Paulo Freire para além da alfabetização

Livro organiza os aportes do educador para a emancipação através da Comunicação. Em forte diálogo com as ideias de Fanon, Freire esmiúça conceitos como “diálogo”, “violência” e “libertação” em oposição à “cultura do silêncio”

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Por Tatiana Carlotti, na Carta Maior

O lançamento de Paulo Freire: a prática da liberdade para além da alfabetização (Autêntica/FPA, 2021), de Venício A. de Lima, professor emérito da Universidade de Brasília, ultrapassa as comemorações do centenário de nascimento de Paulo Freire, neste mês de setembro. Com versão online disponível no site da Fundação Perseu Abramo, e exemplar físico à venda nas principais livrarias do país, a obra explicita a urgência de revisitarmos a teoria e prática da liberdade em Paulo Freire, em busca de meios minimamente eficazes para o enfrentamento da escalada fascista, no Brasil e no mundo.

Amigo pessoal de Freire e pesquisador de sua obra, Lima vem defendendo, e desde o doutorado, publicado em 1981 sob o título Comunicação e cultura: as ideias de Paulo Freire (adquira edição atualizada), que muito além de um método de alfabetização de adultos, o pensamento freireano se constitui uma teoria sobre a liberdade humana, indissociável de sua práxis política, com implicações profundas em outros campos do saber, em particular a Comunicação e a Cultura. 

Articulando citações de diferentes fontes (livros, seminários, documentos e entrevistas), em geral dispersas, Lima nos guia pelo pensamento de Paulo Freire, ajudando-nos a compreendê-lo de modo mais organizado e integrado com os contextos de produção. Ele parte, por exemplo, das influências humanistas do pensador, umbilicalmente ligado à Teologia da Libertação, esmiuçando as características (e dificuldades) de sua linguagem relacional e dialética.

Lima também comenta sobre os problemas interpretativos, frutos de traduções e edições descuidadas, ajudando (e muito) a vida dos pesquisadores. A obra, porém, não é dirigida apenas a iniciados, pelo contrário. Com didática e em linguagem acessível, ele esmiúça conceitos-chaves como “diálogo”, “violência” e “libertação”, instigando-nos a repensar a dinâmica de opressão vigente, e não apenas no Capitalismo, que Freire qualificava como um sistema intrinsecamente mau, que deve ser radicalmente transformado e não simplesmente reformado (citado por Lima, p.69).

Um capítulo inteiro do livro é destinado às ideias do psiquiatra e filósofo Frantz Fanon, com quem Freire estabelecerá forte diálogo, sobretudo em relação à dinâmica da opressão nas sociedades que sofreram a violência colonial, como a africana e a brasileira. Freire, inclusive, foi o primeiro a trazer Os Condenados da Terra (1961) para a discussão, e já na década de 1960. (Leia o artigo de Lea Maria Aarão Reis “A hora e a vez de Fanon”).

Além desse panorama sobre as influências, ideias-chaves e características da linguagem freireana, o livro traz dois conceitos – Comunicação Libertadora e Cultura do Silêncio –, trabalhados por Lima a partir de Freire, ajudando-nos não apenas a dimensionar o tamanho das violências às quais estamos submetidos, mas, sobretudo, a pensar – e a sonhar – com uma imprensa a serviço da liberdade humana, e não da alienação conforme conhecemos.

Aliás, como aponta o professor e cientista político Juarez Guimarães (UFMG), em seu prefácio da obra, o que Lima nos oferece é um documento de reparação e uma moção de esperança, porque o que pode refundar a democracia brasileira é este sentimento político radical de liberdade que sopra na obra de Paulo Freire (p.17).

O livro é complementado por três anexos: o primeiro traz o fac símile de um manuscrito de 1981 que Lima ganhou de Freire, e que traz um recado ao PT, como veremos adiante. O segundo anexo é a republicação do prefácio de Lima para a reedição de Política e Educação (2007), a pedido da viúva do pensador, Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire). Já o terceiro e último anexo é um o relato pessoal de Lima sobre sua amizade com o pensador ao longo de duas décadas.

Violência, Diálogo, Libertação

Uma das primeiras lições sobre o pensamento de Freire é o fato de a práxis política ser o centro de sua teoria, escrita em permanente conexão com a vivência de Freire e o pensamento do seu tempo, no caso. O “pensamento humanizador” libertário é, certamente, o principal e mais universal fio condutor, não só da Pedagogia do Oprimido [de 1968], mas de toda obra de Freire, afirma Lima (p.29)

Mas, o que significa esse pensamento humanizador?

O próprio Freire, citado por Lima, explica:

O Humanismo que, pretendendo verdadeiramente a humanização dos homens, resista a toda forma de manipulação, na medida em que esta contradiz sua libertação. Humanismo que vendo os homens no mundo, no tempo, ´mergulhados´ na realidade, só é verdadeiro enquanto se dá na ação transformadora das estruturas em que eles se encontram “coisificados”, ou quase “coisificados”. Humanismo que, recusando tanto o desespero quanto o otimismo ingênuo, é, por isto, esperançosamente crítico. E sua esperança crítica repousa numa crença também crítica: a crença em que os homens podem fazer e refazer as coisas; podem transformar o mundo. Crença em que, fazendo e refazendo as coisas e transformando o mundo, os homens podem superar a situação em que estão sendo um quase não ser e passar a ser um estar sendo em busca do ser mais (p.28) (grifos nossos)

Partindo, portanto, da esperança crítica na transformação humana, Freire nos coloca em alerta sobre a manipulação, o otimismo ingênuo, a coisificação do homem pelo homem, a perda de esperança, o quase não ser – tão em voga hoje –, enquanto meios usados pelo opressor em seu domínio.

A linguagem de Freire, observa Lima, não é linear, mas dialética e relacional. Nela, os conceitos são sempre introduzidos uns em contraposição aos outros: opressor versus oprimido; extensão versus comunicação; educação “bancária” versus problematizadora; cultura do silêncio versus ação cultural libertadora; pensar ingênuo versus pensar crítico; autoritarismo versus autoridade; liberdade versus licença; ler versus estudar; memorizar versus compreender e assim por diante (p.34).

Dentre os pares antagônicos, destaca-se a concepção freiriana de opressor versus. oprimido, fortemente influenciado pelo pensamento de Frantz Fanon (imagem ao lado) que, em sua análise sobre as deformações psicológicas ocasionadas pela opressão colonial, destacou o papel crucial da “consciência de si” e “de seu lugar no mundo” para os argelinos durante a Guerra de Independência da França, conquistada em 1962.

Citando Fanon, em “Educação como Prática da Liberdade” (1967), Freire defenderá o direito dos oprimidos por uma questão mesma de amor, de reagir à violência dos que lhe pretendam impor o silêncio.

A violência do oprimido, ademais de ser mera resposta em que revela o intento de recuperar sua humanidade é, no fundo, ainda, a lição que recebeu do opressor. Com ele, desde cedo, como salienta Fanon, é que o oprimido aprende a tortura. Com uma sutil diferença neste aprendizado – o opressor aprende a torturar, torturando o oprimido. O oprimido, sendo torturado pelo opressor. (citado por Lima, p.50-51).Daí importância das categorias de Freire, inclusive, para evitarmos, em tempos confusos como os nossos, tomar por opressor o oprimido, e vice-versa. Em seu pensamento, explica Lima, violência é qualquer situação de dominação ou opressão que imponha o silêncio, e que impeça a realização da vocação ontológica e histórica dos homens de “ser mais” (p.64).

Nas palavras de Freire, em Pedagogia do Oprimido (1968):

Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que se geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo. Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos. Quem inaugura o ódio não são os odiados, mas os que primeiro odiaram.

Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade negada, mas os que a negaram, negando também a sua. Quem inaugura a força não são os que se tornaram fracos sob a robustez dos fortes, mas os fortes que os debilitaram. (citado por Lima, p.65)

A violência é um ato dos opressores que, complementa Lima, enquanto classe dominante, controlam a própria definição do que seja violência (imagem ao lado). É por isso que quando o oprimido se levanta, reage, responde à violência do opressor, é a ele “que se chama de violento, de bárbaro, de desumano, de fraco” (p.67). Mas a resposta do oprimido – que não é só um direito, mas um dever – não é violência. Pelo contrário, é ´resposta legítima´, até porque somente os oprimidos podem libertar a si mesmos e aos opressores (p.67-70). Freire inclusive alerta para a ambiguidade dos oprimidos. Aos interlocutores do diálogo libertador, as lideranças revolucionárias, recomenda confiar no potencial e capacidade de libertação das massas, mas desconfiar, sempre desconfiar, da ambiguidade dos homens oprimidos. Desconfiar dos homens oprimidos não é propriamente desconfiar deles enquanto homens, mas desconfiar do opressor “hospedado” neles. (citado por Lima, p.61)

No texto “Alfabetização e Miséria”, de 1996 está publicado no livro Pedagogia da Indignação, a primeira coletânea post mortem de Paulo organizada pela viúva Nita Freire, ele nos ensinava que a libertação só é possível quando se dá a expulsão do opressor de “dentro” do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade. (citado por Lima, p.61)

Essa extrojeção, aliás, só pode ocorrer quando os oprimidos se distanciarem dos opressores, reconhecendo-os como antagonistas. Para isso, o conceito de “diálogo” em Freire é fundamental. Fundador e herdeiro da palavra-práxis do cristianismo transformador da Teologia da Libertação, Freire concebe a palavra como um ato de libertação e o diálogo a pronúncia do mundo pela palavra verdadeira, ou seja, a sua práxis política. Ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade, ensina.

Daí a impossibilidade de diálogo entre os que querem “a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito (…) Não pode haver diálogo entre opressores e oprimidos, como não pode haver diálogo – conciliação – entre classes sociais antagônicas (…) No máximo pode haver um pacto. Em determinado momento a classe dominada aceita um pacto com a dominante, mas passada a situação que gerou a necessidade do pacto, o conflito reacende. É isso que a dialética ensina. (citado por Lima, p.59-61).

Comunicação libertadora vs. Cultura do Silêncio

Distante do conceito behaviorista da Comunicação como “transmissão” de uma mensagem ou informação, Freire irá trabalhar a ideia de Comunicação como uma situação social em que as pessoas criam conhecimento juntas, transformando e humanizando o mundo. Fundada no diálogo, ela só é possível a partir da interação entre Sujeitos livres e em condições de igualdade, empenhados na construção de um pensamento-linguagem autêntico gerado na relação dialética entre o sujeito e sua realidade histórica e cultural concreta. É por isso, aponta Lima, que em sociedades dependentes ou alienadas culturalmente como a nossa, o pensamento-linguagem se encontra dissociado da ação (práxis libertadora) implicada pelo pensamento autêntico. (p.81-82)

Para Freire,

Dizer a palavra (é) um ato humano que implica reflexão e ação. Como tal, trata-se de um direito humano primordial, e não privilégio de uns poucos. Dizer a palavra não é um ato verdadeiro a menos que esteja simultaneamente associado ao direito de autoexpressão e expressão do mundo, de criar e recriar, de decidir e escolher e, em última análise, de participar do processo histórico da sociedade (citado por Lima, p.83).

É por isso, conclui Lima, que a verdadeira comunicação será sempre uma comunicação libertadora.

A concepção implícita de liberdade na definição dialógica de comunicação elaborada por Freire é constitutiva de uma cidadania ativa que equaciona autogoverno com participação política, contrariamente à liberdade negativa do liberalismo clássico. A liberdade não antecede à política, mas se constrói a partir dela. A educação (comunicação) deve ser uma prática da liberdade. Ter voz e manifestá-la publicamente, em igualdade de condições com qualquer outra cidadã ou cidadão é condição necessária ao processo democrático. O sujeito-cidadão constitui o eixo principal da vida pública democrática.
(p.94-95)

Daí o impacto do último capítulo da obra, Cultura do Silêncio, em que Lima, a partir de uma série de exemplos, extraídos de Freire, demonstra o quanto essa cultura impera no nosso cotidiano, e o impacto que a Comunicação Libertadora, crucial à democracia, poderia ter. Como aponta Lima:

A cultura do silêncio provoca a “aderência” do oprimido à opressão, e é incompatível com a democracia. Ela se constituiu entre nós como a ambiência de resiliência e resistência de mulheres e homens emudecidas tanto por políticas de silenciamento específicas, quanto pelo efeito silenciador do discurso hegemônico que sobrevivem classistas, patriarcais [imagem ao lado] e racistas (p.128).

As omissões praticadas rotineiramente no enquadramento das coberturas jornalísticas dos oligopólios de mídia obedecem a políticas e estratégias editoriais específicas e são, na verdade, formas de silenciamento e de censura disfarçada. Há um sem número de casos pesquisados e documentados na nossa história política recente (p.127)

Como ensina Freire, as sociedades (como a brasileira) a que se nega o diálogo – comunicação – e, em seu lugar, se lhes oferecem comunicados […] se fazem preponderantemente mudas. O mutismo não é propriamente inexistência de resposta. É a resposta a que falta teor marcadamente crítico (citado por Lima em p.110).

Cabe, portanto, ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar ´que o público ouça a todos que deveria´, ou ainda, garanta a democracia exigindo ´que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o discurso dos menos poderosos´, conclui Lima (p.119).

O Estado brasileiro, no início da década de 1930, optou por transferir à iniciativa privada a exploração prioritária do serviço público de radiodifusão. A partir daí, foi se construindo uma política de silenciamento que, salvo raríssimas exceções, favorece a manifestação pública das vozes dominantes e sempre criou barreiras e obstáculos à inclusão das vozes dos oprimidos históricos: povos originários, negros, mulheres e classes trabalhadoras, complementa (p.125).

Presença de Freire

Um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, Paulo Freire escreveu à mão, em 1981, o texto Partido Político como Educador, subsídio para a elaboração do Plano de Educação do PT daquele ano. Esse manuscrito foi doado por Freire a Lima que nos presenteia no Anexo 1 com o fac símile desse material. Quase desconhecido, o manuscrito é uma raridade e demonstra cabalmente que a prática da liberdade em Paulo vai muito além da alfabetização, aponta.

No texto, publicado em Educação como Ato Político Partidário (Cortez, 1988), Freire lembra o PT que tanto no caso do processo educativo quanto no do ato político ou do Partido, uma das questões fundamentais é a clareza em torno do a favor de quem e do que, portanto, contra quem e contra o que fazemos a educação; e a favor de quem e do que, portanto, contra quem e contra o que, desenvolvemos a atividade política. Quanto mais ganharmos esta clareza através da política tanto mais percebemos a impossibilidade de separar o inseparável: a educação da política (p.132).

Como explica Lima, em seu prefácio à reedição de Política e Educação (2007) de Freire, republicado no segundo anexo do livro, durante sua longa experiência de exílio [Freire] tivera contato com realidades radicalmente distintas no mundo desenvolvido e nas novas nações africanas que confirmavam suas vivências de nordestino brasileiro. Havia lecionado nas mais conceituadas universidades do planeta e seus inúmeros livros estavam traduzidos nos principais idiomas modernos. De volta ao Brasil, tinha sido um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo. Por tudo isso, Freire tinha autoridade para retomar um tema de centralidade indiscutível em sua obra: não há educação neutra. O ato de educar é fundamentalmente um ato político” (p.137).

Para arrematar, no último anexo da obra, Lima traz um relato pessoal sobre como passou de pesquisador da obra freireana a condição de amigo do pensador e de sua família. Devo também a Paulo um poderoso e eloquente testemunho cristão, cuja espiritualidade foi reafirmada várias vezes, por escrito e/ou em depoimentos gravados. Ao longo dos anos, Paulo Freire tem se constituído em uma das principais influências de minha caminhada e trajetória intelectual, além de referência ética e exemplo de vida, conclui (p.145).

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