Internet: um caso de sucesso e liberdade

Carlos Castro, secretário de Extremadura que liderou o projeto

.

Como uma pequena região espanhola implantou projeto que leva computador, software livre e banda larga para todos, inclusive no povoado mais longínquo.

Por Igor Ojeda, em ARede

Vem da localidade com o menor Produto Interno Bruto (PIB) da Espanha continental – e uma das menos desenvolvidas da Europa Ocidental – um dos mais bem-sucedidos processos de democratização das tecnologias de informação. A Comunidade Autônoma de Extremadura, no Noroeste espanhol, tem uma superfície menor do que a do estado do Rio de Janeiro e população inferior à de Goiânia (GO). Mas seu exemplo inspira iniciativas em todo o mundo. Tudo começou em maio de 1999, quando o governo da região, juntamente com a Associação de Universidades Populares de Extremadura (Aupex), colocou em ação o Plano de Alfabetização Tecnológica (PAT), cujo objetivo era universalizar a utilização de novas tecnologias entre os habitantes.

“Foi um projeto fundamentalmente associado ao desenvolvimento regional porque Extremadura era, e é, uma das regiões mais pobres da Europa. Não tinha nenhum desenvolvimento industrial, a maior parte do território era agrícola e de reserva natural”, explica Carlos Castro*, que durante nove anos foi diretor-geral da Sociedade da Informação da Junta de Extremadura, um dos órgãos responsáveis pela implementação do PAT. Segundo ele, o então presidente da Junta de Extremadura (na Espanha, os chefes dos governos regionais são chamados de presidente) Juan Carlos Rodríguez Ibarra se deu conta de que, se o poder público optasse por impulsionar a industrialização, toda vez que se alcançasse certo nível de desenvolvimento este nunca seria suficiente, pois as demais regiões sempre estariam à frente. Então, conta Castro, Ibarra surpreendeu todo mundo com um plano que propunha: “Para alcançar o futuro, temos de colocar computador nas salas de aula”.

Foi o começo. Não demorou para que os responsáveis pela implementação do projeto – entre eles, Castro – optassem pelo uso do software livre: mais barato, eficaz e, como o nome diz, livre. Surgiu então o GNULinEx, o programa de código aberto de Extremadura. Nesta entrevista, Castro explica que logo constataram, por exemplo, que os professores eram capazes de moldar o sistema a seu gosto, algo impossível no mundo dos códigos fechados.

Você foi um dos responsáveis pela experiência de democratização da Tecnologia da Informação em Extremadura. Como foi a implementação do Plano de Alfabetização Tecnológica (PAT)?

Carlos Castro – Foi um projeto fundamentalmente associado ao desenvolvimento regional porque a Extremadura era, e é, uma das regiões mais pobres da Europa. Não tinha nenhum desenvolvimento industrial. A maior parte do território era agrícola e de reserva natural. O problema é que, principalmente na segunda metade do século 20, perdeu metade da população. Nos anos 1940, havia cerca de 2 milhões de habitantes. Hoje, é de aproximadamente 1,2 milhão. Por falta de perspectivas, essas pessoas tiveram de migrar para outras partes da Espanha ou para o exterior. Quando veio a democracia, no final dos anos 1970, colocou-se em marcha um processo de regionalização no país, e o governo regional tomou o controle de sua própria região.

O governo regional pertencia ao Partido Socialista Operário Espanhol?

Castro – Sim, presidido por Juan Carlos Rodríguez Ibarra. Houve uma circunstância interessante: quando a Espanha entrou na União Europeia, em 1986, os programas de convergência começaram a ser feitos regionalmente. O governo regional executava boa parte dos fundos de desenvolvimento da União Europeia. No meio dos anos 1990, em uma crise, começou-se a discutir qual modelo de desenvolvimento deveria ser implementado. Nesse momento, o presidente Ibarra, uma pessoa com muita visão, colocou a história nos seguintes termos: se nós reforçarmos a industrialização, levaremos 25, 30 anos para chegar a um nível aceitável, e, quando chegarmos, pode não haver mais ninguém na região.

Então, em 1998, quando diziam que sua vida política estava se esgotando e duvidavam se ele voltaria a se candidatar, Ibarra surpreendeu todo mundo. Criou um projeto fundamentado na seguinte ideia: para alcançar o futuro, temos de colocar computadores nas salas de aula. Assim, criou um projeto pelo qual cada sala de aula do sistema educativo tivesse computadores. Naquele momento, eu trabalhava na Universidade de Extremadura e fui convidado a administrar o projeto, desenvolvido em 2000 e 2001. Em 2002, tínhamos os primeiros centros preparados, com jogos para computadores. Nos demos conta de que se tivéssemos que adquirir as cerca de 100 mil licenças necessárias para o projeto ser levado a cabo, além de pagar computadores, o edifício, os móveis, teríamos de dar 30 milhões de euros a alguns senhores. Por isso, montamos uma equipe técnica paralela para encontrar uma alternativa ao Windows. Em abril de 2002, apresentamos o programa em software livre e o distribuímos. As aulas com computadores começariam em outubro. Durante esse período, formamos os professores. Em setembro, vimos que os professores haviam adaptado o programa para as suas necessidades. Isso nos encheu de força. Essa foi a arrancada do projeto. Em seguida, o esforço feito na educação foi projetado para os telecentros, para o sistema de saúde. Foi mais lento no sistema administrativo porque deu muito mais trabalho substituir os sistemas tradicionais utilizados pelos funcionários. Na educação, que não tinha computadores, e todos já começavam com o software livre, foi mais fácil. Recentemente, houve mudanças na política regional, mas o projeto educativo vai muito bem, no sistema de saúde está funcionando. Nesse período, a região incorporou cerca de 100 mil computadores, todos com software livre. Os que deram mais trabalho foram os 10 mil ou 15 mil que eram da administração.

Para implementar essa política, vocês utilizaram os fundos da União Europeia?

Castro – Uma parte da União Europeia, mas também houve uma parte de compromisso político regional. Em 2002, foi feito na Espanha algo parecido com o que está acontecendo agora. O governo nacional do Partido Popular, do primeiro-ministro José María Aznar, estabeleceu uma política de déficit zero. Mas existia a possibilidade técnica de um certo endividamento. Então, fez-se um endividamento de 120 milhões de euros: 60 milhões foram para o sistema educativo, outros 60 milhões foram para o sistema de saúde. Com esses recursos, puderam ser adquiridos muitíssimos computadores. Em seis meses, o sistema secundário e primário estavam informatizados. E sob o controle dos próprios profissionais.

A decisão de utilizar o software livre foi apenas econômica ou foi técnica também?

Castro – Foi uma questão técnica, embora economicamente não pudessemos arcar com os custos. No primeiro momento, foi experimental: “Vamos ver se sai”. Rapidamente percebemos, por exemplo, que os professores eram capazes de moldar o sistema a seu gosto, algo que com o sistema proprietário não pode ser feito. Aprendemos o software livre utilizando-o. Chegamos por casualidade e depois nos convertemos em defensores da tecnologia e, sobretudo, de sua filosofia de compartilhar e oferecer a liberdade às pessoas. Vimos que o modelo de software imposto até o momento era para o escritório, não para estudantes. E no software livre havia esse leque de possibilidades de moldar a ferramenta ao nosso gosto. O software se convertia de algo que pensávamos que era um assunto apenas técnico em uma parte substancial do próprio projeto.

No começo do PAT houve alguma resistência?

Castro – Houve muito medo por parte da administração. E certas pressões para que não fosse adiante. Com o projeto de software livre de Extremadura não aconteceu o mesmo que em outras histórias do mundo da tecnologia: o projeto não deixou ninguém milionário. Em princípios da década de 2000, quando o projeto começou, alguns fizeram planos de gerar um bom negócio, mas esse negócio não foi para a frente. Os 12 mil, 15 mil computadores da administração, no fundo, eram instrumentos de uma elite. No caso, a elite dos funcionários. Colocar os computadores no sistema educativo significava por a informática nas mãos de todo mundo. Cruzávamos uma fronteira. Passávamos da informática para poucos à informática para todos. Aí o modelo de software proprietário é realmente insustentável. No fim, conseguimos criar certo ecossistema de inovação, no qual pequenas empresas da região, que por seu tamanho não conseguiam trabalhar com a administração pública, se converteram em sócias do projeto de administração. Aquelas crianças e jovens que em 2002 começaram a utilizar o computador estão terminando a universidade. O efeito do projeto será visto em 2020, quando a geração de jovens que se formou no sistema educativo enfrentar o mundo do trabalho e se converter em um fator de desenvolvimento para essa região, que nunca havia tido uma oportunidade como essa. Pela primeira vez, a oportunidade foi para todos.

Como foi a reação das grandes empresas de tecnologia ao projeto?

Castro – Em um primeiro momento, a incompreensão foi grande. Achavam que o projeto não duraria, que conseguiria muito pouco, não iria a lugar nenhum. Essa foi a atitude, inclusive, da Microsoft. O presidente Ibarra anunciou que poria o projeto em marcha no sistema educativo e a empresa não teve sequer a delicadeza de entrar em contato com o governo. Não sofremos pressão. Não se interessaram e começamos a fazer nosso trabalho. E o projeto tinha, sim, importância. Nós, uma região pequena e pobre, nos convertemos em um exemplo para o governo federal brasileiro implementar o projeto de software livre: se essa pequena região fez, nós, um grande país, não faremos? Esse tem sido o valor do projeto de Extremadura.

Por que o projeto começou pela educação?

Castro – A informática já estava nos outros lugares. O desafio era a educação. O projeto foi gestado e desenvolvido dentro da Secretaria de Educação, Ciência e Tecnologia. Era a parte que faltava para fazer. Além disso, a educação é um assunto que um governo progressista precisa cuidar. A educação não estava se modernizando, se adaptando aos novos tempos. O objetivo do professor é ensinar. Se tem uma lousa, uma transparência ou algo semelhante, tenta incorporar esses instrumentos. Então, o computador, como ferramenta muito flexível, lhe permite cumprir seu objetivo. O problema da educação é que seus resultados não são visíveis de imediato, vêm com o tempo. Em uma região grande, com pouca população, o desafio da educação é se converter em um fator de integração. A tendência natural é de o jovem ou de a criança abandonar a escola porque a educação é um problema. Se você vive em uma aldeia, aos 12 anos tem de ir a um instituto e, provavelmente, precisa se deslocar a um povoado vizinho. Uma família que vive no meio rural precisa mandar o filho à universidade. Portanto, aplicar o projeto na educação era a melhor opção para o desenvolvimento da região. Se tivéssemos fábricas ou serviços muito lucrativos, talvez a política tivesse se orientado em direção à formação profissional para atender esses setores. No caso de Extremadura, o forte era o campo, que desde há muito tempo não era mais lucrativo. Não havia alternativa. A primeira vitória da Secretaria de Educação, Ciência e Tecnologia foi fazer o que nenhum governo na Espanha havia feito: em 2000, Extremadura realizou uma licitação para implementar seu sistema de telecomunicação. O requisito era de que a banda larga fosse até o povoado mais longínquo. Assim, cada colégio da região ganhou banda larga, inclusive antes de se implementar o projeto dos computadores em salas de aula.

Quais foram as diferenças entre a implementação do PAT nas zonas rurais e urbanas?

Castro – A Extremadura é quase totalmente rural. Não havia esse desequilíbrio porque havia pouca gente vivendo na cidade. A maior cidade, de Badajoz, tem 120 mil habitantes. Na região, cerca de 50% vivem em localidades com menos de 10 mil habitantes. O projeto foi concebido como um programa rural. O princípio era: se levarmos a banda larga ao menor povoado possível, vai chegar a todos.

Como foi a receptividade dos professores ao projeto? Houve insegurança?

Castro – Cuidamos muito da formação do professor. Nos dois anos anteriores à universalização dos computadores nas salas de aula, colocamos nosso foco nos Centros de Professores e Recursos. Foram os primeiros a se conectar. Temos que pensar o sistema educativo de outra maneira. Em uma cidade grande, uma criança pode ser levada ao museu. Em uma aldeia, isso não acontece. O professor tinha consciência de que a internet lhe abria uma possibilidade que de outra maneira não teria. O máximo que se podia fazer era programar duas excursões por ano: uma à capital de Extremadura, Mérida, outra à Madri. Por isso, em um ano e meio, dois anos, a nova tecnologia foi incorporada. Tivemos a preocupação de que o professor tivesse o controle. Não foi preciso fazer campanha. O mesmo professor, que em 2002 se perguntava para que queria um computador na sala de aula, em 2004 ensinava ao aluno anatomia, utilizando uma base de dados de autópsia existente nos Estados Unidos. O professor é um profissional que funciona por meio de objetivos. Se tiver um melhor meio ao seu alcance, vai utilizá-lo.

Quais são as aplicações em sala de aula?

Castro – Tanto no âmbito educativo tradicional quanto no de alfabetização tecnológica da população em geral, o processo de adaptação e criação de materiais foi difícil em um primeiro momento. Em pouco tempo, foi gerada uma grande quantidade de recursos desenvolvidos pelos próprios professores e projetados sobre todos os âmbitos. A aposta da Junta de Extremadura de manter uma equipe centralizada de suporte e dinamização e dispor de um técnico em informática e um responsável docente de novas tecnologias em cada centro do ensino secundário fizeram com que o esforço de incorporar as tecnologias às atividades cotidianas fosse um objetivo compartilhado. O sistema cresceu de maneira espetacular nos seus dez anos de atividade e, hoje, qualquer professor, aluno ou pai dispõem de uma grande quantidade de recursos. Praticamente todas as atividades educativas, de uma ou outra maneira, utilizam tecnologia.

Os resultados em termos de desempenho escolar já podem ser comprovados?

Castro – Sim. Um dos argumentos da Microsoft para dizer que isso era uma loucura era o de que as crianças seriam analfabetas tecnológicas. É paradoxal que na Espanha continue sendo muito difícil comprar um computador que não tenha Windows. Enquanto nas salas de aula havia um GNULinEx, na casa das famílias o computador tinha outro sistema. O que conseguimos? Uma comunidade de estudantes bilíngues do ponto de vista tecnológico.

De maneira geral, que tipos de benefícios podem ser comprovados hoje, dez anos depois?

Castro – Além dos benefícios aos estudantes, no âmbito social destaca-se o fato de a informática, o acesso à internet e o uso de tecnologia terem se tornado parte do cotidiano de muitas pessoas. O valor fundamental não está nos números, e sim no acervo de cada um e na consciência de que conseguimos fazer. Temos a esperança de que, com o passar do tempo, os resultados sejam mais notados do que agora. O valor do software livre é o conhecimento das pessoas. É conseguir que milhares de pessoas saibam utilizar a tecnologia sem ter de pedir perdão a ninguém.

Você acredita que o PAT contribuiu para diminuir a emigração da população de Extremadura?

Castro – A emigração não é a mesma. Para a autoestima da região, o projeto foi uma injeção. Conseguimos fazer algo um pouco antes dos outros. Dizem que isso, em economia, dá certa vantagem. Tínhamos consciência de que não seria imediata. O jovem que se forma na universidade ainda sai de Extremadura, mas não sai como antes. Não sai contra a sua vontade, porque não tinha outra possibilidade. Provavelmente, vai para algum lugar que conheceu porque teve possibilidades, e vai para aprender. Voltará ou não? Não sabemos, mas certamente enriquecerá a região. O emigrante dos anos 1950 ia praticamente com a roupa do corpo.  O de hoje vai com uma mochila carregada de conhecimento, de autoestima. Isso, em longo prazo, repercutirá na região. Estou convencido de que, com o tempo, isso vai dar resultado. A oligarquia da região preferiria voltar aos tempos em que os senhores controlavam a vida de todos, que tinham que pedir permissão para tudo. Conseguimos fazer com que as pessoas não tenham mais que pedir permissão.

*Carlos Castro é professor do Departamento de Biblioteconomia e Documentação da Universidade de Granada e integrante

da Fundação de I+D do Software Libre.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *