Vizinha Faladeira e a cor do carnaval de rua

Wikifavelas lança um olhar sobre Santo Cristo, bairro plebeu do Rio, e sua relação com uma escola de samba distante dos holofotes da mídia, mas próxima da comunidade. Sinal de que a favela constroi grande parte da cultura brasileira

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Introdução: Gizele Martins

O carnaval traz um clima de alegria, leveza, sociabilidade, rua, fantasia, festa, coletividade. Construído o ano todo para acontecer em fevereiro, o carnaval tem as mãos de muita gente. As favelas e periferias, assim como os subúrbios cariocas, têm fundamental importância na construção das escolas de samba, dos enredos e do samba no pé que carrega toda uma ancestralidade negra, pobre e periférica. De Salvador ao Rio de Janeiro, com o passar dos anos, o carnaval foi se espalhando por todo o país, unindo tradição e sincretismo. Há algumas décadas, virou uma grande referência, além de ser um dos principais atrativos para o turismo internacional brasileiro.

Além dos grandes desfiles de escola de samba que carregam todo um glamour e riqueza, evocando suas origens, muitas destas tomam o espaço da avenida para trazer como marca discussões sobre o período da escravatura, as religiões de matriz africana, os debates de raça, gênero, desigualdade social, direito à cidade… Tendo como pano de fundo, portanto, a imagem da favela e sua autoconstrução, além das lutas e resistências negras da história do nosso país. Por muitos anos este festejo, reconhecido hoje mundialmente, passou por forte criminalização, assim como é tudo aquilo que nasce do chão favelado, periférico e suburbano.

É neste período de carnaval que as ruas das favelas e periferias também se enchem de bate bola e de blocos de rua populares. Há blocos de crianças, jovens e adolescentes, adultos, idosos, outros só de mulheres, outros que carregam o samba no pé, mas também discussões sobre o direito de ir e vir dentro das próprias favelas e periferias do país. É um momento de festejo e alegria, mas a crítica social se faz presente principalmente dentro dos locais empobrecidos.

Recentemente, nestas primeiras semanas do ano que antecedem propriamente o carnaval e o desfile das tradicionais escolas de samba, inúmeros shows, blocos de rua, rodas de samba e eventos passaram a encher as ruas de todo o país e as discussões sobre apropriação cultural, gentrificação do samba e o direito de circular na cidade tomou um debate que viralizou nas redes sociais, pois geralmente quem está conseguindo atravessar a cidade para os desfiles de blocos de rua realizados nos grandes centros são pessoas brancas e de classe média e alta. Além disso, sempre neste período do ano, camelôs, catadores e trabalhadores informais que geralmente aproveitam esta época para garantir a sua renda, passam a ser criminalizados e perseguidos — como parte de uma política municipal em torno do mercado ambulante. Inclusive, a imagem que carrega a frase: “Carnaval é cheio de cor, mas só uma cata latinha”, ganhou o debate também nas redes sociais justamente em razão da crítica à participação de trabalhadores informais nos inúmeros blocos de rua.

Enfim, este festejo que atrai e carrega multidões é só mais uma data importante para mostrar que a favela se faz presente na história do país a todo tempo, pois é a favela que construiu a cidade com a força do trabalho e é a favela também que constrói grande parte da cultura brasileira. No entanto, é também a favela que é negada a colher os seus frutos quando o direito ao trabalho e o direito ao lazer lhes são violados desde sua própria “cria”. Para rememorar a história do carnaval e a importância da favela na construção do samba e dos símbolos da cidade e do país, o Dicionário de Favelas Marielle Franco dá especial destaque ao verbete produzido por Paulo Jaña Caamaño sobre a escola de samba Vizinha Faladeira, no bairro de Santo Cristo, na cidade do Rio de Janeiro.

A Vizinha Faladeira e o Bairro do Santo Cristo: História, Cultura e Identidade

Por Paulo Jaña Caamaño

A Vizinha Faladeira

“O espaço resultado da produção, e cuja evolução é consequência das transformações do processo produtivo em seus aspectos materiais ou imateriais, é a expressão mais liberal e mais extensa dessa práxis humana” (SANTOS, 2015, p.12). Essa célebre frase de Milton Santos equaciona as transformações espaciais no bairro do Santo Cristo, condicionando suas transformações aos processos produtivos. Essa região da cidade está integrada a economia brasileira há séculos, sendo um espaço vivo e objeto de disputa econômica e política.

Cabe lembrar que o bairro materializa a frase: “o espaço é a acumulação desigual de tempos” de Milton Santos. Logo o geossímbolo a ser discutido faz jus a essa categoria de espaço, pois a “Vizinha Faladeira”, uma das mais antigas e tradicionais escolas de samba do
Rio de Janeiro, faz parte da história contemporânea do bairro, atravessando diversos momentos políticos e econômicos da cidade. Tendo um papel fundamental tanto para a identidade da comunidade, quanto para sua organização enquanto território em disputa. Sublinho a importância da agremiação para o Morro da Providência e do Pinto, assim como para o bairro do Santo Cristo, pois foi um espaço capaz de congregar energias a um projeto em disputa (TURANO, 2013).

Essa região à época era habitada por trabalhadores do porto e comerciantes e o espaço de convívio e lazer se dava em parte no que seria a agremiação da Vizinha Faladeira. Logo, era um ponto de inflexão no espaço, pois articulava moradores, trabalhadores, artistas em contraponto à opressão de mecanismos do Estado. Devemos lembrar que as pautas identitárias que carregam a cultura periférica são constantemente marginalizadas e, por vezes, criminalizadas institucionalmente, como vislumbrado por Valadares. Em sua análise, baseada nas estatísticas oficiais, ele refuta representações vigentes por várias décadas sobre as populações faveladas como sendo constituídas, basicamente, de malandros e desocupados, quando não de marginais. (VALADARES, p. 25, 2020). Sabemos que a memória e identidade periférica são constantemente marginalizadas, portanto, identificada essa característica do Estado brasileiro, apresentaremos a cultura como um elemento identitário que contribui para organização da comunidade e integra a disputa pelo espaço e o direito à cidade.

A Vizinha Faladeira é uma escola tradicional do bairro, fundada oficialmente na década de 1930 e é um dos berços do samba carioca, sendo uma das escolas articuladoras para o primeiro desfile de carnaval da história do Rio em 1935. Uma escola regada de plumo e participação popular, fato esse que a afastou da construção das agremiações carnavelescas como conhecemos (TURANO, 2013). Devemos lembrar que o samba, assim como o carnaval, foram práticas reprimidas fortemente pelo Estado sob a prerrogativa da vadiagem entre as décadas de 1900 a 1930. Porém, foi através da cultura e da arte que a periferia resistiu a esse período até superá-lo, legitimando sua identidade e participando ativamente do circuito cultural da cidade (ALMEIDA, 2011). A legitimação dos desfiles das escolas de samba transforma-se na “manifestação máxima do carnaval carioca, a escola de samba marca o transbordamento da cultura popular no Rio de Janeiro.” (SOIHET, 2008: 155-156). Poderíamos contar uma história romantizada sobre como a legitimação da cultura periférica foi fruto da luta das comunidades, porém, sua legitimação vem em paralelo com a disputa por popularidade dos governos à época. Conforme aponta Gabriel Turano e Paula de Almeida, o fim dos anos 1920 foram turbulentos para cidade do Rio de Janeiro, pois o carnaval popular fazia frente ao Estado, ao passo que punha as celebrações nas ruas e articulava as comunidades na disputa pela cidade. Nesse sentido, era necessário apaziguar a relação entre a comunidade e o Estado em busca de estabilidade, então o carnaval é institucionalizado e passa a ser regulado pelo Estado através da União das Escolas de Samba (UES).

A nossa Vizinha Faladeira foi agente ativo entre 1920-1940, pois se foi aguerrida a organização carnavalesca dos anos 1930, representando-se “como grupo capaz de responder à busca de uma manifestação carnavalesca “autêntica” e “negra” (TURANO, 2013, p. 68), torna-se opositora na década seguinte, ao negar o carnaval regulado pelas elites culturais “que buscava encontrar nas manifestações populares a expressão de valores ligados à tradicionalidade, negritude e pureza” (TURANO, 2013, p. 68). Podemos dizer que a escola de samba do bairro do Santo Cristo representa parte importante do imaginário e do identitário dos morros da Providência e do Pinto, pois sua história atravessa diferentes momentos históricos da cidade do Rio de Janeiro. A escola também foi espaço para organização da comunidade na disputa sobre qual cultura periférica e negra se valeria na cidade. Logo, a sereia, símbolo da agremiação, representa mais do que uma semana festiva, mas toda a história de uma comunidade na disputa pelo acesso e legitimação da sua cultura.

Logo, entendemos a Vizinha Faladeira como um geossímbolo, visto que seu espaço possui significados políticos e culturais que fazem parte da identidade da favela. Compreendemos a agremiação como parte da identidade do bairro do Santo Cristo, que está inscrito em seu espaço através da própria agremiação, mas, também, pelos grafites espalhados pelas comunidades. Essa inscrição no espaço conta uma história do samba e da favela, fala sobre a organização da comunidade na disputa pela cidade, logo é um geossímbolo para o Santo Cristo, o morro da Providência e do Pinto.

O que são geossímbolos?

O que são geossímbolos e o que isso tem a ver com as pautas identitárias? Esse verbete apresenta a importância dos símbolos de identificação cultural/política/religiosa definidos espacialmente para a identidade das comunidades locais. Para exemplificar esse fenômeno, vamos discutir aspectos do bairro do Santo Cristo, dando ênfase à vivência no Morro da Providência. O geossímbolo é um termo cunhado com o propósito de elucidar a relação entre um símbolo constituído de valores (sociais, espirituais, econômicos) dentro do espaço.

Os geossímbolos são a ligação identitária de determinado grupo com “seus lugares”, ou seja, com seu espaço vivido sendo, portanto, uma forma de apropriação do espaço vivido, construído, na prática, pela implementação de “marcas” culturais, religiosas ou políticas de um grupo em seus espaços. Bonnemaison afirma: “O geossímbolo pode ser um lugar, um itinerário, uma extensão que, por razões religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos étnicos, assume uma dimensão simbólica que os fortalece em sua identidade” (BONNEMAISON, 2002, p. 102, apud CORRÊA, 2013).

Noção de território

O segundo conceito que devemos ter a mente é a noção de território que, para a literatura do pensamento geográfico, é composto por um espaço imbuído de relações de poder. Podemos dizer que o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural (HAESBAERT 2004 a: 79).

Para o objetivo de nossa discussão presente, iremos nos ater às relações de poder simbólicas, dotadas de culturalidade, religiosidade e identidade. É a este sentido que se vincula o conceito de “território santuário”. Trata-se, portanto, de uma área constituída por geossímbolos, determinando uma relação de poder e de afirmação cultural de um grupo para com a significação que este constrói no espaço.

Os sítios naturais sagrados (SNS) são definidos como “áreas de terra ou água que tem especial significado espiritual para os povos e comunidades”(WILD & MCLEOD, 2008). Notamos, a partir desta definição, que os conceitos que estamos apresentando e discutindo possuem uma ordem crescente de inter-relação. Primeiramente temos os geossímbolos que, somados e espacializados, constituem o território santuário, dotado de significações culturais e histórico-simbólicas, não necessariamente espirituais, onde está impressa parte identitária importante de determinado grupo cultural. Por fim, temos os sítios naturais sagrados, que se diferenciam do anterior pela presença de um significado espiritual.

Exemplo: O Espaço Sagrado da Curva do S – Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro

O espaço sagrado

O Espaço Sagrado da Curva do S está localizado no Parque Nacional da Floresta da Tijuca, Alto da Boa Vista (RJ) e foi inaugurado em 2014 como um espaço sacro para realização de ritos de religiões de matriz afro-brasileira. O espaço tem o objetivo de unir a preservação ambiental à liberdade das práticas de rituais sagrados. Entre as soluções sustentáveis desenvolvidas pela Secretaria de Estado do Ambiente (SEA) está o reaproveitamento do alguidar de barro – espécie de potes utilizados nos ritos – que são convertidos em vasos de plantas, e a limpeza de todo SNS, com a retirada de 2,5 toneladas de resíduos. Há também uma composteira para o descarte de matéria orgânica utilizada nas práticas do sagrado, destinada à transformação de lixo orgânico em adubo.

Referências

DE ALMEIDA, PAULA CRESCIULO. O carnaval de 1935: oficialização e legitimação do samba. 2011

HAESBAERT, Rogério. Regional Global: dilemas da região e da regionalização na geografia contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018

SANTOS, Milton. O espaço geográfico como categoria filosófica. Terra Livre, n. 5, 1988.

SOIHET, Rachel. Reflexões sobre o carnaval na historiografia – algumas abordagens. Tempo. Revista do Dept. de História da UFF. 1999, vol.4, n.7, p.169-188

TURANO, Gabriel da Costa; FERREIRA, Felipe. Incômoda vizinhança: a Vizinha Faladeira e a formação das escolas de samba no Rio de Janeiro dos anos 30. Textos escolhidos de cultura e arte populares, v. 10, n. 2, 2013.

VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Revista brasileira de ciências sociais, v. 15, p. 05-34, 2000.

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