As inovadoras moedas sociais digitais do RJ

Em Maricá e Niterói, elas impulsionam a economia solidária – e, via banco comunitário, são usadas para políticas de proteção social e apoiar vítimas das enchentes. Assim, a riqueza petroleira da região se materializa nos territórios…

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Por Ariana Britto, Fernando Freitas e Fabio Waltenberg, no GGN

As duas principais moedas sociais digitais em circulação no Brasil são a mumbuca, em Maricá,e a arariboia, em Niterói, municípios vizinhos localizados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Quais são as vantagens e desafios dessas moedas enquanto instrumentos de proteção social?

Tanto a mumbuca quanto a arariboia são totalmente digitais e sua circulação se dá por meio de cartão (nos moldes de um cartão de débito comum) e aplicativo. A operacionalização das moedas cabe a bancos comunitários, sediados em cada um dos municípios, os quais são responsáveis pela distribuição dos cartões aos beneficiários e cadastramento de comerciantes e prestadores de serviços locais para recebimento de pagamentos.

A infraestrutura digital inclui o pagamento de benefícios sociais determinados pelas prefeituras; a disponibilização e o monitoramento de ambientes financeiros digitais; o cadastramento e o acompanhamento financeiro de comerciantes e prestadores de serviços; e a administração do banco comunitário. Essas atividades são executadas por uma fintech brasileira, o Instituto E-dinheiro, em parceria com as prefeituras.

Maricá inova com a moeda digital mumbuca

Maricá tem a política de renda básica municipal mais abrangente e inovadora da América Latina. O programa, que tomou sua forma atual em 2019, paga mensalmente um benefício a 42,5 mil residentes (cerca de 20% da população). Para receber, é preciso apenas estar registrado no Cadastro Único do governo federal (CadÚnico) e morar no município há pelo menos três anos. O pagamento é feito através da moeda digital mumbuca, sendo uma mumbuca equivalente a um real. O valor atual do benefício é de 200 mumbucas por pessoa, de modo que uma família formada por cinco pessoas, por exemplo, recebe mensalmente o equivalente a mil reais.

A criação da moeda mumbuca é inovadora principalmente por já ter nascido em formato digital e também porque o benefício não pode ser convertido em reais pelos beneficiários, devendo ser utilizado obrigatoriamente no comércio da cidade. Os comerciantes podem usar as mumbucas recebidas para comprar seus insumos, ou optar pela conversão em reais. O Banco Mumbuca tem o papel de gestão da moeda e execução dos pagamentos.

No início da pandemia de Covid-19, em março de 2020, essa política de proteção social teve papel decisivo para uma rápida atuação da Prefeitura. Em poucos dias, o valor da renda básica foi elevado de 130 para 300 mumbucas, pago já no mês seguinte, a todos os beneficiários. No mesmo período, foi criado o Programa de Amparo ao Trabalhador, beneficiando mais de 20 mil microempreendedores e trabalhadores autônomos com renda de até cinco salários-mínimos. O valor do benefício foi de um salário-mínimo, depois reduzido para 600 mumbucas até sua substituição por outros programas no início deste ano.

Em abril de 2022, chuvas de grandes proporções atingiram Maricá. A infraestrutura de transferência de renda novamente permitiu resposta imediata. Foram oferecidos um aluguel social de 1.500 mumbucas para 150 famílias afetadas pelas chuvas; o Auxílio Recomeço de 5 mil mumbucas para aquisição de móveis e eletrodomésticos a 3.722 indivíduos incluídos no CadÚnico; o Mumbuca Suporte, uma linha de crédito de 3 a 10 mil mumbucas, oferecida pelo Banco Mumbuca a pessoas com renda acima de 3 salários mínimos, a juro zero.

Estudos indicam que a infraestrutura digital de Maricá composta pela moeda mumbuca, banco e microcrédito tem sido efetiva para a proteção social. Cada mumbuca posta em circulação que foi usada para pagamentos gerou em média o equivalente a 1,79 reais em transações econômicas dentro dos limites da cidade, dinamizando assim a economia maricaense, e o microcrédito parece ter minimizado os efeitos econômicos negativos da recessão durante a pandemia. O conjunto de medidas anticrise contribuiu para resultados positivos na geração de empregos ao longo de 2020.

A moeda digital arariboia e a proteção social em Niterói

Moeda Social Arariboia é o nome de um programa de transferência de renda iniciado em 2022 no município de Niterói. É parte de um intrincado conjunto de ações que focam em atividades de economia solidária, combate à pobreza e desenvolvimento da economia local. Para fazer parte do programa, os indivíduos precisam estar registrados no CadÚnico e pertencer ao recorte de renda que os classifica em situação de pobreza (R$200 per capita) ou extrema pobreza (R$100 per capita).

 A principal diferença em relação ao programa de Maricá é que em Niterói o benefício é pago por família, e não individualmente. O benefício familiar mensal mínimo é de 250 arariboias (equivalentes a 250 reais), concedido ao responsável familiar, mais um valor de 90 por membro adicional, sendo 700 arariboias o máximo pago a uma única família. Atualmente, 31 mil famílias niteroienses são assistidas pelo programa, alcançando o equivalente a aproximadamente 6% da população.

Assim como em Maricá, os estabelecimentos comerciais podem realizar a conversão de arariboias em reais. O processo de conversão é realizado no próprio aplicativo de vendas e gratuito até o quinto dia útil de cada mês. Após essa data, é cobrada uma taxa de 1% sobre o valor convertido. Com o objetivo de ampliar a adesão dos estabelecimentos ao programa, faturas também podem ser pagas com o aplicativo, com cobrança de tarifas a depender do valor do boleto.

Para 2023, prevê-se a criação de linhas de microcrédito associadas à moeda arariboia, além da incorporação de outros benefícios

Potencialidades das moedas digitais como instrumento de proteção social

As experiências de Maricá e Niterói no emprego das moedas digitais como instrumento de política social configuram inovações por diversas razões.

Em primeiro lugar, trazem evidentes benefícios operacionais em relação a formas alternativas de se efetivar transferências de renda. Mais simples, mais prático, menos custoso e mais seguro do que distribuir dinheiro físico é creditar aos beneficiários os recursos monetários em forma digital.

Em segundo lugar, as moedas sociais proporcionam às prefeituras que as adotam uma grande flexibilidade. Como visto em Maricá, a tecnologia da moeda digital pode ser rapidamente adaptada para se tornar o meio de pagamento em situações emergenciais. A tecnologia social mostra-se adequada para a transferência de benefícios regulares, mas também para pagamentos eventuais, assegurando aos gestores públicos um poder de reação rápido.

Outro aspecto da maleabilidade da moeda digital é a possibilidade de integração entre diferentes programas de um mesmo governo. Um exemplo disso são os estudos da Prefeitura de Niterói para que a moeda digital arariboia seja aceita nos transportes públicos municipais e também para o pagamento de benefícios de outros programas sociais.

Em terceiro lugar, moedas sociais digitais podem ser um atalho para a inclusão financeira. Não tem sido fácil efetuar pagamentos em reais, via sistema bancário tradicional, em políticas sociais Brasil afora. Há entraves por parte dos bancos convencionais para tornar clientes os cidadãos que não têm ou não utilizam conta bancária. A tecnologia das moedas sociais simplifica essa inserção. A concessão de um benefício social pode ser a porta de entrada para que esse público usufrua de outros serviços bancários, como empréstimos, microcrédito ou formas de investimento.

Em quarto lugar, uma moeda social digital pode dinamizar a economia local em razão de sua circulação em área geográfica predeterminada. Ainda que não se possa atribuir a geração de empregos em Maricá nos últimos dois anos e meio exclusivamente à expansão do volume injetado de moeda mumbuca no município, é plausível supor que a circulação da moeda, sensivelmente incrementada em 2020 com a expansão da cobertura e dos valores do programa Renda Básica de Cidadania e com os diversos programas emergenciais, seja parte importante da explicação. A moeda digital evita o vazamento de recursos do município, potencializando o efeito local.

Ressalvas

Em que pesem as inúmeras virtudes, algumas ressalvas são importantes. Maricá e Niterói não são municípios típicos. Ambos enriqueceram repentinamente devido às imensas reservas de petróleo localizadas na proximidade de sua costa. Ainda que possam servir de inspiração, não é possível simplesmente transplantar as políticas destes municípios para outros locais, pelo menos em termos da amplitude de financiamento.

A falta de familiaridade dos usuários com o manuseio da moeda digital é mitigada por Maricá e Niterói ao permitir seu uso através de várias plataformas, tais como aplicativo móvel, cartão físico ou um número de identificação com uma senha. No entanto, resultados preliminares de uma pesquisa envolvendo grupos focais com beneficiários em Niterói indicam que o baixo nível de alfabetização digital é um desafio a ser superado.

Finalmente, é prudente não superestimar a importância das ferramentas utilizadas na implementação de uma política social. Moedas digitais parecem ser uma ferramenta promissora, mas políticas públicas bem desenhadas exigem muito mais do que isso.

Ariana Britto é pesquisadora associada do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE-UFF)

Fernando Freitas é doutorando em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

Fabio Waltenberg é professor de Economia da UFF

O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas. O grupo objetiva estimular o diálogo e interação entre Economia e Política, tanto na formulação teórica quanto na análise da realidade do Brasil e de outros países. Twitter: @Geep_iesp

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