75 mil euros em dinheiro vivo –; em outros ministérios e na sede da cidade de Sines. 

Na operação executada pela Polícia de Segurança Pública (PSP) a pedido do Ministério Público (MP), foram presos provisoriamente o chefe de gabinete de António Costa, Vítor Escária, e o “conhecido melhor amigo de Costa”, Diogo Lacerda Machado, um advogado e lobista, além do prefeito de Sines.  A investigação procura desmontar uma suposta teia de favores entre empresários — como da Start Campus e projetos ligados à exploração do lítio e a produção de energia com hidrogênio — e os suspeitos citados. 

As acusações iniciais eram de corrupção, prevaricação, tráfico de influência e oferta indevida etc. Em resumo, nos parece mais um caso “normalizado” de lobby no rol na história dos Estados capitalistas. Aos olhos de muitos, a decisão de António Costa de se demitir pareceu bastante despropositada, principalmente, porque as suspeitas sobre o primeiro-ministro pareciam bastante vagas e genéricas, como descreve o comunicado do Ministério Público. 

O que é a crise portuguesa?

Nesse sentido, podemos dizer que existe uma certa “tradição política” do campo social-liberal para esquerda em Portugal, que diante de qualquer suspeita de corrupção, afasta-se da vida pública – como também alerta Rui Abreu. Um pouco diferente da cultura política brasileira, na qual agir assim seria, para o senso comum, “assumir a culpa”. 

Contudo, há outros elementos que precisam ser sinalizados, o governo de maioria absoluta do PS liderado por Costa, sofria grandes desgastes político e pressões sociais, como as greves de mais de um ano dos professores, o Sistema Nacional de Saúde (SNS) com falta de médicos e afins. 

Somavam-se a isso dois problemas mais transversais, como a inflação galopante na zona Euro e a questão da habitação, na qual Lisboa se tornou uma das cidades europeias mais cara para se viver. Entre outros fatores envolvendo o governo e os seus ministros. Já se especula que a demissão do primeiro-ministro tenha surpreendido a própria Procuradoria Geral da República (PGR).

O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, aceitou o pedido de demissão de António Costa, contudo, gerou um compasso de espera de dois ou três dias, pois, diante das opções de se encontrar um novo chefe do governo até o final da legislatura ou dissolver a Assembleia da República e convocar novas eleições. 

Para primeira hipótese, até se sondou o ex-ministro das Finanças e atual presidente do Banco de Portugal — equivalente ao banco central —, Mário Centeno, mas Rebelo de Sousa decidiu avançar para novas eleições marcadas para 10 de março de 2024. Isto é, o governo liderado por Costa ocupará o cargo até lá, o mesmo só sendo demitido efetivamente após a aprovação do Orçamento do Estado.

Ministério Público na ofensiva

No avançar dos dias, foram identificadas diversas inconsistências e erros por parte das partes da investigação MP. Segundo a CNN Portugal, os três procuradores e os agentes teriam se enganado na hora de fazer a transcrição da escuta telefônica, onde Lacerda Machado teria se referido a António Costa Silva, ministro da Economia, e não ao primeiro-ministro, que lhe é quase homônimo. 

Em resumo, confundiram os nomes. O outro erro foi associar uma portaria de lei que beneficiaria a empresa suspeita (Start Campus) ao ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba, investigado no processo, contudo, o ato administrativo em si não estava sobre a responsabilidade do então ministro – sendo juridicamente impossível tal relação. 

Tanto que o juiz de instrução criminal concluiu que por hora o MP não conseguiu apresentar provas efetivas para os crimes de corrupção e prevaricação, apenas para tráfico de influência e o seu correlato para os supostos corruptores, afastando, assim, as suspeitas de António Costa

O prefeito de Sines, por sua vez, foi posto em liberdade sem qualquer acusação, assim como Machado e Escária com restrições de saída do país e fiança. A maioria das medidas solicitadas pelo MP foram rejeitadas pelo juiz, esse somatório levou a cúpula da PGR/MP a ter uma reunião com os procuradores da “Operação Influencer” na tentativa de dissipar essa chuva de questionamentos ao Ministério Público de uma suposta “politização da justiça”, que as instituições de investigação do aparelho estatal não estavam a ser imparciais, conforme determina a ilusão liberal.

Nesse contexto, a questão que emergiu é se essa operação jurídico-policial não tinha ares de “Lava-jato”. Embora não se possa ser taxativo nesse sentido, para quem conhece a história recente do Brasil parece muito familiar ver vazamentos seletivos do processo em andamento, a mídia procurando amplificar que o grande problema seria a corrupção e, por vezes, se apresentando como porta-voz do MP. 

É claro que os projetos do lítio e do hidrogênio são volumosos para a economia portuguesa, que é semiperiférica, com baixíssima industrialização e diversidade produtiva, mas aparentemente isso estaria fora do interesse geoestratégico global. Contudo, métodos muito parecidos com a Operação Lava Jato parecem ter sido utilizados, apontando para uma interferência mais intensificada do sistema judicial na economia e na política. 

As direitas estão capitalizando a crise

Nesse sentido, uma pergunta incontornável é quais são as forças políticas que mais ganham nessa conjuntura?  Sem poucas margens para dúvidas, os partidos mais à direita desses moderados socialistas: o Partido Social Democrata (PSD), a Iniciativa Liberal (IL) e o Chega (CH). Enquanto o PSD é muito similar ao PSDB, a IL é a versão lusitana do Novo e o Chega é, por sua vez, o partido neofascista em Portugal, irmão ultramarino do bolsonarismo. 

Dessa lista, o Chega, partido liderado por André Ventura, é o maior beneficiado eleitoral, mas sobretudo, porque tem conseguido mobilizar um bloco social de aspirações reacionárias, construindo um caldo cultural típico, no qual os fascistas se apresentam como os “antissistema”, os que dizem querer colocar fim ao status quo, aqueles que vivem uma cruzada anticorrupção, muito parecido ao que o Bolsonaro fez em 2018. 

A investigação que derrubou o governo de António Costa — amplificada pela mídia que ignorou muitos problemas fundamentais na saúde, habitação, inflação e afins — trouxe o moralismo abstrato do combate à corrupção como uma das grandes causas do empobrecimento dos trabalhadores em Portugal. Sendo que os trabalhadores imigrantes, ao lado dos portugueses de etnia romani (cigana), tornaram-se alvos cada vez mais constantes e numerosas agressões racistas, para além da discriminação sistemática que já sofrem. 

As últimas pesquisas indicam que o Chega terá por volta de 50 deputados no Parlamento. pouco mais de uma em cada cinco cadeiras, portanto, a ter papel decisivo na formação de um novo governo, que tende a ser uma “gerigonça de direita”, um sinal preocupante. Mas o cheguismo quer mais, ele desejar reconfigurar o sistema político e o papel do semipresidencialismo português.

Carlos Hortmann mora em Portugal e é professor, filósofo político e historiador.

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