São Paulo: como o PCC dominou a ex-Febem

“Cadeias Dominadas” descreve inferno da Fundação Casa. Autor revela: por maus tratos, humilhação e encarceramento em massa, Estado perdeu controle da instituição

Por Igor Carvalho, na Revista Fórum

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“Cadeias Dominadas” descreve, de dentro, inferno da Fundação Casa. Autor do livro revela: por maus tratos, humilhação e encarceramento em massa, Estado perdeu controle da instituição

Por Igor Carvalho, na Revista Fórum

No momento em que discute os rumos da Fundação Casa, que terá suas unidades terceirizadas, após aprovação de Projeto de Lei Complementar que entrega a administração da instituição às Organizações Sociais, o antropólogo Fábio Mallart lança o livro140617-LivroMallart “Cadeias dominadas”, questionando a estrutura da ex-FEBEM e contando a história de um ambiente que se tornou um “campo de batalha sangrento”.

Na publicação, Mallart conta a história da instituição, até os dias atuais, já como Fundação Casa e narra sua experiência de cinco anos como educador dentro das unidades. O antropólogo mostra como os internos já estão conectados com o Primeiro Comando da Capital (PCC) e, também, reproduzindo o mesmo comportamento e estruturando as mesmas relações do que os adultos fazem dentro das penitenciárias.

“Alguns jovens – também chamados de disciplinas – se dividem em uma série de postos hierárquicos, a saber, setor, faxina, encarregado e piloto. Vale notar que essas posições também operam no sistema prisional adulto, o que mais uma vez evidencia a simetria existente entre o universo carcerário e o sistema socioeducativo”, afirma Mallart.

O antropólogo também aponta, baseado em sua experiência, a violência física aplicada contra os internos. “Que as torturas e os espancamentos fazem parte da história institucional, me parece que não resta nenhuma dúvida. As unidades de internação, de fato, podem ser consideradas como verdadeiros campos de batalha, nos quais se processam disputas violentas – por vezes sangrentas – lutas silenciosas e tensões cotidianas.”

Confira a entrevista na íntegra:

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Funaben, Pró-Menor, FEBEM e Fundação Casa. No aspecto da estrutura organizacional, no que se diferem os diversos períodos dessa instituição?

Ao analisar o deslocamento institucional a partir de uma perspectiva processual, isto é, ao longo do tempo, nos deparamos com o reordenamento do universo institucional. Se atentarmos para a dinâmica de funcionamento dos antigos espaços de internação das décadas de 1970 e 1980 nota-se, por exemplo, que os contatos estabelecidos entre os internos e os funcionários se deslocam, apontando para alterações nas relações de poder. As práticas violentas adotadas pelo corpo funcional, longe de chegarem ao fim, encontram maior resistência por parte dos adolescentes. Atualmente, em determinadas unidades de internação, funcionários são impedidos de acessar tais espaços ou então, quando os acessam, permanecem em locais específicos delimitados pelas lideranças, os chamados disciplinas. Outro ponto importante – eu diria que o mais importante de todo o trabalho – é o fato de que eu mostro, em detalhes, como o sistema socioeducativo de internação, progressivamente, se alinha à dinâmica do sistema prisional adulto. Isso se deve a uma série de políticas governamentais adotadas ao longo dos últimos anos – todas elas marcadas por uma lógica punitiva-carcerária – mas também ao fato de que o que acontece nesses espaços de internação está em sintonia com o que ocorre em presídios paulistas e em regiões periféricas de São Paulo. Trata-se de territórios que, atualmente, são atravessados pelas políticas do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Qual o impacto provocado pelo Estatudo da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, na estrutura da FEBEM?

Bom, o Estatuto da Criança e do Adolescente provoca uma série de reconfigurações não só no que se refere à estrutura da FEBEM, mas, de certa forma, no campo da infância e adolescência. Além de proclamar a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, o novo estatuto enfatiza a necessidade de proteção integral. Ou seja, aquelas crianças que, anteriormente, figuravam como desviantes, após a promulgação do ECA passaram a ser entendidas como sujeitos cujos direitos encontram-se ameaçados. Em relação à estrutura da FEBEM, um dos pontos que eu gostaria de destacar é o seguinte: com o surgimento do ECA, os espaços de internação caracterizam-se pelo fim do atendimento às crianças abandonadas e carentes, público que foi a principal clientela de tal instituição durante as décadas anteriores. O espaço institucional passa a ser ocupado apenas pelos jovens que cometeram atos infracionais. Nesse sentido, constata-se uma espécie de bifurcação no sistema de atendimento. Se antes do estatuto não era incomum encontrarmos jovens abandonados e infratores dividindo o mesmo espaço institucional, com o advento desse dispositivo, estabelece-se uma clara distinção entre aqueles que necessitam de medidas de proteção e aqueles que, pelo fato de terem cometido atos infracionais, são submetidos às medidas socioeducativas. Em termos práticos, observa-se a nítida tentativa de separar os desamparados, que necessitam de auxílio e proteção, daqueles que são considerados “perigosos” e que, portanto, representam uma verdadeira ameaça à sociedade. Para estes últimos, a medida socioeducativa de internação, marcada pela lógica punitiva-carcerária que privilegia apenas a contenção, configura-se como mais adequada, na medida em que é preciso isolá-los do convívio social.

No livro, você narra a primeira rebelião organizada, já com regras de condutas entre os internos, na unidade de Batatais, no ano de 1986. O que significa esse momento para o que vem a se tornar o ambiente político interno da FEBEM?

Esse ponto é muito importante. Acredito que é preciso diferenciar o contexto atual desse evento que ocorreu em 1986. Esse acontecimento nos remete ao fato de que nem tudo o que acontece no sistema socioeducativo de internação nos dias atuais é reflexo, única e exclusivamente, das políticas do Primeiro Comando da Capital, ainda que os jovens procurem seguir as orientações do Comando à risca. O evento de 1986 aponta para o fato de que já existiam focos de organização interna entre os jovens daquele período. Isso se deve, a meu ver, à própria experiência do encarceramento. Naquele período, por exemplo, existiam grupos de internos que se organizavam não só para se defender das agressões praticadas por funcionários, mas também das agressões de outros jovens. A questão é que, atualmente, essa organização assume novos contornos. Se anteriormente havia alguns focos de organização interna, estes eram desconectados, restritos ao espaço de internação. No atual momento institucional, o quadro que emerge diante de nossos olhos é outro, a extensão dessa organização é bem diferente. Em algumas unidades de internação, conhecidas como cadeias dominadas, os internos encontram-se conectados às prisões para adultos, bem como às áreas urbanas controladas por integrantes do PCC, orientando as suas ações de acordo com os princípios e políticas do Partido.

Durante a sua narrativa, é notável o esforço da Fundação Casa em garantir que tuas imagens não fossem aproveitadas para além dos muros. Ao mesmo tempo, elas exercem profundo fascínio nos meninos. Em ambos os casos, influenciados pela mesma possibilidade: a comunicação. O que esses jovens querem comunicar e o que a Fundação quer esconder?

De fato, ao longo das oficinas que ministrei aos adolescentes, pude constatar o interesse de meus interlocutores pelas fotografias que, aliás, eram produzidas por eles mesmos. Ora, se atentarmos para o fato de que a medida socioeducativa de internação, de certa forma, caracteriza-se pelo esquecimento, bem como pela invisibilidade dos adolescentes que permanecem do lado de dentro das muralhas, tal interesse torna-se compreensível; afinal, em locais onde sequer há um espelho para que os adolescentes possam observar as mudanças em seus próprios corpos, o fato de estar em frente à câmera fotográfica tem consequências subjetivas relevantes. Vale ressaltar que em diversos retratos individuais os adolescentes aparecem atrás de grades enferrujadas, simulando armas com as mãos. Nesse sentido, o corpo estampado no papel fotográfico, ao atestar a passagem de meus interlocutores pela cadeia, constitui-se como símbolo de status, uma espécie de capital simbólico positivo. Certa vez, um jovem me disse o seguinte: “ah, senhor, querendo ou não, ter uma foto nossa dentro da cadeia é…como que eu posso dizer? Vamos supor que eu tivesse interesse de continuar no crime, porra, se eu colar com a foto na biqueira [ponto de venda de drogas], os caras vai se ligar que eu tenho uma caminhada [experiência], que eu não sou só um novato que quer emoção”. Acredito que essas colocações evidenciam o que a própria instituição deseja esconder, afinal, os cenários das cadeias da Fundação CASA destoam, profundamente, do que seriam as imagens relativas às medidas socioeducativas.

A dinâmica de socialização a que são submetidos os internos, adequando-se a uma vida que lhes permite sobreviver nas unidades educacionais, não poderá ser reproduzida fora dos muros. Essa é uma afirmação tua no livro. Baseado nas entrevistas que fez com internos que saíram do sistema, como eles passam a lidar com essas diferenças violentas?

Nas cadeias dominadas, que são os espaços institucionais em que realizei a pesquisa, os adolescentes são os principais responsáveis pela gestão cotidiana de tais unidades. Para tanto, alguns jovens – também chamados de disciplinas – se dividem em uma série de postos hierárquicos, a saber, setorfaxinaencarregado e piloto. Vale notar que essas posições também operam no sistema prisional adulto, o que mais uma vez evidencia a simetria existente entre o universo carcerário e o sistema socioeducativo. Os faxinas, por exemplo, são responsáveis por reunir os internos que participam dos cursos culturais e profissionalizantes oferecidos pelas ONGs. Além disso, atuam como uma espécie de canal de comunicação entre os jovens da população – que não ocupam postos de liderança – e os agentes institucionais. Já os pilotos, entre outras atribuições, são responsáveis pelas negociações junto ao diretor da unidade. O fato é que essas posições, no contexto das cadeias dominadas, são dotadas de prestígio e poder. Certa vez, durante uma entrevista realizada com um jovem já desinternado, que havia sido piloto de uma unidade, ele afirmou que sentia certa saudade do período em que esteve internado. Obviamente, a saudade sentida por esse garoto não era da instituição e muito menos daqueles que o espancaram, e sim dos companheiros que estiveram ao seu lado, do reconhecimento concedido pelos adolescentes da população, bem como da posição de liderança por ele ocupada. No momento da entrevista, curiosamente, ele trabalhava em uma empresa que contratava egressos do sistema prisional adulto, enchendo sacas de soja. Quer dizer, todo aquele prestígio associado à figura do piloto foi diluído no exato momento em que o adolescente deixou as muralhas institucionais. Do lado de fora, como ele mesmo me disse: “eu era só mais um, lá dentro eu tocava uma cadeia”.

É motivo de constante análise e notícia, o fato do PCC já estar presente nas unidades da Fundação CASA. Você tem alguma dúvida disso? Qual é o tamanho da influência do PCC nas unidades da Fundação Casa, hoje?

Fábio Mallart: Ao longo do livro mostro, em detalhes, que os adolescentes das unidades dominadas – localizadas principalmente nos grandes complexos da instituição – sempre que possível, procuram seguir as orientações transmitidas pelos integrantes do Primeiro Comando da Capital, não só daqueles que se encontram no sistema carcerário, mas também daqueles que atuam em regiões periféricas da capital paulista. Antes de tomarem decisões importantes – como, por exemplo, a iniciativa de fazer uma rebelião – os adolescentes procuram entrar em contato com os irmãos, como são chamados os membros batizados no Partido. Atualmente, os ideais de Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade, que segundo os internos constituem o lema do PCC, fazem parte do léxico mobilizado pelos jovens. Além disso, há uma série de normas de conduta que orientam a experiência cotidiana dos adolescentes. Tais prescrições, semelhantes às que operam em prisões orientadas pelos princípios e políticas do PCC estipulam desde as vestimentas adequadas para um dia de visita, ou impedimentos relativos ao contato entre os internos e os funcionários, até diferenciações entre os próprios jovens. De fato, e por isso a importância da noção de simetrização, o sistema socioeducativo, progressivamente, se alinha à dinâmica dos presídios paulistas. Em parte, isso se deve às políticas do crime que atravessam os espaços de internação, mas também às políticas governamentais, que se caracterizam por uma lógica punitiva-carcerária.

Analisando as vantagens oferecidas pelo PCC a “quem fecha pelo certo” e se associa ao grupo [descritas em um dos “salve geral”], nota-se que elas residem nas brechas do Estado. Quanto você imputa de responsabilidade aos governos paulistas dos últimos 20 anos pela criação e ampliação do PCC nas unidades prisionais?

Fábio Ao contrário do que se pensa – e outros pesquisadores dizem isso há algum tempo – o surgimento e a consolidação do Primeiro Comando da Capital não está relacionado à ausência do Estado dentro do sistema penitenciário, mas, pelo contrário, à presença maciça do Estado e de suas políticas governamentais que, pelos menos nas duas últimas décadas, são marcadas por uma lógica punitiva-carcerária. O aumento vertiginoso da população carcerária nos últimos anos, bem como o surgimento de novos dispositivos de controle, como, por exemplo, o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), corroboram com esse cenário. Nas duas últimas décadas, por exemplo, o governo investiu pesado na ampliação do sistema penitenciário paulista, construindo dezenas de novas unidades prisionais, sobretudo no interior do estado, e arremessando para dentro dos presídios milhares de jovens. Nesse sentido, nota-se que o PCC se expandiu na mesma velocidade em que o governo apostou na ampliação do sistema carcerário. O encarceramento em massa, sem dúvida, favoreceu – e muito – a expansão e consolidação do PCC.

O conflito entre a PM e o PCC, no ano de 2006, tornou-se o cartão de visitas do Comando para mostrar força aos recém-chegados às unidades?

Uma das questões que procurei evidenciar ao longo da pesquisa é o fato de que muitos adolescentes já entram nos espaços de internação com um conhecimento prévio acerca do modo de operação do Primeiro Comando da Capital. Por exemplo, se um adolescente trabalha em um ponto de venda de drogas controlado por integrantes do PCC, antes mesmo de ingressar em uma unidade de internação, o jovem já conhece as normas de conduta e o modo de funcionamento do Comando. Isso apenas evidencia, mais uma vez, que aquilo que ocorre dentro das unidades de internação não é apenas o produto da dinâmica intramuros. As fronteiras entre o dentro e o fora são porosas e o que acontece dentro das muralhas institucionais também está em sintonia com o que acontece fora.

O que você pode dizer sobre a tortura aplicada nos internos por funcionários da Fundação?

Que as torturas e os espancamentos fazem parte da história institucional, me parece que não resta nenhuma dúvida. As unidades de internação, de fato, podem ser consideradas como verdadeiros campos de batalha, nos quais se processam disputas violentas – por vezes sangrentas – lutas silenciosas e tensões cotidianas. Contudo, é preciso fazer algumas diferenciações. Nas unidades dominadas, por exemplo, as torturas praticadas por funcionários, ainda que estas aconteçam, diminuem consideravelmente. Isso se deve ao fato de que, como já mencionado, nesses espaços os adolescentes detêm o controle, inclusive impossibilitando que determinados funcionários entrem no pátio interno. Já nos espaços classificados como unidades na mão dos funça, impera a lógica do licença senhor, licença senhora, cabeça baixa e mãos para trás. São os agentes institucionais que fazem a gestão do espaço institucional. São eles que detêm o controle, desde os passos dos internos até os minutos em que estes permanecem embaixo do chuveiro. Nesses locais, situados, por exemplo, no complexo Brás, inclusive como forma de assegurar a manutenção do quadro institucional, pude notar que as humilhações e os espancamentos contra os jovens eram mais frequentes. Nesse sentido, os insultos e as agressões de determinados funcionários constituem-se como estratégias para assegurar o domínio do espaço institucional, isto é, para manter a unidade na mão dos funça.

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