Seria possível um mundo sem agrotóxicos?
“É como largar o cigarro”, afirma pesquisador. Ele defende ajuste gradativo para diminuir radicalmente – ou encerrar – uso de venenos agrícolas. Conheça as dados e argumentos das entidades que propõem o mesmo
Publicado 03/05/2019 às 14:55 - Atualizado 03/05/2019 às 15:00
Por Felipe Prestes, no Sul 21
Nas matérias anteriores da série, o Sul21 mostrou como o uso de agrotóxicos, especialmente nas lavouras de soja, tem prejudicado outras culturas, fazendo com que produtores até mesmo desistam de suas atividades. O uso do veneno também ameaça as abelhas e seu trabalho essencial de polinização, necessário não só para a agricultura, mas para toda a flora. Tudo isto com estímulos fiscais dos governos estadual e federal.
Ao mesmo tempo, as monoculturas têm sido responsáveis por trazer
divisas ao país, e o agronegócio alega que o uso dos agrotóxicos – que
chama de defensivos agrícolas – é fundamental para sua atividade.
Levando em conta esses dois pontos de vista, esta reportagem mostra
iniciativas para diminuir o uso dos venenos e também questiona: é
possível mudar este modelo?
“Temos convicção de que é possível produzir sem agrotóxicos”, afirma
Leonardo Melgarejo, vice-presidente para a Região Sul da Associação
Brasileira de Agroceologia (ABA). Porém reconhece que isto não
aconteceria da noite para o dia. “São necessários ajustes gradativos.
Temos um modelo de agricultura que é viciado em veneno, é como largar o
cigarro. O primeiro passo é justamente não estimular o uso de venenos”,
ressalta, criticando os benefícios fiscais concedidos para agrotóxicos.
Melgarejo destaca que a produção de arroz agroecológico pelos assentados no Rio Grande do Sul levou cerca de 15 anos para chegar a sua tecnologia ideal, mas não contou com apoio de agências estatais como Embrapa, ou de extensionistas, o que poderia acelerar este processo. “O Estado precisa subsidiar essas iniciativas e dar apoio técnico”, defende.
Para Melgarejo uma das medidas mais importantes para acabar com o
modelo à base de veneno seria a reforma agrária. Isto porque grandes
propriedades dificultam a implementação dos cuidados necessários com a
produção agroecológica: “Numa lavoura de 5 mil hectares o produtor não
vai fazer tudo a pé”, resume.
Para o secretário estadual de Agricultura, Covatti Filho, não é
possível deixar de utilizar agrotóxicos. “É muito difícil produzir em
escala sem o uso de defensivos agrícolas. A Secretaria da Agricultura
apoia a produção orgânica e agroecológica, mas tem consciência de que a
produção não pode prescindir de produtos que combatem com eficácia
doenças e pragas. Em nossa visão, temos de usar corretamente as
ferramentas que a ciência nos oferece”, sustenta.
O secretário ressalta a complexidade do tema e a necessidade de maiores debates. “Durante meu mandato como deputado federal, tomei conhecimento de muitas situações de insegurança sobre a matéria, desde dificuldades enfrentadas pelos fabricantes na instalação de novas fábricas ou obtenção de registros de seus produtos, produtores rurais que reclamam da ausência ou demora na disponibilização de novos produtos, consumidores que pedem por alimentos mais seguros, médicos que alertam para aspectos da saúde humana e toxicológicos; necessidade dos ambientalistas pelo desenvolvimento de processos mais sustentáveis, além de agrônomos preocupados com a fitossanidade e eficiência agronômica. Portanto, é um tema bastante complexo que exige muitos estudos e discussões”, diz.
Redução do uso de agrotóxicos une dezenas de entidades públicas e privadas
Se o fim do uso de agrotóxicos está ainda longe de acontecer, a luta
por sua diminuição já está mais madura. Criado em 2013, o Fórum Gaúcho
de Combate ao Impacto dos Agrotóxicos, coordenado pelo Ministério
Público Federal e pelo Estadual, reúne 69 entidades, passando por órgãos
públicos bastante diversos, desde a Agência Nacional da Aviação Civil
(ANAC), que regula os aviões agrícolas, até a Brigada Militar, órgãos
como IBAMA, INCRA, conselhos de classe, como o CREMERS, e universidades
federais, além de ONGs ligadas à defesa do meio ambiente, sindicatos e
universidade privadas. “Muitas destas entidades são contrárias à
utilização do agrotóxico. Outras são favoráveis ao uso, porque entendem
que é um insumo indispensável para produzir em larga escala. Mas uma
coisa unânime é que todos são favoráveis à diminuição do uso de
agrotóxicos, porque reconhecem o perigo para a saúde e para o meio
ambiente. O consenso é que tem que diminuir, que há tecnologia
disponível para diminuir”, afirma o procurador da República Rodrigo
Valdez de Oliveira, coordenador do Fórum.
Fóruns semelhantes já existem em 25 estados. Mas ainda que a
diminuição do uso de agrotóxicos seja consensual entre tantas entidades,
o país caminha na contramão. “Existe cada vez mais uma população
exposta a um grande número de agrotóxicos. Diversas pesquisas comprovam a
ligação dessas substâncias às mais diversas doenças, como câncer,
malformações fetais. Existem sentenças nos EUA reconhecendo glifosato
como causador de câncer. A gente tem diversas análises encontrando
agrotóxicos na água, nos rios. E a gente está em uma situação
preocupante porque, além disso, a tendência é que se autorize mais
agrotóxicos”, lamenta Valdez.
Nos primeiros cem dias de Governo Bolsonaro, foram deferidos
registros para 152 agrotóxicos no Brasil. Isto não quer dizer, contudo,
que as substâncias utilizadas nestes produtos sejam inéditas no país. De
acordo com levantamento do Greenpeace,
apenas um princípio ativo é inédito por aqui, o sulfoxaflor, “que
durante um tempo teve seu uso suspenso nos Estados Unidos por potencial
prejuízo às abelha”, ressalta a organização.
O levantamento mostra que o número de agrotóxicos liberados vem
crescendo anualmente. Nos primeiros cem dias de 2010, foram 18 produtos
liberados. Com exceção de 2012, quando foram 43 agrotóxicos autorizados
nos primeiros cem dias, o crescimento foi paulatino até 2016, quando
foram 39 produtos liberados. Em 2017, este número já saltou para 95,
chegando a 117 em 2018 e, finalmente, aos 152 deste ano. Se este ritmo
for mantido, 2019 vai ter o recorde de agrotóxicos liberados no país.
O Greenpeace destaca que “44% dos novos produtos registrados são
altamente ou extremamente tóxicos”, “28% dos novos produtos já foram
banidos ou não são permitidos pela União Europeia” e que “mais de 10%
dos produtos misturam ingredientes ativos, sendo que estas misturas não
são avaliadas pelo órgão”. Além disto, existem novos produtos contendo
glifosato e também fipronil e imidacloprido, substâncias responsáveis
por mortes de abelhas.
Batalha no Congresso
No Brasil, o registro de novos agrotóxicos passa por três órgãos
diferentes. A ANVISA examina os riscos da substância para a saúde, o
Ibama avalia sua toxicidade em relação ao meio ambiente e o Ministério
da Agricultura se debruça sobre a eficiência do produto. Mas essa tripla
análise está ameaçada pelo Projeto de Lei 6299/2002, conhecido como PL
do Veneno, de autoria do então senador Blairo Maggi. “Quer se passar a
análise final somente para o Ministério da Agricultura. Os demais órgãos
continuariam a fazer a análise mas não teriam poder de veto. Existe
mais esse perigo. O projeto é vendido como algo que agilizaria o
registro dos agrotóxicos, mas a gente não pode esquecer que essa análise
da saúde humana e do meio ambiente não pode ser colocada de lado”,
afirma o Rodrigo Valdez.
Os defensores do projeto alegam que facilitar o registro permitiria a
entrada no país de agrotóxicos mais eficientes, o que permitiria aos
produtores usar um volume menor de veneno nas lavouras ou produtos menos
danosos ao meio ambiente. Esse argumento, porém, não bate com o
levantamento do Greenpeace, que demonstra que substâncias bastante
perigosas estão sendo registradas no país.
No campo de batalha do Congresso, as entidades que se opõem ao uso de
agrotóxicos se armam suas trincheiras em torno da aprovação da Política
Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA), projeto que começou a
tramitar na Câmara em 2016, quando a Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco) apresentou uma sugestão à Comissão de Legislação
Participativa.
Entre as medidas previstas neste projeto está a reavaliação dos agrotóxicos a cada três anos. Atualmente, órgãos como o IBAMA podem reavaliar as substâncias, mas não existe um prazo para que isto seja feito. Outra medida é proibição do uso de venenos “nas proximidades de moradias, escolas, recursos hídricos, áreas ambientalmente protegidas e áreas de produção
agrícola orgânica ou agroecológica”. O texto prevê ainda uma série de
medidas econômicas para estimular a produção sem agrotóxicos e
desestimular a sua utilização, que vão desde a eliminação de subsídios e
benefícios fiscais aos venenos até a diferenciação nos juros de crédito
rural, sendo obrigatório que as produções agroecológicas paguem menor
taxa.
Em 2018, tanto o PL do Veneno como a PNARA foram aprovados em comissões especiais na Câmara. A composição atual do Congresso, porém, permite imaginar que o PL do Veneno tem maiores chances de se tornar realidade.
Estados e municípios podem trazer soluções
Após o registro dos agrotóxicos por IBAMA, ANVISA e Ministério da
Agricultura, os produtos ainda passam por um cadastro nos estados, que,
no Rio Grande do Sul, cabe a uma comissão formada por três integrantes
da Secretaria Estadual de Agricultura, três da Secretaria Estadual de
Saúde e três da FEPAM. Além disto, os municípios também podem impor
restrições ao uso. Para o procurador Rodrigo Valdez, no atual cenário,
prefeitos e vereadores devem exercer um protagonismo nesta matéria. “Um
dos caminhos é por meio dos municípios. Eles podem, por exemplo, dizer
que a tantos quilômetros da zona urbana não é permitida a aplicação.
Podem estabelecer um polígono para proteger área em que há produção
orgânica, para que não haja contaminação. Ou que próximo a determinada
área só é permitida a aplicação costal manual”, afirma.
No Rio Grande do Sul já existem algumas iniciativas. Em uma das
matérias anteriores da série mostramos que o município de Jaguari
proibiu o uso de 2-4,D na zona de vitivinicultura, no período entre 15
de setembro e 15 de março. Além disto, a Prefeitura de Rio Grande
protocolou em 2017 um projeto de lei com 17 capítulos e 44 artigos sobre
a questão dos agrotóxicos. Chamado de PL de Controle e Monitoramento de
Agrotóxicos, o projeto trata desde a aplicação dos produtos, até o
controle de seus resíduos e a inclusão de alimentos orgânicos na merenda
escolar. “É um projeto de lei muito avançado em relação a toda temática
relacionada a agrotóxicos”, ressalta o procurador Rodrigo Valdez. O
projeto encontra resistência de produtores rurais da cidade. Em
audiência com o então presidente da Câmara dos Vereadores de Rio Grande,
Flávio Maciel (SD), realizada no ano passado, representantes da
categoria alegaram que o projeto pode diminuir a produtividade e, até
mesmo, causar êxodo rural.
Na Assembleia Legislativa, o deputado Edegar Pretto (PT) possui três
projetos que visam regular o uso de agrotóxicos. Um deles propõe a
proibição da fabricação, uso e comercialização de agrotóxico que
contenha em sua fórmula o 2-4,D no território gaúcho, Protocolado em
2014, quando pouco se falava sobre os perigos desta substância, o
projeto foi uma demanda de produtores agroecológicos. “Não tem como
fazer produção agroecológica com alguém usando 2-4,D por perto”, afirma o
deputado.
Durante toda a legislatura passada o projeto não chegou sequer a ser
votado pela Comissão de Constituição e Justiça, primeiro passo para
qualquer proposição dentro da Casa. Com os testes realizados pela
Secretaria Estadual de Agricultura, no final do ano passado, que
comprovaram que o 2-4,D atingiu diversas culturas, a conjuntura mudou.
Outros deputados, mesmo os que defendem o agronegócio, começaram a
demonstrar simpatia pelo projeto, conta Pretto.
Outra proposta do deputado torna obrigatória a indicação do uso de
agrotóxicos no rótulo de alimentos. “O consumidor quando for comprar um
quilo de arroz, um quilo de feijão tem que ter a informação, tem que
saber quais são os malefícios que aquele produto pode fazer”, defende.
Uma terceira proposição prevê o fim da pulverização aérea de agrotóxicos
no Rio Grande do Sul. “O veneno lançado por avião tem precisão de
apenas 30%, os outros 70% podem ficar onde foi aplicado, mas podem ser
levados pelo vento. Tem pessoas que me relatam a perda de animais e de
lavouras atingidas por venenos jogados por vizinhos Será que é justo
isso? Pagar um preço tão caro pelo lucro incessante de outro?”,
questiona. O deputado ressalta que, se houver alguma normativa que
restrinja o uso de aviões agrícolas, de modo a evitar que atinja outras
propriedades, poderia contar com seu apoio.
A pulverização aérea é regulada por uma instrução normativa do
Ministério da Agricultura, que estabelece uma série de condicionantes,
como a temperatura, a umidade relativa do ar, o horário e a velocidade
do vento. Uma possibilidade que tem sido levantada nos debates sobre o
tema é a colocação de chips nas aeronaves, que permitissem monitorar
suas atividades e saber onde e quando foram despejados agrotóxicos,
permitindo avaliar se foram respeitadas as condições estabelecidas pela
legislação.
O procurador da República Rodrigo Valdez, ressalta que na Europa a
pulverização aérea é “praticamente banida”. “Ela é permitida em alguns
casos muito específicos, mas a regra é que ela proibida”. O coordenador
do Fórum Gaúcho de Combate ao Impacto dos Agrotóxicos conta que alguns
municípios brasileiros já proibiram as pulverizações aéreas e que, em
janeiro deste ano, o governador do Ceará, Camilo Santana, sancionou lei
estadual que proíbe a pulverização aérea no Estado. Porém, acredita que a
chance de a pulverização aérea ser proibida aqui no Rio Grande do Sul é
baixa.
Enquanto seus projetos andam vagarosamente na Assembleia Legislativa, o deputado Edegar Pretto é taxativo quanto à solução para que seus colegas façam com que as propostas avancem. “Eles se movem pela pressão da sociedade”.