Spotify: quando o play financia a máquina bélica

Enquanto a plataforma paga entre US$ 0,003 e 0,005 por stream aos artistas, fatura bilhões em valor de mercado – e reinveste lucro em sistemas de drones e IA de guerra. Por trás do click inocente e da comodidade, um monopólio quase inescapável. Como resistir?

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Por Rafael Cavalcante Lima, no Blog da Boitempo

A dialética perversa do streaming

A história do Spotify encarna uma das contradições mais brutais do capitalismo tardio. Em 2006, Daniel Ek e Martin Lorentzon fundaram em Estocolmo uma startup que prometia resolver a “crise da pirataria” transformando o compartilhamento livre em mercadoria controlada. O discurso fundacional era sedutor: democratizar o acesso à cultura, remunerar artistas de forma justa, desafiar os oligopólios das gravadoras. “Música para todos”, proclamavam, como se o slogan não carregasse em si a violência simbólica de transformar a arte em commodity algorítmica.

Dezoito anos depois, em junho de 2025, Ek revelou a face oculta de sua acumulação primitiva digital. Através da Prima Materia, seu veículo de investimentos pessoais, liderou uma rodada de €600 milhões na Helsing, startup alemã especializada em sistemas autônomos de combate, drones letais e inteligência artificial militar. A empresa, já manchada pelo sangue ucraniano ao fornecer tecnologia para o conflito em curso, passou a valer €12 bilhões — um unicórnio da morte nascido do streaming de nossas canções favoritas.

O que se revela aqui não é apenas hipocrisia individual, mas a estrutura mesma do capitalismo de plataforma: a expropriação cultural financia a militarização, o consumo estético subsidia a destruição material. Cada play se torna um microinvestimento involuntário na máquina de guerra.

A acumulação primitiva digital e seus desdobramentos bélicos

Para compreender a gravidade dessa simbiose entre cultura e guerra, precisamos retomar Marx e sua análise da acumulação primitiva em O capital, agora reconfigurada no capitalismo digital. O Spotify não é apenas intermediário do mercado de música — ele expropria o comum cultural, cerca o que antes circulava livremente e transforma afeto estético em dados quantificáveis e capital especulativo.

O modelo de negócio é predatório em sua essência: paga-se entre US$ 0,003 e 0,005 por stream aos artistas, enquanto a plataforma acumula bilhões em valor de mercado. Essa disparidade não é acidental — é estrutural. O trabalho criativo é subsumido à lógica do capital, transformado em input para algoritmos que maximizam engajamento e, consequentemente, receita publicitária.

Mas há uma segunda camada de violência: o capital acumulado através dessa exploração é reinvestido em tecnologias de morte. Ek não diversifica seus investimentos em energia limpa ou saúde pública — ele escolhe conscientemente a indústria bélica. A Prima Materia, fundada em 2021, prometia “resolver grandes problemas da humanidade”, mas na prática tornou-se um braço financeiro do complexo militar-industrial 2.0.

A Helsing se apresenta com o cinismo típico do Vale do Silício: uma “empresa de defesa ética”, como se
houvesse ética possível em sistemas projetados para matar com eficiência algorítmica. Seus produtos — drones autônomos, submarinos não-tripulados, sistemas de targeting por IA — representam a automação da violência, a industrialização da morte em escala.

O paradoxo da missão corporativa e a farsa do stakeholder capitalism

O Spotify investe milhões em campanhas sobre diversidade, equidade e inclusão. Patrocina festivais culturais, apoia artistas LGBTQIA+, promove playlists de “empoderamento feminino”. Essa performance woke mascara a realidade material: uma empresa que paga migalhas aos criadores enquanto seu CEO financia máquinas de guerra.

Esse paradoxo revela a natureza do que Slavoj Žižek, em livros como Primeiro como tragédia, depois como farsa e Vivendo no fim dos tempos, chamaria de “capitalismo cultural”: compramos café fair trade para nos sentirmos éticos, usamos Spotify para “apoiar artistas”, mas participamos involuntariamente de cadeias de exploração e violência. A ideologia funciona precisamente quando não precisamos acreditar nela conscientemente — basta agirmos como se acreditássemos.

O conceito de “stakeholder capitalism” [capitalismo das partes interessadas], tão celebrado em Davos, mostra aqui sua face real: uma cortina de fumaça para a continuidade da acumulação violenta. Enquanto o Spotify fala em “criar valor para todos os stakeholders“, seu CEO literalmente investe em tecnologias projetadas para destruir vidas humanas. Qual stakeholder se beneficia de um drone autônomo?

Society-Centered Design: além do fetiche do usuário

O campo do design tem sido cúmplice involuntário dessa arquitetura de exploração. Durante décadas, o Human-Centered Design (HCD) foi vendido como panaceia ética: projete pensando no usuário, resolva suas “dores”, maximize sua satisfação. Mas essa abordagem individualista ignora as ramificações sistêmicas de nossos produtos. 

O Spotify é um caso exemplar: sua interface é impecável, seus algoritmos de recomendação são viciantes, a experiência do usuário é “frictionless“. Mas esse design centrado no indivíduo obscurece as violências estruturais: a precarização dos músicos, a monopolização do mercado, e agora, o financiamento da guerra. 

O Society-Centered Design emerge como resposta necessária a essas limitações. Não basta perguntar “isso é bom para o usuário?”, mas sim: “Quais são as implicações sociais, ecológicas e políticas deste design? Que tipo de mundo estamos construindo? Quem se beneficia e quem sofre com nossas decisões projetuais?” 

Designers não são neutros — são trabalhadores cujo labor pode fortalecer ou resistir a estruturas de dominação. Cada dark pattern implementado, cada algoritmo viciante criado, cada interface que maximiza “engagement” em detrimento do bem-estar coletivo é uma escolha política disfarçada de decisão técnica. 

A economia política do streaming: exploração em escala 

Os números revelam a brutalidade do modelo: 

  • Spotify: US$ 0,003-0,005 por stream 
  • Apple Music: US$ 0,01 (o dobro do Spotify) 
  • Tidal: US$ 0,012-0,013 (o mais generoso)
  • YouTube Music: US$ 0,0008-0,0012 (o pior) 

Um artista precisa de aproximadamente 250.000 streams mensais no Spotify apenas para receber um salário mínimo nos EUA. Menos de 0,2% dos artistas na plataforma conseguem isso. A promessa de “democratização” se revela como proletarização massiva: milhões de músicos produzindo conteúdo gratuito ou quase gratuito para enriquecer acionistas. 

Em 2024, o Spotify alegou ter distribuído US$ 10 bilhões à “indústria musical”, mas esse número esconde a concentração obscena: as três maiores gravadoras (Universal, Sony e Warner) capturam a maior parte, enquanto artistas independentes lutam por centavos. É o mesmo modelo colonial de sempre: extração de valor da periferia para o centro, agora digitalizado e gamificado. 

O caso brasileiro: colonialismo digital e dependência estrutural 

No Brasil, a situação é ainda mais perversa. Operadoras como Vivo, Claro e TIM oferecem “Spotify grátis” em seus planos — o que significa que seu acesso não conta na franquia de dados. Isso cria um monopólio de facto: outras plataformas, mesmo que paguem melhor aos artistas, não conseguem competir. 

Esse é o colonialismo digital em sua forma mais crua: a “liberdade de escolha” neoliberal se revela como farsa quando a infraestrutura material determina nossas opções. Um brasileiro consciente que queira boicotar o Spotify por razões éticas enfrentará custos adicionais de dados móveis. A conveniência se torna prisão. 

Essa dependência não é acidental — é arquitetada. As Big Techs estabelecem parcerias com oligopólios locais de telecomunicações, criando ecossistemas fechados que parecem “gratuitos”, mas são pagos com nossa autonomia digital e cultural. É a velha estratégia do dealer: a primeira dose é grátis, a dependência é eterna. 

Resistência e alternativas: por uma práxis musical anticapitalista 

A resposta não pode ser apenas individual (“boicote o Spotify!”), nem puramente reformista (“regulem as Big Techs!”). Precisamos de uma práxis radical que articule múltiplas frentes: 

Ação direta digital: Artistas organizados podem realizar “greves de conteúdo”, removendo suas obras simultaneamente — ampliando iniciativas de boicote que já vêm ocorrendo. Hackers éticos podem desenvolver ferramentas de migração massiva entre plataformas. Desenvolvedores podem sabotar conscientemente projetos que fortalecem monopólios digitais. 

Plataformas cooperativas: Projetos como Resonate e Ampled apontam caminhos: streaming cooperativo, onde artistas e ouvintes são coproprietários. Bandcamp, apesar de suas limitações, oferece um modelo mais justo. Precisamos multiplicar essas experiências, criando infraestruturas autônomas de distribuição cultural.

Municipalização da cultura digital: Cidades podem criar suas próprias plataformas públicas de streaming, financiadas coletivamente e geridas democraticamente. Barcelona e Amsterdã já experimentam com “soberania digital” — por que não soberania cultural? 

Educação crítica: Precisamos desmistificar a tecnologia, revelar as violências ocultas nas interfaces amigáveis. 

Todo cidadão digital deveria entender como algoritmos funcionam, como dados são monetizados, como seu consumo cultural financia outras indústrias. 

O design como campo de batalha 

Designers e desenvolvedores enfrentam um dilema ético fundamental: continuarão sendo “solucionadores de problemas” para o capital, criando interfaces cada vez mais viciantes e exploradoras? Ou se tornarão sabotadores conscientes, usando suas habilidades para construir alternativas e expor contradições? 

O Society-Centered Design não é apenas uma metodologia — é uma posição política. Significa recusar projetos que causam dano social, mesmo que bem remunerados. Significa questionar briefings, politizar reuniões de design, sindicalizar equipes de tecnologia. Significa, em última instância, reconhecer que não há neutralidade possível: ou servimos à emancipação ou à dominação. 

A guerra como horizonte do capitalismo tardio 

O investimento de Ek na Helsing não é desvio, é destino. O capitalismo, em sua fase terminal, abandona qualquer pretensão civilizatória e abraça abertamente a destruição como modelo de negócio. A guerra se torna não apenas lucrativa, mas necessária para a continuidade da acumulação. 

As guerras do futuro serão travadas por algoritmos treinados com dados extraídos de nosso consumo cultural. O mesmo machine learning que recomenda músicas calculará trajetórias de mísseis. A mesma infraestrutura cloud que hospeda playlists processará imagens de satélite para identificar alvos. A convergência entre entretenimento e militarismo não é acidental — é sistêmica. 

Conclusão: Quando a música se torna cúmplice do silêncio dos mortos 

Cada stream no Spotify é um microfinanciamento involuntário da máquina de guerra. Cada playlist reproduzida é um voto inconsciente pela continuidade desse sistema. O botão verde de play, tão familiar e reconfortante, carrega em si a banalidade do mal em sua versão algorítmica. 

Não podemos mais fingir inocência. Sabemos que nosso consumo cultural subsidia a indústria da morte. A questão que resta é: o que faremos com esse conhecimento? Continuaremos clicando, normalizando o inaceitável pela conveniência? Ou construiremos alternativas, mesmo que imperfeitas, mesmo que difíceis? 

A música sempre carregou um potencial revolucionário — das work songs dos escravizados ao punk, do hip-hop ao funk. Mas quando aprisionada em plataformas que financiam a guerra, ela se torna trilha sonora da barbárie. É hora de libertar a música, e com ela, nossa capacidade de imaginar futuros onde a arte não seja cúmplice da morte. O play pode ser um gatilho — mas também pode ser recusa. A escolha, por enquanto, ainda é nossa. Por quanto tempo, é a questão que o capitalismo de plataforma prefere que não façamos. 

Rafael Cavalcante Lima é UX designer e cientista de dados.

Referências


BARDZELL, Shaowen. Society-Centered Design: Toward a Design Practice Beyond the Individual. In: Proceedings of the CHI Conference, 2018. 

BRIGNULL, Harry. Dark Patterns: User Interfaces Designed to Trick People. 2011–2023

EUROPEAN DEFENCE AGENCY. Annual Report 2024. Luxemburgo: EDA, 2024. 

NORMAN, Donald. The Design of Everyday Things. Nova York: Basic Books, 2013.

SPOTIFY. Investor Relations. Dados de distribuição de receita e ações.

WORLD ECONOMIC FORUM. Stakeholder Capitalism: Concept and Debate. Davos: WEF, 2020–2025. 

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