Os que resistem ao trabalho uberizado
Da “breque dos apps” ao esforço de pesquisadores da Economia Solidária Digital, proliferam experiências de autogestão para enfrentar a precarização das plataformas. Señoritas Courie, Núcleo de Tecnologia do MTST e Liga Coop são exemplos no Brasil
Publicado 20/03/2025 às 14:58

Foto: divulgação
Por Rute Souza e Katarine Flor, na Le Monde Diplomatique Brasil
A promessa de flexibilidade e autonomia impulsionou a expansão das plataformas digitais dentro da gig economy. No entanto, essa aparente modernização do trabalho esconde um modelo que intensifica a precarização e a exploração. Em vez de ampliar oportunidades, os aplicativos tornaram-se intermediários de um sistema em que os trabalhadores atuam sem vínculo empregatício, sem garantias mínimas e submetidos a regras arbitrárias.
O verniz tecnológico esconde um rígido sistema de controle que define quem recebe trabalho, quanto ganha e quando será punido. Com algoritmos fechados sem transparência ou regras objetivas, empresas regulam cada etapa do processo, determinando desde o ritmo de trabalho até bloqueios automáticos sem justificativa clara. O que se vende como autonomia e inovação, na prática, se revela como submissão e instabilidade.
A crença na neutralidade da tecnologia se desfaz diante da concentração de poder econômico e político nas mãos de poucas corporações. Como resposta, cresce um movimento que propõe um modelo alternativo: a Economia Solidária Digital. Inspirada no software livre e na soberania digital, essa abordagem procura criar tecnologias abertas e comunitárias, rompendo com a lógica de exploração das big techs.
Fundamentada na autogestão e cooperação, a Economia Solidária Digital estabelece modelos de propriedade coletiva, nos quais os próprios trabalhadores controlam as plataformas e definem suas condições de trabalho. Em vez de algoritmos opacos e decisões automatizadas, propõe transparência, governança democrática e valorização do trabalho acima do lucro.
Para o professor Rafael Grohmann, da Universidade de Toronto, a resposta à “uberização” não pode se limitar à criação de startups cooperativas. “O problema não está apenas nos aplicativos e softwares, mas na propriedade das infraestruturas e dos dados”, afirma. Para ele, é essencial que os próprios trabalhadores detenham o controle da tecnologia, evitando a reprodução do modelo de subordinação existente nas plataformas comerciais.
Uberização aprofunda desigualdades
A chegada da Uber ao Brasil, em 2014, marcou uma transformação nas relações de trabalho no país. O modelo da gig economy, antes restrito ao transporte de passageiros, rapidamente se expandiu para outros setores, como delivery, hotelaria, serviços domésticos, entre outros.
O fenômeno da uberização intensificou a deterioração das condições de trabalho em um mercado já marcado pela informalidade. Sem vínculo empregatício reconhecido, os trabalhadores são tratados como prestadores de serviço, sem direitos trabalhistas ou proteção social. Toda a responsabilidade e os riscos da atividade são transferidos para o trabalhador, enquanto as empresas se eximem de qualquer obrigação.
“Vimos a realidade do trabalho se transformar rapidamente em um curto espaço de tempo. Nos últimos dez anos, o mercado, especialmente nas grandes cidades, mudou de maneira acelerada, com efeitos que precisam ser analisados”, avalia Daniel Santini, coordenador de projetos na Fundação Rosa Luxemburgo.
Os mais impactando são, sobretudo, os trabalhadores mais vulneráveis, especialmente jovens negros nas grandes cidades. Os dados evidenciam como a “uberização” reforça desigualdades estruturais. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, 77% dos trabalhadores por aplicativos têm menos de 40 anos, sendo 48,4% entre 25 e 39 anos. No recorte racial, 59% dos entregadores se autodeclaram pretos ou pardos, revelando que o modelo afeta diretamente grupos historicamente marginalizados.
Algoritmos como barreira à mobilização
A precarização avança junto com a ausência de proteção social, expondo os trabalhadores à instabilidade financeira e à dependência total das plataformas. Além das más condições de trabalho, esses trabalhadores enfrentam outro obstáculo menos visível, mas essencial para a manutenção desse sistema: o controle algorítmico.
Segundo Renan Kalil, procurador do trabalho e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), o uso de algoritmos não apenas serve para organizar e distribuir as demandas, mas também para limitar a mobilização coletiva.
“O sistema cria uma falsa sensação de autonomia, isolando os trabalhadores em uma lógica competitiva que os impede de se reconhecerem como parte de uma mesma categoria”, explica Kalil. Dessa forma, os trabalhadores são estimulados a competir entre si, dificultando qualquer tentativa de organização coletiva.
Além disso, algumas empresas adotam estratégias ativas para enfraquecer a mobilização, impedindo que os trabalhadores reivindiquem melhores condições. “Empresas como o iFood financiaram campanhas de desinformação, criando perfis falsos de entregadores nas redes sociais para enfraquecer a mobilização e impor sua narrativa”, denuncia Kalil.
Esse controle invisível permite que as plataformas mantenham seu modelo altamente lucrativo sem precisar lidar com demandas trabalhistas. O algoritmo, longe de ser um mediador neutro, funciona como ferramenta de dominação, regulando o acesso ao trabalho e minando qualquer forma de resistência.
A reação a esse cenário de exploração, no entanto, veio das ruas…
A explosão do Breque dos Apps
A falta de proteção social e de direitos trabalhistas tornou-se ainda mais evidente durante a pandemia da Covid-19. Enquanto entregadores e motoristas eram considerados essenciais para manter a população em casa e conter a disseminação do vírus, seguiam sem acesso a direitos básicos, expondo a fragilidade desse modelo de trabalho.
“Tem trabalhador que dorme na rua, trabalha com fome e carrega pesos incompatíveis com o esforço humano”, denuncia Galo em entrevista publicada no livro Mobilidade antirracista, editado pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a Autonomia Literária.

Foto: Reprodução/ATS
A insatisfação cresceu à medida que os riscos da pandemia escancararam a ausência de garantias trabalhistas. Em julho de 2020, a categoria organizou a primeira grande paralisação nacional, conhecida como Breque dos Apps.
O movimento exigia melhoria na remuneração, fornecimento de equipamentos de proteção e o fim dos bloqueios arbitrários. A mobilização, articulada por entregadores e motoristas em diversas cidades do Brasil, reacendeu o debate sobre as condições de trabalho na economia de plataformas e demonstrou a capacidade de organização dos trabalhadores mesmo diante das barreiras impostas pelo controle algorítmico.
A revolta dos trabalhadores evidenciou que o modelo das plataformas não é sinônimo de liberdade, mas sim de dependência extrema de sistemas que operam sem transparência e sem qualquer tipo de negociação.
Se por um lado a “uberização” se consolidou como um problema, a Economia Solidária Digital, um desdobramento do Cooperativismo de Plataforma, hoje se apresenta como uma alternativa possível.
Do Cooperativismo de Plataforma à Economia Solidária Digital
O debate sobre alternativas à “uberização” ganhou força na Fundação Rosa Luxemburgo em 2016, com a tradução de Trebor Scholz, Cooperativismo de Plataforma, produzido pela Fundação em parceria com as editoras Elefante e Autonomia Literária.
“O livro de Scholz apresenta, de forma clara e estruturada, premissas para pensar um novo modelo de trabalho, com exemplos concretos“, explica Daniel Santini.
Com a publicação da obra, a Fundação Rosa Luxemburgo ampliou o diálogo com pesquisadores e organizações interessadas, estabelecendo uma forte conexão com o Laboratório de Pesquisa DigiLabour, da Universidade de Toronto, liderado pelo pesquisador Rafael Grohmann.
Dessa articulação surgiu o conceito de Economia Solidária Digital, que incorporou experiências brasileiras já consolidadas, como as políticas de Cultura Livre, Software Livre e Economia Solidária.
“Percebemos que o termo cooperativismo de plataforma não refletia toda a complexidade do contexto brasileiro. Era mais adequado falar em Economia Solidária Digital, ou até em uma Economia Solidária 2.0, que dialoga com nossa tradição”, avalia Santini.
A partir desse movimento, diversas organizações iniciaram um diálogo com o poder público, levando à aproximação com a Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego.
A Economia Solidária Digital, portanto, não é apenas um conceito acadêmico, mas um movimento concreto, que une pesquisadores, trabalhadores e organizações para a construção de um modelo alternativo de trabalho e tecnologia.
Economia Solidária Digital: uma proposta concreta
Diante da lógica predatória das grandes plataformas, a Economia Solidária Digital desponta como um modelo alternativo, baseado em cooperação, autogestão e governança democrática. Nessa abordagem, os trabalhadores são os donos e gestores das plataformas que utilizam, garantindo mais autonomia e condições de trabalho justas.
Mais do que uma simples adaptação do cooperativismo de plataforma, proposto pelo pesquisador estadunidense Trebor Scholz, a economia solidária digital amplia o conceito, incluindo a propriedade coletiva de dados e infraestruturas digitais. Isso significa que as plataformas não apenas pertencem aos trabalhadores, mas também operam com transparência e controle democrático, eliminando as barreiras impostas por algoritmos opacos e decisões automatizadas.
Para Emanuele Rubim, advogada, pesquisadora e coautora do livro Economia Solidária Digital, essa proposta representa um passo essencial rumo a um desenvolvimento econômico mais inclusivo e sustentável. A obra foi publicada em 2024 pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com Digilabor e Ministério do Trabalho e Emprego. Rubim defende que, ao contrário da lógica das grandes plataformas, a economia solidária digital considera aspectos como território, meio ambiente e relações sociais e tecnológicas.
Ao promover tecnologias abertas e comunitárias, a Economia Solidária Digital propõe um modelo que subverte a dinâmica tradicional das plataformas proprietárias, garantindo que o uso da tecnologia sirva aos trabalhadores e às comunidades, e não apenas ao lucro de grandes corporações.
Experiências de Economia Solidária Digital no Brasil e no mundo
Projetos em diversos países demonstram que alternativas às grandes plataformas já estão sendo construídas. Essas iniciativas rompem com a lógica das Big Techs, promovendo modelos mais justos, nos quais os trabalhadores têm voz ativa na gestão da tecnologia que utilizam.
Brasil: Cooperativas e tecnologia para autonomia
- Señoritas Courier – Cooperativa de mulheres e pessoas trans em São Paulo que atua no setor de entregas de bicicleta. Além de oferecer um modelo de trabalho mais justo, desenvolve tecnologia própria para gestão e organização do serviço, evitando a dependência de plataformas privadas.
- Núcleo de Tecnologia do MTST – Grupo vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), responsável por criar plataformas digitais voltadas para a autogestão do trabalho. Entre os projetos, destaca-se o Contrate Quem Luta, um chatbot que conecta trabalhadores da construção civil a clientes sem intermediários.
- Liga Coop – Federação que reúne cooperativas de motoristas como alternativa ao Uber e 99. Desenvolve um aplicativo próprio, garantindo maior controle sobre os ganhos dos trabalhadores e evitando a exploração imposta pelas grandes plataformas de mobilidade.
Europa e América do Norte: Redes de cooperativas e tecnologia livre
- CoopCycle (Europa) – Federação de cooperativas de entregadores espalhadas por várias cidades europeias. A plataforma utiliza software livre, permitindo que diferentes grupos operem serviços de delivery sem intermediários privados.
- Drivers’ Seat (EUA) – Cooperativa de motoristas que coleta e vende seus próprios dados para órgãos públicos, reduzindo a dependência de plataformas privadas na formulação de políticas de transporte.
- Means TV (EUA) – Plataforma de streaming cooperativa e autogerida, que oferece conteúdos progressistas como alternativa à Netflix e outras empresas comerciais.
As iniciativas demonstram que, embora ainda enfrentem desafios, alternativas às grandes plataformas já são uma realidade em diversos países. A Economia Solidária Digital não só oferece melhores condições de trabalho, como também aponta para um modelo tecnológico mais inclusivo e democrático.
Desafios para uma Economia Solidária Digital
Apesar do seu potencial transformador, a Economia Solidária Digital enfrenta barreiras econômicas, organizacionais, tecnológicas e legais que dificultam sua consolidação e expansão.
Desafios Econômicos. A principal barreira para iniciativas de Economia Solidária Digital é a falta de recursos para investimentos em tecnologia, infraestrutura e capacitação. Diferente das grandes plataformas, que contam com capital de risco e subsídios de investidores, essas iniciativas precisam buscar alternativas financeiras sustentáveis para se manterem competitivas.
Além disso, a concorrência desleal imposta pelas big techs agrava o cenário. Empresas como Uber e iFood recorrem a práticas como dumping, oferecendo serviços a preços artificialmente baixos para eliminar concorrentes. Sem políticas públicas de incentivo, como linhas de crédito, financiamento para pesquisas e apoio governamental, muitas iniciativas enfrentam dificuldades para se consolidar e crescer.
Desafios Organizacionais. A autogestão e a governança democrática são pilares centrais da Economia Solidária Digital, mas sua implementação exige mudanças culturais profundas. O modelo tradicional de trabalho, baseado em hierarquias rígidas e relações individualistas, dificulta a transição para estruturas coletivas e descentralizadas.
Além disso, a gestão compartilhada requer formação contínua, participação ativa dos trabalhadores e processos decisórios eficientes. Sem capacitação adequada e tempo para amadurecimento, a estrutura organizacional pode se tornar burocrática e ineficiente, comprometendo a sustentabilidade das iniciativas.
Desafios Tecnológicos. A dependência de tecnologias proprietárias desenvolvidas por grandes corporações limita a autonomia digital das cooperativas e coletivos. Sem infraestrutura própria, muitas iniciativas acabam utilizando plataformas comerciais, o que pode reproduzir as mesmas lógicas de controle e precarização.
Outro desafio é a falta de profissionais capacitados para desenvolver soluções digitais alinhadas aos princípios da Economia Solidária. O fortalecimento desse setor exige investimentos na formação de trabalhadores em tecnologia, além da construção de infraestruturas digitais abertas e compartilhadas.
Desafios legais. A falta de um marco regulatório específico para a Economia Solidária Digital no Brasil cria dificuldades burocráticas para a formalização e captação de recursos. Atualmente, cooperativas e plataformas autogeridas não possuem um enquadramento jurídico adequado, o que pode gerar entraves fiscais e trabalhistas.
Além disso, a regulação do trabalho digital ainda está em disputa, e sem uma legislação específica, há o risco de que cooperativas sejam tratadas como plataformas tradicionais, ignorando as particularidades desse modelo alternativo.
O caminho para um trabalho digital justo
A “uberização” consolidou um modelo de trabalho precarizado, no qual os riscos são transferidos aos trabalhadores enquanto as plataformas maximizam seus lucros. No entanto, a Economia Solidária Digital surge como um caminho alternativo, pautado na autogestão, cooperação e governança democrática.
Experiências no Brasil e no mundo demonstram que é possível construir plataformas coletivas, mas sua expansão ainda enfrenta desafios econômicos, tecnológicos e regulatórios. Para que essas iniciativas prosperem, é fundamental a implementação de políticas públicas, financiamento adequado e um marco legal que reconheça suas especificidades.
A tecnologia não precisa ser uma ferramenta de exploração e controle. Ela pode ser utilizada para fortalecer a autonomia dos trabalhadores e garantir relações de trabalho mais justas. O desafio, portanto, é consolidar modelos que coloquem a tecnologia a serviço da coletividade, garantindo soberania digital e dignidade no trabalho.
Rute Souza é jornalista.
Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo.