SP: a “nova capital” e a especulação imobiliária

Projeto de uma sede administrativa gigante, no centro da capital, tem como base lógica de tábula rasa: sem diálogo, atropela estudos, experiências exitosas e a realidade da população. Soluções urbanas não podem sair de pranchetas…

Proposta de projeto para a nova sede do governo de São Paulo. (GESP/CASACOR)
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Título original: Centro Administrativo do Governo do Estado de São Paulo: É assim que se faz grandes projetos urbanos?

“O centro da cidade está abandonado!” Esta é uma frase cada vez mais recorrente dita por pessoas que vivem ou passam pelo centro histórico da cidade de São Paulo. Há um fundo de verdade nessa frase, pois os sinais desse abandono são visíveis nos acúmulos de vários tipos de problemas sociais, urbanos, habitacionais e ambientais existentes nas áreas mais antigas da cidade. Diante disso, não há como negar que algo precisa ser feito. Realmente, é urgente elaborar uma proposta democrática, consistente, intersetorial e multiescalar capaz de resolver concreta e efetivamente todos os tipos de problemas do centro da cidade. Mas será que a criação do Centro Administrativo do Governo do Estado de São Paulo junto à praça e terminal de ônibus Princesa Isabel é a proposta que precisa ser feita? Será que o modo como essa proposta foi apresentada e está sendo realizada está correto?

Hoje, a elaboração de qualquer proposta para qualquer área do centro da cidade de São Paulo deve partir da análise crítica dos inúmeros estudos, planos, programas, projetos e ações elaboradas no passado por várias instituições governamentais e não governamentais. Não se pode abrir mão do extenso capital técnico construído ao longo de mais de quarenta anos de trabalhos pregressos que abordaram diferentes problemas, demandas e potencialidades de lugares distintos do centro. Por exemplo, o programa Ação Centro implementado com recursos orçamentários municipais, estaduais, federais e aportes de financiamento do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento – na gestão 2001-2004 que abordou, de forma integrada, ações para melhoria da mobilidade urbana, preservação do patrimônio histórico-cultural e recuperação de áreas deterioradas com provisões de habitações sociais. Em relação à questão habitacional, incorporou inúmeros avanços e investimentos públicos realizados pelos governos federal (por exemplo, o PAR – Programa de Arrendamento Residencial) ou estadual (PAC – Programa de Atuação em Cortiços) às propostas inovadoras de Locação Social implementadas em prédios reformados e novos empreendimentos. Este é apenas um exemplo de programa já realizado no centro da cidade de São Paulo com ampla articulação institucional interna entre diferentes órgãos da administração das três esferas de governo e, principalmente, com efetiva participação da sociedade civil e dos movimentos de moradia. Mudanças no governo da cidade impediram sua continuidade e a possibilidade de gerar resultados adicionais claros e objetivos.

Portanto, o modo correto de elaborar uma proposta para o centro da cidade de São Paulo deve partir de análises críticas sobre o que já foi proposto e sobre os múltiplos problemas e demandas hoje existentes. Essas análises devem subsidiar as conversas e discussões com absolutamente todos os agentes envolvidos direta e indiretamente com as pautas das áreas centrais e não somente os agentes do mercado de incorporação imobiliária e do setor da construção civil. Essas conversas e discussões são fundamentais para se formular e pactuar uma proposta de política, planejamento e gestão permanente do centro em que não haja interrupções e descontinuidades e, muito menos, desperdícios de grandes quantidades de recursos públicos que são utilizados no pagamento de estudos e projetos caríssimos que são engavetados e esquecidos.

Isto posto, podemos afirmar que há equívocos no modo como os atuais governantes do estado e do município de São Paulo estão realizando a proposta para a construção do Centro Administrativo do Governo do Estado de São Paulo. O que esses governantes estão fazendo e propondo faz parte de uma mega operação imobiliária que visa exclusivamente ganhos econômicos por parte de investidores privados. De fato, a área central vem recebendo inúmeros empreendimentos imobiliários privados, residenciais e não residenciais, produzidos de diferentes maneiras, particularmente por meio de retrofits. Segundo o site da Prefeitura do Município de São Paulo (PMSP), “A Prefeitura de São Paulo autorizou a cada 18 dias, em média, uma obra de requalificação (retrofit) de prédio antigo no centro de São Paulo neste ano [2023] pelo Programa Requalifica Centro. Desde março [de 2023], foram aprovados 11 projetos desse tipo de reforma de edificações particulares pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL), o que representa a construção de 1.181 unidades residenciais na região.” Ademais, esse processo deverá se impulsionado pela Lei de Retrofit, aprovada em julho de 2023, que amplia isenções para investidores interessados na reforma de edifícios sem nenhuma garantia de destinação para Habitação de Interesse Social (HIS), com perdão da dívida de Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU), redução no Imposto Sobre Serviços (ISS) e isenção de IPTU por três anos. Isto num município que já tem aprovada a dação em pagamento de imóveis com dívidas de IPTU para que o município possa produzir HIS (Lei Municipal 13.259 de 2001). Todo esse enaltecimento imobiliário deve ser observado com cuidado, pois os dados do Censo Demográfico de 2022 divulgados recentemente mostram que, enquanto o número de domicílios aumentou 2,94% no centro da cidade de São Paulo, o número de moradores diminuiu -0,36%. É plausível considerar que a produção imobiliária nesse centro, inclusive por meio de retrofit, esteja produzindo uma “cidade oca”, sem moradores.

Assim, o centro está servindo meramente como uma plataforma para negócios imobiliários alavancados com investimentos públicos e respaldados por legislações urbanísticas recentes como, por exemplo, o Plano de Intervenção Urbana (PIU) Setor Central que substituiu a Operação Urbana Centro. Este Plano, aprovado em 2022 e regulamentado em 2023, estabelece a cessão de potencial construtivo de forma gratuita ou com grande desconto para produção imobiliária, o que reduz drasticamente os aportes de contrapartidas financeiras da outorga onerosa para o Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) e a capacidade de o poder público investir na recuperação urbana e social da área central de modo social e espacialmente justo e redistributivo. Por outro lado, a produção de Habitação de Interesse Social (HIS) através de Parcerias Público-Privadas (PPP) não atende justamente aquelas famílias sem condições financeiras de acesso ao financiamento para compra do imóvel no centro da cidade. Para esta camada da população são necessárias alternativas de acesso como a locação social, que tratam a moradia como serviço para a população que mais precisa de investimentos públicos e não se beneficiam dos negócios imobiliários milionários.

Desse modo, o projeto do Centro Administrativo do Governo do Estado de São Paulo faz parte da mesma lógica imobiliária que determina a forma excludente de apropriação do centro da cidade de São Paulo por parte dos seus próprios governantes e por investidores imobiliários privados. Além da dominância dessa lógica, por que o modo como esse projeto está sendo realizado de modo errado?

Em primeiro lugar, porque descarta o diálogo e a articulação institucional e sociopolítica necessárias à implementação de grandes projetos urbanos que demandam arranjos consistentes e contínuos de gestão participativa, financiamento, avaliação, monitoramento e aperfeiçoamento. O projeto do Centro Administrativo do Governo do Estado de São Paulo foi lançado sem que os representantes dos diversos setores governamentais e não governamentais que atuam na região fossem incluídos em diálogos e discussões democráticas. Excluiu-se institutos de pesquisa, entidades profissionais, movimentos sociais, coletivos culturais, associações comerciais, entre tantos outros. Neste sentido, a proposta foca em produtos – pranchas com desenhos e imagens espetaculares de novos edifícios e espaços públicos destinados a ficarem adormecidos sobre o papel – em detrimento dos processos de curto, médio e longo prazo exigidos por todo e qualquer grande projeto urbano que, em geral, leva décadas para serem formulados e implementados. Em um grande projeto urbano, o desenho urbano não pode ser o ponto de partida desse longo processo de formulação e implementação, mas, sim, o meio através do qual se realizam amplos diálogos, negociações e pactuações democráticas entre os diversos setores da sociedade, governamentais e não governamentais.

Em segundo lugar, porque todo e qualquer grande projeto urbano deve estar fortemente articulado com sistemas de transportes coletivos de massa e de semi-massa como metrô e ônibus. A concentração de investimentos públicos e privados em um determinado trecho da cidade não deve produzir uma ilha, um enclave de excelência e de boas qualidades rodeadas por um mar de deteriorações e precariedades. Uma ilha e um enclave nessas condições não subsistem muito tempo e logo se deteriora e se precariza. É justo que os benefícios decorrentes desses investimentos sejam física e socialmente acessíveis democraticamente a toda e qualquer pessoa que, mesmo em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade, contribui com seus parcos impostos sobre o consumo para os montantes de recursos públicos utilizados na produção e manutenção dos espaços urbanos. Assim, a remoção do terminal Princesa Isabel com destino incerto e ignorado desrespeita essa importante premissa adotada nas últimas gerações de grandes projetos urbanos realizados ao redor do mundo.

Por fim, em terceiro lugar, porque a desapropriação em massa de imóveis nas quadras adjacentes ao terminal e à praça Princesa Isabel, destinados à destruição criativa da produção imobiliária futura, opera conforme a lógica da tabula rasa na qual se desconsideram as pré- existências sociais, políticas, econômicas, culturais e patrimoniais. Essa lógica concentra a valorização imobiliária decorrente dos novos negócios nas mãos de poucos investidores, prejudicando os pequenos proprietários impactados por essa mega operação. Neste sentido, os prejuízos são socializados e os ganhos apropriados pelos bolsos privados de poucos, na contramão do que se espera do Poder Público como regulador dos ganhos imobiliários e promotor da justiça social e espacial.

A substituição de processos sociopolíticos de negociação sobre o futuro da área central não pode ocorrer por meio de operações mirabolantes, com imagens espetaculares de uma miragem sem lastro na realidade social de seus habitantes. Importantes agentes atuantes na área central já começaram a se manifestar colocando-se contrários à implementação do projeto (ver a Nota Técnica). Isso nos leva a crer que o projeto do Centro Administrativo do Governo do Estado de São Paulo será mais um grande investimento público sem possibilidade de retorno efetivo para a sociedade. É mais um exemplo do atual Estado Paulista e Paulistano do Mal-Estar Social operando prioritariamente para a reprodução do capital imobiliário.

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