Pandemia, penúria e trabalho infantil
Sem acesso ao ensino remoto, e com famílias abatidas por mortes e desemprego, cresce o número de crianças expostas ao trabalho precoce. Estima-se que 10% dos estudantes das classes mais empobrecidas deixaram a escola na pandemia
Publicado 23/03/2021 às 19:08 - Atualizado 23/03/2021 às 19:09
Por Joana Suarez, Luiza Muzzi e equipe do projeto Lição de Casa, na Repórter Brasil
O ano é 2020: três irmãos de 12, 13 e 14 anos pediam dinheiro nos arredores de um shopping em São Luís, no Maranhão. No Sul do Brasil, em Barra do Ribeiro (RS), um menino de 14 anos aumentou a jornada na roça do pai e dos vizinhos. Em um engenho de cana no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, um garoto de 13 anos teve a mão amputada ao sofrer um acidente operando máquina. Também na zona rural, agora do Centro-Oeste, 14 adolescentes estavam sendo escravizados no campo. Na outra ponta do país, ao Norte, uma criança de 10 anos limpava a casa dos patrões da mãe, faxineira no Amapá.
Quando os portões das escolas se fecharam, em março de 2020, para proteger a população do coronavírus, as portas da miséria, da vulnerabilidade e de outras violências se escancararam para crianças e adolescentes por todo o Brasil. Excluídos do ensino remoto, muitos foram empurrados para o perigoso mundo do trabalho infantil.
Em todas as regiões brasileiras, o projeto Lição de Casa – que faz uma cobertura independente dos impactos da pandemia na educação brasileira – encontrou pelo menos 70 meninos e meninas de 10 estados e do Distrito Federal que foram vítimas de exploração do trabalho infantil no primeiro ano da pandemia da Covid-19. Durante três meses, a reportagem entrevistou, além das vítimas do trabalho precoce, cerca de 20 profissionais de seis estados, entre professores, pesquisadores, conselheiros tutelares, auditores fiscais do trabalho e procuradores do Ministério Público do Trabalho, além de representantes de entidades ligadas à infância e adolescência, como o Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, a Unicef e a Organização Internacional do Trabalho. Veja aqui o resultado completo da investigação.
Os especialistas são unânimes em dizer que o trabalho infantil foi
ampliado durante a crise sanitária e econômica causada pela pandemia. O
fechamento das escolas, por conta do isolamento social, agrava o
quadro.
No primeiro semestre de 2020, o Disque 100 (Direitos Humanos)
recebeu, em média, 10 denúncias por dia referentes à exploração da mão
de obra infantil. O dado inédito, obtido pela reportagem via Lei de
Acesso à Informação, aponta que em todo o país foram 1.859 registros em
seis meses. Apesar de aparentar uma pequena queda comparado a 2019 –
quando foram registradas 11 denúncias diárias –, o número do ano passado
é considerado alto pelos especialistas, justamente por estar
subnotificado em uma época atípica de isolamento social.
Dos episódios encontrados pela reportagem, muitas das crianças
estavam trabalhando em busca de comida, por conta do agravamento da
crise econômica. Maia*, de 13 anos, passou por cima do sofrimento com a
morte da avó, que pegou covid, em meio aos sanduíches que fazia e
entregava nas ruas de Recife. A renda da casa caiu muito sem a
aposentadoria da avó e após o desemprego da mãe diarista. A menina
praticamente trocou a noite pelo dia, e os estudos, a essa altura, se
reduziram a ajudas virtuais de colegas para que ela passasse de ano.
Sem a escola, sobrou para Vinícius* e Ricardo*, irmãos de 10 anos,
vender os salgados, feitos pela mãe, na praça central da cidade de São
Borja. A família de oito filhos vive em um assentamento no Rio Grande do
Sul. A calçada de um supermercado em Belo Horizonte substituiu a sala
de aula nas manhãs e tardes de Kevin*, de 7 anos. Lá, ele recebia uns
trocados carregando sacolas com as compras e comidas dos clientes.
“Precisamos agir rápido. Antes já havia um ‘gap’ enorme entre os
alunos da escola privada e os da pública. Com a pandemia, essa distância
vai aumentar ainda mais”, destaca Maria Cláudia Falcão, coordenadora do
Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho do
Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.
Essa lacuna se aprofunda ainda mais com o abandono escolar inflamado
pela crise sanitária e econômica. Pesquisa do Datafolha mostrou que pelo
menos 10,6% dos estudantes das classes D e E abandonaram as escolas na
pandemia. Já a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad
Contínua) do IBGE de 2019 revela que, dos 1,8 milhão de crianças e
adolescentes, com idades entre 5 e 17 anos em situação de trabalho precoce,
66% eram pretos ou pardos. Os dados referentes a 2020 ainda não foram
divulgados pelo IBGE, mas especialistas acreditam que os números não
reflitam a realidade por conta principalmente da subnotificação.
“A sociedade brasileira é muito conivente com o trabalho infantil . De todas as violações de direitos, essa é a mais aceita”, afirmou Tânia Dornellas, assessora do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).
Distantes do olhar protetor dos educadores
A ausência de estatísticas sobre o ano passado, a subnotificação e a
falta de ações governamentais tornam-se ainda mais graves somadas ao
afastamento dos alunos do olhar atento de um professor. Eram os
educadores que acolhiam quando a casa e a rua oprimiam. A distância e as
telas intermediando o contato tornaram-se barreiras para essa relação
de afeto e cuidado.
O professor Gilberto Bazilewicz conseguia, olhando as mãos calejadas
dos seus alunos, perceber aqueles que estavam trabalhando pesado nas
lavouras em Barra do Ribeiro, município rural que fica a 56 km de Porto
Alegre. Ele aprendeu a reconhecer o que viveu na própria infância.
Gilberto abandonou a escola aos 14 anos pela lida no campo. Desde os 10
morava em uma fazenda onde recebia abrigo, comida e dinheiro em troca de
mão-de-obra.
Quando os meninos estavam na escola, havia ao menos um turno dedicado
ao aprendizado. Os educadores sentem o quanto foi perdido por conta do
fechamento das escolas durante a pandemia, e ainda não sabem se será
possível recuperar. “Alguns [estudantes] já me disseram que conseguiram
trabalho na pandemia, não vão voltar para a escola”, contou Gilberto.
Entre as crianças que a reportagem encontrou, várias foram forçadas
ao trabalho por conta dessa maior vulnerabilidade fora da escola.
Manuela*, de 12 anos, filha de catadores no Rio Grande do Sul, estava
entregando as atividades em branco e os professores souberam que ela
catava latinhas nas ruas para não ficar sozinha em casa.
Em Macapá, a pequena Catarina* tinha compromissos incompatíveis com
seus 11 anos de vida. Vendia doces, cuidava da irmã mais nova e
trabalhava em um espetinho à noite. Nem se ela quisesse ou os
professores ajudassem, seria possível, com essa rotina, assistir aulas
de manhã pela tela quebrada do celular. “Mamãe não podia trabalhar, aí
eu resolvi começar a vender bolo e cupcake aqui na ponte”, contou a
criança de cabelos cacheados,, que conseguiu juntar R$ 150 em um mês
para as compras de casa. O dinheiro foi boa parte do sustento da família
quando a mãe pegou covid trabalhando de faxineira informal.
A reportagem procurou o Ministério da Educação para saber quais foram as ações nacionais para combater a evasão escolar. A pasta destacou duas medidas: um webinário em parceria com o Unicef para promover a busca ativa dos alunos, e um plano emergencial de contribuição financeira com as escolas para elas se reestruturarem para o retorno presencial. A pasta, no entanto, não informou os valores investidos no plano emergencial.
Uma violação invisível
Narrativas que incentivam o trabalho infantil aparecem mais fortes nos contextos de crise econômica, como mentirosa ideia de que é “melhor estar trabalhando do que na criminalidade”. O crime, na verdade, é também um local de exploração. O tráfico de drogas recruta muitas crianças e consta na lista das piores formas de trabalho infantil.
Júlio*, de 12 anos, desistiu de estudar por causa da aprendizagem
remota no ano letivo de 2020. Passou a ficar mais tempo nas ruas da
favela em que mora, em Belo Horizonte. Desviado da rede de proteção, foi
convocado para ser olheiro do tráfico.
“É algo que acaba sendo mais visto como crime, não como trabalho
infantil, apesar de ser uma exploração grave, pois muitos perdem a
vida”, ponderou a pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais,
Alessandra Kelly Vieira, que analisou como a Justiça Juvenil tem
privilegiado as medidas punitivas em vez das protetivas (e preventivas),
em doutorado sobre o tema.
Quando as pessoas ficam indiferentes a essa violação, de alguma forma
estão sendo também coniventes. Em um restaurante na periferia de Belo
Horizonte, a conselheira tutelar Rosimeire Pinto Trindade esbarrou com
Marina*, de 8 anos, ajudando a mãe com os clientes durante a pandemia. A
genitora disse que se a filha não estivesse ali, estaria na rua, e que
isso seria pior.
Rosimeire destaca que as famílias são numerosas e precisam de renda.
“Foram criadas assim [trabalhando desde cedo], já é uma constante na
cultura deles”. A conselheira explicou que o ideal seria que a criança
estudasse para ter um trabalho digno e protegido. “Mas com as escolas
fechadas, é tudo mais difícil”.
O trabalho infantil atinge, majoritariamente, crianças pobres, em geral negras ou pardas, moradoras da periferia, conforme o perfil mais comum dessas vítimas. Mas a interface dessa violação com o racismo e a pobreza é pouco percebida.
Para crianças e adolescentes que já tinham o trabalho como uma
imposição antes da covid-19, as horas diárias debruçadas ao serviço
foram intensificadas. No município de Barra do Ribeiro, interior do Rio
Grande do Sul, André*, de 14 anos, já ajudava o pai na lavoura no
contraturno escolar. Sem as aulas presenciais, aumentou sua carga de
trabalho com serviços prestados para os vizinhos. No mesmo estado, em
São Luiz Gonzaga, Danilo*, de 15 anos, dobrou o expediente como ajudante
de pedreiro.
Falcão, da OIT, afirma que muitas famílias tiveram a renda impactada
por conta do isolamento social – assim, não adianta apenas falar aos
pais que as crianças e adolescentes “não podem trabalhar” – é preciso
oferecer alternativas. Ela destaca que o trabalho é permitido para
adolescentes, “desde que seja na idade correta e em uma ocupação que
lhes assegure dignidade”.
Quem teve a oportunidade de passar pela aprendizagem profissional, por exemplo, costuma ver a experiência como decisiva para vencer as limitações da própria condição social. Mas a possibilidade de trabalho como menor aprendiz não é uma realidade na zona rural ou em cidades de pequeno porte, já que não há, nesses ambientes, quem gere essas vagas.
Mão amputada e trabalho escravo
A equipe do Lição de Casa descobriu o exemplo extremo de Antônio*, de 13 anos, que perdeu uma mão por causa da exploração infantil em um engenho, mas também investigou histórias muitas vezes já normalizadas, como a de Rafaela*, que aos 10 anos seguia por caminho semelhante ao de sua mãe, já aprendendo o trabalho de doméstica.
No caso de Rafaela, a ausência da escola pela crise sanitária mundial
foi o que a levou à casa dos patrões. “Já era meio difícil levar os
estudos na escola, faltava bastante por causa dos problemas aqui de
casa, e aí com a pandemia deixei de ir de vez”, afirma a garota,
moradora do bairro Infraero II em Macapá. Mas, na casa dos padrões, não
lhe foi permitido ser menina, brincar ou ler livros; precisava
“justificar” sua presença.
As oportunidades concedidas a Antônio, Rafaela e às dezenas de crianças que localizamos na produção do Sem Recreio
não são as mesmas recebidas por aquelas que crescem protegidas em casa.
Trabalhar precocemente não gera qualquer qualificação nem prepara para o
mercado.
Com a formação comprometida, menor a chance de empregabilidade,
restando funções mal remuneradas. “O risco é aquela criança repetir esse
histórico de vida com seus filhos e netos; é o que chamamos de ciclo
intergeracional da pobreza”, explicou Luciana Coutinho, procuradora do
Ministério Público do Trabalho em Minas Gerais.
Pessoas resgatadas do trabalho escravo comumente passaram pelo
trabalho infantil e não concluíram os estudos. Ficam cada vez mais
expostas às violações. “Você não permitir que o ser humano se torne
crítico, com habilidades que vão ajudar no futuro, é muito perverso”,
enfatizou Tânia Dornellas, especialista em Políticas Públicas e em
Ensino Interdisciplinar em Infância e Direitos Humanos.
No primeiro ano de pandemia, em três operações de resgate no Mato
Grosso do Sul tinham menores de idade – o que surpreendeu o auditor
fiscal do trabalho Antônio Parron. “Fazia muito tempo [desde 2003] que
eu não via tanto menino assim em serviço pesado”, afirmou ele, que está
nessa função há 25 anos.
Oito adolescentes foram escravizados no município de Nioaque. Em
Porto Murtinho, dois indígenas de 14 e 15 anos foram resgatados fazendo
limpeza de pasto com uso de agrotóxico. Estavam em condições semelhantes
à escravidão havia dois meses, alojados em barracos de lona, sem
banheiro, no meio do mato.
Desmonte de políticas públicas
A covid-19 não era uma ameaça quando a ONU decidiu que 2021 seria declarado o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil.
No Brasil, a luta pela erradicação, já complexa, esbarrou em um desafio
anterior ao fechamento das escolas: o desmonte de políticas públicas.
Centros de Referência de Assistência Social e os Conselhos Tutelares estão fragilizados.
Além dos cortes orçamentários, inclusive com a redução de equipes, o
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) –
instância máxima de deliberação de políticas para os menores – atualmente funciona por força de liminar.
Essa sequência de retrocessos afeta diretamente o combate ao trabalho infantil. “A pandemia encontrou o Brasil em situação de imunidade baixa”, reflete Dornellas, assessora do FNPETI.
O governo brasileiro não trata essa pauta como prioridade, analisa a
procuradora Ana Maria Villa Real, coordenadora nacional de Combate à
Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente no Ministério Público
do Trabalho (MPT). A procuradora cita a revogação, por quase dois anos,
do decreto que instituía a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti) – retomada apenas em dezembro de 2020, mas excluindo a participação de entidades e da sociedade civil.
O Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, se estivesse
com sua comissão vigente, explica Ana Maria, poderia ter possibilitado o
estabelecimento de estratégias de enfrentamento para os períodos
durante e pós pandemia. Mas isso não aconteceu.
Outra das principais políticas da área, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), está com os repasses paralisados
desde 2019 e sem expectativa de retomada, lembra Luciana. A iniciativa
foi criada pelo governo federal para proteger crianças e adolescentes
por meio de estratégias que incluem um auxílio financeiro pago às
famílias.
Procurado pela reportagem, o governo federal, por meio do Ministério
da Cidadania, negou cortes orçamentários no Sistema Único de Assistência
Social (SUAS). Mas um levantamento do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas)
com base nas Leis Orçamentárias Anuais (LOA) apontou que 2020 teve o
pior montante para a área desde 2012: R$ 1,36 bilhão, contra uma média
de R$ 2,27 bilhões dos últimos nove anos. Em 2021, a redução de repasses
pode chegar a 59,3%.
Sobre as transferências do PETI, o Ministério da Cidadania alegou que
os recursos são transferidos desde 2014 e que há saldo em conta de mais
de R$ 41 milhões do Fundo Nacional de Assistência Social que não foram
acessados pelos estados e municípios “por motivos diversos”. Quem
trabalha na ponta contesta. Os repasses mensais foram interrompidos,
sendo as últimas transferências do PETI feitas em 2018, assegurou Elias
Oliveira, presidente do Congemas.
“Estamos falando de um país que já havia saído do mapa da fome, e agora passa a conviver com déficits progressivos (nas assistências aos municípios) no momento em que a população está mais precisando”, lamenta Oliveira.
*nomes fictícios para proteger a identidade das crianças e adolescentes
Veja investigação completa em: http://semrecreio.licaodecasa.org/
Repórteres colaboradores: Bibiana Maia, Bruno Tadeu Moraes, Djuena Tikuna, Emilene Lopes, Laís Martins, Larissa Burchard, Luiza Nobre, Mariana Ceci, Thais Rodrigues e Victória Alvares
Esta reportagem foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.