SC: O que aprender com a ocupação Anita Garibaldi?

Experiência mostra: o habitar é apenas o começo em uma ocupação. Elas podem mobilizar o bairro, tornar-se pólos de cultura e educacionais e até reformar prédios degradados. Por que, então, não assegurar a posse permanente de quem as transformou?

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Por Paolo Colosso, Marta de Lara, Laís Chaud, Jaime Weber Hadlich, Ana Luisa Sabanay, Laura Costa, Mariah Wolff, Ayia Nishimuta Fonseca, Laize P. Pickler e Kalindy Granella Peruzzo, no GGN

Florianópolis está entre as cidades mais caras de se viver no país. Nos últimos anos, a curva de valorização dos imóveis – a venda e a locação – está sempre acima das políticas de valorização de salários, ou seja, a população que vive dos esforços do trabalho assiste a seu pertencimento em tom de contagem regressiva.  Como agravante, e neste ponto há bastante consenso entre estudiosos, as gestões municipais da capital não priorizam a moradia social como direito constitucional. Para o ano de 2022, a Lei Orçamentária Anual previu R$1,29 milhão ao setor habitação. Para um único túnel ligando dois bairros de alta renda – onde hoje já há uma estrada pavimentada –, o investimento previsto foi de R$150 milhões. Para o ano de 2023, a parte da receita voltada aos investimentos foi de R$436,6 milhões; para a habitação, apenas R$ 1.38 milhão. Nas décadas anteriores, as assimetrias não diferiam muito das recentes. É verdade também que, cientes dessa crítica, a gestão municipal passou a ventilar recentemente programa habitacional via aluguel social, o que não resolve nem de longe as necessidades habitacionais. Por enquanto, é a cidadania ativa popular que, a fórceps, obtém alguns avanços.

Na capital catarinense, a “Anita Garibaldi” é a primeira ocupação por moradia popular em edifício. O imóvel de três pavimentos foi construído como depósito de móveis por particulares em 1973, penhorado em 1981 e adjudicado em 1982, tornando-se parte do patrimônio do estado de Santa Catarina. Desde então,  oscilou entre subutilizado  e ocioso, a administração desse circulou de responsabilidade da Polícia Militar (2008) para a Defensora Pública de SC (2015), Imprensa Oficial (2019) e Bombeiros (2020). Entre os anos de 2012 e 2015, houve a divulgação no Diário Oficial de três leilões do Patrimônio do Governo do Estado que citam o imóvel como “almoxarifado da Secretaria de Estado da Justiça e Administração (SEA)” . Durante o agravamento da crise urbana na pandemia Covid-19, mais especificamente em setembro de 2021, o edifício é ocupado por cerca de 30 famílias do Movimento de Lutas em Bairros e Favelas. Desde lá, mulheres, homens e crianças lidam com a transitoriedade permanente, pedidos de reintegração de posse e suspensão destes, corte e religação de luz e água.

O imóvel, que totaliza cerca de 1.300 m², está localizado em área bastante central e adensada, amplamente provida de infraestrutura e serviços, 10 minutos a pé de duas escolas básicas e a 10 minutos de ônibus das principais instituições públicas . As cerca de 30 famílias que se abrigam no interior dos três pavimentos passaram a aplicar melhorias e constituíram ali uma vida em comum: limpezas periódicas, reparos em redes e equipamentos hidráulicos, substituição e ampliação da rede elétrica, recuperação e ampliação de medidas de segurança contra incêndio.

Com assessoria técnica de professores do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina, as equipes de moradoras(es), estudantes e pesquisadoras realizaram projetos emergenciais para melhorias de banheiros no andar térreo, bem como duas versões de propostas de projetos de habitação social, que foram levados ao Ministério Público visando uma conciliação com o governo do estado.

Outro aspecto merece destaque: por sua localização central e estrutura de planta livre, a ocupação passou a receber no pavimento térreo uma série de trabalhos sociais e atividades culturais, como rodas de capoeira, aulas de um núcleo da Escola para Jovens e Adultos (EJA), a escola Nacional Eliana Silva, atividades de cuidados por mulheres a outras mulheres e crianças.  Há  almoços coletivos nos fins de semana, em datas comemorativas, Feijoada e roda de samba. Há ainda sessões de cinema e debates.

Em janeiro, a ocupação fez de suas empenas internas e externas suporte para as artes urbanas como o grafite e o stencil. Em fevereiro, sediou uma agenda de atividades da semana acadêmica da pós-graduação em arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina: uma oficina de mapeamento coletivo que visa o reconhecimento e identificação, por parte de habitantes e usuários, dos equipamentos e espaços relevantes para a vida no bairro, bem como seus desafios. Em seguida, uma roda de conversa com os projetos recentes do Instituto de Patrimônio (IPHAN), do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-SC) e da Fundação Catarinense de Cultura sobre os esforços dessas instituições em incluir na memória urbana  as manifestações populares, em especial do povo negro e indígenas. Recebeu ainda a urbanista e professora da Universidade de São Paulo Ermínia Maricato, uma das figuras mais renomadas na formulação do arcabouço legal urbanístico.

Imagem: Paolo Colosso

Para mostrar disposição conciliatória da postura propositiva, a equipe desenvolveu dois projetos para a moradia. O primeiro é uma reabilitação do edifício existente, portanto sem adições. O pavimento térreo segue com atividades coletivas, o uso habitacional nos dois superiores. Para garantir ventilação e insolação, abre-se um pátio interno para o qual os dormitórios se voltam. Mas neste caso a demanda não é completamente vencida.

O segundo projeto responde à demanda integral do movimento. Respeita-se o edifício já apropriado como uma pré-existência, intervém neste o mínimo possível através de um núcleo estrutural  para circulação e quatro pontos de apoio perimetrais. Eleva ao máximo a vocação do térreo, transformando-o numa praça aberta ao público. Para os dois pavimentos superiores do existente são dispostos a cozinha e lavanderia coletivas, oficinas de artes e educacionais, espaços para geração de trabalho e renda, além de ateliês e residência artística. Em termos volumétricos, a pré-existência  é separada do volume vertical pelo vazio de um mirante, denominado “varanda” – na acepção da filósofa Bell Hooks.  Acima destes, dez pavimentos de habitações adaptadas às diversas configurações da unidade familiar, com um, dois e três dormitórios. Neste cenário o poder público gera dois efeitos positivos: regulariza toda a demanda numa única operação e aloca habitações onde já há infraestrutura – portanto não onera a municipalidade com outros investimentos. 

Imagens: Paulo Couto, MP2C Arquitetura e Engenharia ( 2024)

Pode-se dizer, sem exageros, que a ocupação Anita Garibaldi desempenha o papel de elemento agregador para a vida do bairro e, ainda, para trabalhos sociais de solidariedade popular. Por conta dessa combinação entre espaços estruturados, disciplina organizativa e abertura cultural, em pouco tempo a ocupação já se torna uma referência para as práticas sociais voltadas à vida urbana e aos avanços democráticos via cidadania ativa. 

Nas próximas semanas a ocupação Anita Garibaldi viverá um momento crucial de sua história. Após uma visita do corpo técnico das soluções fundiárias de Santa Catarina, o Ministério Público decidirá se os residentes e redes solidárias poderão continuar esses projetos, trabalhos comunitários e artísticos abrigados ali ou se o Estado dará outro destino às famílias.

O Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) pretende permanecer, seguir com as melhorias e realizar o projeto arquitetônico de habitação social com assessoria técnica. Mas tem clareza também de que, se eventualmente o estado decidir pela reintegração, o este tem por lei a obrigação de garantir a moradia das famílias em outro local adequado, urbanizado – e o movimento vai lutar por isso. 

Quanto à assessoria técnica, a equipe da UFSC se fundamenta na legislação urbanística, em especial sob o marco recente denominado “embasamento legal para melhorias gradativas de edifícios antigos”, resultante do grupo de trabalho formado por juristas, engenheiros, ambientalistas e arquitetas(os) especializados em gestão de riscos e conflitos fundiários, que em 2021 realizou relatório técnico em ocupações de moradia em áreas centrais da cidade de São Paulo.  De acordo com a equipe paulista, já há arcabouço legal necessário e suficiente para uma pactuação via melhorias gradativas e regularização. Entre as leis citadas, destacam as Leis Federais 13.465/2017 (artigos 59 a 60 61 a 63, e os artigos que regulamentam Reurb-S), Lei 6766/1979 (artigo 40), Lei 12340/2010, com a redação dada pela Lei 12.608/2012 e a Lei 11.888/2008 de Assistência Técnica (ATHIS). Vale avançar no entendimento dos técnicos, segundo o qual “há na lei 13465/2017 previsão legal de aplicação da regularização a edifícios, verdadeiros núcleos urbanos informais verticais”. Nessa linha, adiante sustentam:

as Leis 6.766/1979 e 13.465/2017 dariam suporte à regularização fundiária das moradias coletivas implantadas em edifícios ocupados da mesma forma que ocorre nos assentamentos informais implantados em glebas ocupadas, admitindo: (1) a regularização dominial independente da regularização urbanística (ou no caso edilícia), desde que haja um cronograma de execução de obras que podem se processar por etapas; (2) que os responsáveis pela regularização sejam os próprios moradores; e, (3) que o município tem o poder/dever de realizar as obras necessárias, podendo exigir ressarcimento dos gastos por parte dos proprietários. A regularização com melhoria das condições de segurança e, na sua impossibilidade, a realocação / reassentamento (exercício da moradia em local distinto do original) seriam direitos dos moradores.

É preciso salientar que, mesmo administrações públicas menos atentas às urgências dos povos periféricos já tem percebido que a regularização de ocupações como a da Anita não diz respeito a decisões de cunho ideológico, mas bastante pragmáticas. A rede sociotécnica – formada por organização popular, entidades e universidade – cria as condições para que a municipalidade diminua o déficit habitacional (e os sub investimentos em HIS) sem grandes esforços. Se o poder público se despojar de preconceitos e estigmas, a rede societária garante o arranjo institucional – via retrofit do Programa Minha Casa Minha Vida — Entidades – e a gestão coletiva da execução da obra. Há um número significativo de trabalhos já documentados e analisados pela comunidade acadêmica mostrando que tais iniciativas são viáveis e, não raro, produzem arquitetura de melhor qualidade do que as oferecidas no mercado imobiliário tradicional. 

A construção da Anita Garibaldi como HIS e sua regularização seria uma oportunidade singular de uma política ganha-ganha. Municipalidade, governo do estado e mesmo da União se mostrariam atentos à responsabilidade das organizações populares tecnicamente assessoradas. Florianópolis se mostraria compassada com as políticas habitacionais mais avançadas, ligadas ao esforço de destinação de edifícios ociosos para HIS em áreas centrais. A população residente teria efetivado sua garantia básica a um teto num espaço que já é lugar, com pertencimento e vida coletiva. O bairro ganharia um equipamento com usos coletivos e, ainda, com a força de trabalho que ali produz e sobrevive.

Paolo Colosso é arquiteto, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e compõe a coordenação da rede BrCidades.

Marta de Lara é coordenadora estadual do MLB-SC.

Laís Chaud é psicóloga e mestre em psicologia pela UFSC.

Jaime Weber Hadlich e Laize P. Pickler são graduandos em Arquitetura e Urbanismo pela UFSC.

Laura Costa é geografa, Ana Luisa Sabanay , Mariah Wolff, Ayia Nishimuta Fonseca, são arquitetas.

Kalindy Granella Peruzzo é arquiteta e mestranda do PósArq UFSC.

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