O Império tenta enquadrar a revolução
Publicado 01/03/2011 às 17:05
Por que a presença de uma frota da OTAN, diante do litoral líbio, nada tem a ver com a democracia. Quais os verdadeiros motivos para uma eventual intervenção militar do Ocidente. Como a ameaça pode se dissipar
Capitaneadas pelo porta-aviões nuclear USS Enterprise (foto), o maior navio de guerra do planeta, vinte embarcações militares dos EUA, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Grécia e Turquia rumam, desde ontem (28/2) para o litoral da Líbia, conflagrada há dez dias. Estão sob comando da OTAN, a aliança militar dirigida por Washington. Seu deslocamento foi decidido, informa o The Guardian, no final da semana passada, no Pentágono, em reunião entre chefes militares norte-americanos e britânicos. Fontes do jornal londrino afirmaram que uma intervenção militar direta não está excluída — embora a hipótese seja complexa e arriscada, política e militarmente.
O pretexto para tal ação foi oferecido pelo ditador líbio, Muammar Gaddafi, que voltou a investir militarmente contra a população rebelada. O setor das Forças Armadas que permanece fiel ao governo avançou ontem contra a cidade de Zawiyah, importante centro petroleiro a 50 quilômetros da capital, já sob controle dos insurreitos. O ataque foi rechaçado. As força bélica do governo parece ter-se reduzido. Os opositores estão armados e assumiram, em diversas cidades, o controle dos serviços públicos, como mostram reportagens do próprio Guardian e do El País. Em Benghazi, o centro rebelde, fala-se que a expedição para desalojar de vez Gaddafi, em Tripoli, já está em fase de articulação.
Uma ação militar externa, comandada por grandes potências, não visaria, portanto, garantir a democracia. Estaria relacionada — como se verá a seguir — a três objetivos nada altruísticos, mas muito ligados entre si: enquadrar a revolução árabe; assegurar o suprimento de petróleo; conter o fluxo de imigrantes.
Impedir ou neutralizar revoluções é um objetivo intrínseco a qualquer poder — e o vendaval árabe pode ter repercussões mundiais. Num artigo publicado em Outras Palavras, Toni Negri e Michael Hart frisaram ao menos três características que podem multiplicar seu alcance. 1) Há emergência de novos sujeitos políticos: a juventude bem-formada, conectada com o mundo e inconformada com os limites e a mediocridade de sua vida quotidiana; as periferias de metrópoles como o Cairo, que já não aceita a condição de subalternas e, para deixá-la estão dispostas a sacudir o status-quo. 2) Estes setores cultivam o embrião um projeto emancipador: eles querem organizar a produção e a distribuição de riquezas horizontalmente e em rede — sem os limites das hierarquias e da mercantilização atuais; 3) Eles pratica o esboço uma nova democracia, numa época em que a representação tradicional está se tornando cada vez mais obsoleta e desprestigiada.
Uma intervenção militar embaralharia o jogo. Favorecidos pela brutalidade de Gaddafi, os Estados Unidos tentariam apresentar-se novamente como agentes de uma “intervenção humanitária” semelhante às que conduziram na antiga Iugoslávia, na década de 1990. Contariam com o suporte da mídia tradicional. Atuariam, nas regiões em que interviessem, com o peso de seu poderio político e militar — incomparavelmente maior que o de uma levíssima revolução de jovens, sem ligações partidárias, articulada pelo Twitter e Facebook.
A ultra-direita norte-americana já enxergou a oportunidade. O repórter norte-americano Jim Lobe relata, num texto para a Agência IPS/Envolverde: no fim-de-semana, quarenta expoentes do movimento neocom enviaram carta aberta ao presidente Obama em que pedem abertamente um ataque militar à Líbia. Os signatários falam em “interesses humanitários”, mas entre eles estão os mentores ou responsáveis diretos pela violações dos direitos humanos praticadas no governo George Bush: Paul Wolfowitz, secretário de Defesa; Elliot Abrams, principal assessor político para o Oriente Médio; Marc Thiessen e Peter Whener, redatores dos discursos do então presidente.
EM NOME DO PETRÓLEO: A presença militar também restabeleceria o controle sobre o abastecimento do petróleo. Em texto publicado há uma semana, a revista Economist analisa as fortes oscilações no preço do combustível (+ 16%, de 96 dólares para U$111 dólares o barril), após o início das revoltas. Depois de uma breve queda, na fase mais aguda da crise financeira, a demanda por petróleo voltou a crescer rapidamente: 3% em 2010; provalemente 2,5%, este ano. O consumo mundial chegou a 88 milhões de barris por dia, um volume muito próximo à capacidade máxima de produção. Embora a produção da Líbia seja pouco importante (1,7 milhões de barris/dia, menos de 2% do total mundial), o corte do suprimento, após o início da revolta, deixou tensos os mercados e repercutiu imediatamente nos preços.
Ainda mais grave, para os grandes consumidores: apenas os países do Oriente Médio (Arábia Saudita, Kuait, Emirados Árabes) têm condições de elevar a produção em prazo relativamente curto, para substituir o fornecimento líbio. E haveria um autêntico terremoto nos mercados, em caso de uma eventual desestabilização de um novo país produtor — especialmente se fosse a Arábia Saudita, responsável, sozinha, por 10% da produção mundial (veja gráfico abaixo). Analistas do banco japonês Nomura especularam que não é impossível uma alta do barril até US$ 220. A própria Economist alerta: “o dano para as grandes economias do mundo rico, em recuperação, poderia ser enorme, se as cotações subissem e permanecessem elevadas por muito tempo”.
O VENDAVAL NÃO PÁRA: Por fim, há a questão candente dos imigrantes. Embora pouco mencionado pela mídia, as ditaduras do Egito, Tunísia e (em especial) Líbia mantinham com os países europeus acordos para cotenção dos próprios cidadãos africanos, inclusive por meios violentos. O fim destes regimes já desencadeou uma primeira onda de migrações — em especial da Tunísia para o sul da Itália, hoje fortemente influenciada pela xenofobia. Num texto sobre possível intervenção militar no mundo árabe, a edição francesa do Le Monde Diplomatique aponta: “Na prática, o deslocamento de uma armada poderia constiutir na prática um cordão de segurança que desencorajaria uma fuga em massa, pelo mar, de líbios ou de imigrantes africanos, rumo à Europa”…
Sonho dos que se incomodam com a revolução árabe, a intervenção militar é difícil, contudo. Para ter o aval da ONU, teria de passar pelo Conselho de Segurança — onde China e Rússia poderiam exercer seu direito de veto. Restaria a hipótese de uma intervenção unilateral, mais uma vez liderada por Estados Unidos e Inglaterra, à revelia do Direito Internacional. Haverá disposição para correr este risco, depois do profundo fracasso do Iraque, numa região potencialmente muito mais explosiva? Mesmo Obama, que poucas mudanças estimulou até o momento, apoia-se numa base social e num discurso muito distintos dos de Bush. Estaria disposto a desdizer-se?
Enquanto os poderes fazem planos, o vendaval avança. Ontem, houve novos protestos em Bahrein e numa outra monarquia petroleira: Omã, governado por um sultão absolutista e também parceiro dos EUA e seus aliados. Democracia e Império parecem cada vez mais distantes, num início de década vibrante como há muito não se via.
Considero que o aumento no preço do petróleo não é bom apenas para os países ricos e poderosos. No final das contas, os pobres acabam sempre mais prejudicados, e pagando mais, proporcionalmente. Para o Brasil, neste momento, com a inflação subindo, seria um problema também…
68 será um polegar perto dos tentáculos do secular oprimido povo árabe.
Estamos as voltas com o retorno do Político, na mais pura concepção de Schmitt.
Excelente análise, desnudando as verdadeiras razões por trás de uma possível intervenção da OTAN na guerra civil líbia. Contudo, fica no ar a pergunta, não seria melhor uma intervenção do que deixar o ditador líbio massacrar a sua própria população? Confesso não saber qual dos males o menor!