Um despejo que envergonha e empobrece São Paulo

Pessoal do Faroeste, polo cultural na degradada “cracolândia”, expulso de seu casarão. Além dos espetáculos, interrompe-se ação social que reunia centenas de moradores. Retrocesso expõe como é indispensável “Despejo Zero” durante a pandemia

Créditos: Luca Meola
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Por Eliane Alves da Silva, Benedito Barbosa e Francisco Comaru, no Le Monde Diplomatique Brasil

É vergonhosa para a cidade de São Paulo – e para a cultura brasileira – a notícia do despejo sofrido pela companhia teatral Pessoal do Faroeste em 2 de setembro, no bairro da Luz, região central da cidade. O despejo, segundo matéria da Folha de S.Paulo, foi ocasionado pela inadimplência de mais de um ano de aluguel do imóvel ocupado pela companhia.

Instalada em um casarão da região conhecida como “cracolândia”, a Cia. Pessoal do Faroeste oferece não só apresentações teatrais a baixo custo, ampliando o acesso à cultura, mas ainda promove um importante trabalho com moradores e moradoras da região, inserindo populações vulneráveis e excluídas no circuito da arte e da cultura, numa postura generosa e potente, que bem poderia inspirar políticas públicas, com promoção de incentivos e parcerias.

No contexto de emergência sanitária causada pela pandemia de Covid-19, a Cia. Pessoal do Faroeste ampliou ainda mais sua atuação social na região, promovendo ações de solidariedade, com a entrega de cestas básicas para a população local. Pois é esse grupo que uma ação de despejo vem expulsar da área central da cidade, sem que tenha havido, até o momento de escrita deste texto, manifestação pública que possa reverter a decisão.

A campanha nacional pelo Despejo Zero, lançada por diversos movimentos sociais em julho deste ano, pôs em pauta a gravidade dos despejos ocorridos durante a pandemia, sendo potencializado seu caráter cruel e violador em um contexto de emergência sanitária atingindo em cheio os pobres, sem-teto, sem-terra, indígenas, quilombolas, migrantes, refugiados e outros grupos vulneráveis.

Benedito Barbosa, advogado popular, há décadas atuante na defesa do direito à moradia, em sintonia com outros autores e ativistas, afirma que é preciso dar visibilidade aos variados processos de expulsão da cidade, ocasionados pelo poder econômico e imobiliário, por vezes com clara anuência do poder público. Assim, propõe uma moratória sobre os despejos, com ampliação das políticas públicas de atendimento, e atentando para o sentido habitacional e social das expulsões urbanas.

Nesse sentido é que se deve olhar, por exemplo, não só para moradores/as de áreas ocupadas expulsos/as em processos de reintegração de posse ou remoções promovidas pelo poder público, mas ainda para os processos de expulsão de trabalhadores/as ambulantes de seus espaços de trabalho, com frequente abuso do uso da força e métodos ilegais de apreensão de mercadorias, bem como moradores/as em situação de rua, expulsos/as dos seus espaços de permanência por operações ditas de limpeza urbana ou em nome da ordem pública.

A ampliação do conceito bem serve para evidenciar processos que se combinam, numa mesma lógica de exclusão de grupos subalternizados na cidade: especulação imobiliária, primazia da propriedade em detrimento da posse, ordenamento urbano como questão de segurança pública, militarização dos espaços públicos e da vida urbana, despossessão, banimento dos indesejáveis com consequente desumanização da cidade e dos espaços de interesse cultural, social, coletivo ou comunitário.

O despejo da Cia. Pessoal do Faroeste recoloca a questão das expulsões na cidade, desta vez voltada ao setor cultural. O fenômeno não é novo, como mostra o histórico conflito pela permanência do teatro Oficina no bairro do Bixiga, ou as dificuldades vividas pela Cia. dos Satyros na Praça Roosevelt, que virou referência internacional de revitalização urbana promovida por atividades culturais, de valor acessível, sem promoção de exclusão.

Realizado em meio à pandemia, o despejo da Cia. Pessoal do Faroeste da região da Luz evidencia elementos importantes da civilidade (ou falta de) paulistana e das políticas públicas na cidade: ao reafirmar de forma flagrante a primazia da propriedade privada sobre qualquer valor social ou cultural representado pela presença e atividades da companhia na região, afirma também um certo modelo de cidade, no qual não cabem a ampliação do acesso à cultura, a inclusão pela arte, a solidariedade e a construção/partilha do comum, como elementos de cidadania e de elevação do espírito humano.

Como cidadãos e cidadãs paulistanos só podemos esperar que ações públicas consequentes e sérias possam reverter o ato inacreditável desse despejo. Em uma região em que a ausência de políticas públicas inclusivas é personagem central da infâmia urbana batizada tristemente de “cracolândia”, tirar dela ainda a alegria do teatro, é uma escolha trágica que não merece aplausos.

Eliane Alves da Silva é pós-doutoranda em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Benedito Barbosa é doutorando em Planejamento e Gestão do Território (UFABC), pesquisador do LabJuta UFABC, advogado popular e coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP).

Francisco Comaru é professor na área de Planejamento Urbano e Ambiental da UFABC e coordenador do Laboratório Justiça Territorial (LabJuta UFABC).

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