Por que precisamos falar de “cidades lentas”

Indústria de carros vende velocidade e potência como sinônimo de sucesso. Por causa disso 33 mil brasileiros morrem todo ano. É preciso enfrentar o feitiche do “voo” sobre quatro rodas e construir outra visão de mobilidade, que priorize pessoas

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Por Sérgio Avelleda, na Piauí

Fui secretário de Mobilidade e Transportes da cidade de São Paulo entre 2017 e 2018. No rol das atribuições formais do cargo, uma me chamou a atenção logo que assumi: autorizar ou não o fechamento de ruas para o trânsito de veículos. Eram muitos os pedidos que chegavam. Fiquei curioso para saber a origem de tantas solicitações. Descobri que boa parte delas vinha de agências de publicidade, com o propósito de utilizarem o espaço para a gravação de filmes de propaganda. Quando um assistente me informou que a maioria dos pedidos era para gravar comerciais de automóveis, lembrei que não se vê anúncio de carro que tenha trânsito. O veículo destinado a encantar os consumidores está frequentemente rodando, soberano, por ruas vazias. Publicidade não costuma rimar com realidade – a pessoa compra o automóvel e quando sai da concessionária para no primeiro de muitos engarrafamentos. Penso que esse tipo de anúncio mereceria uma reprimenda do Conar, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, uma vez que se assemelha ao que chamam de “propaganda enganosa”.

Mas não é apenas essa falsa realidade que a indústria automobilística utiliza para vender seus carros-chefes, com o perdão do trocadilho. Há também o uso da velocidade como atrativo para a comercialização dos veículos. Atributos como potência, torque (força) e capacidade de chegar a 100 km/h em um átimo são sempre evidenciados em propagandas de automóveis. Vende-se carro para que se corra com ele.

Nos anos 1980, uma poderosa representante americana dessa indústria instalada no país usava a imagem de um astro do automobilismo nacional para vender a versão esportiva de um de seus modelos. O piloto ligava o veículo e dizia: “Quando ouço o motor, sinto o desempenho, a raça.” Em outro anúncio da mesma montadora, sua picape se deslocava velocíssima, saltando no solo, enquanto um helicóptero a sobrevoava, até que o carro dava um cavalo de pau, ao som de uma trilha típica de blockbuster de super-herói. Puxando pela memória, alcanço a propaganda de uma concorrente daquela fábrica, na qual uma canção dizia que o coração bate mais alto dentro de um veículo de tal marca, que media forças com um jatinho. Também me vem à mente o comercial de uma montadora europeia gabando-se que um de seus automóveis passava de 0 a 100 em 8,2 segundos, e que sua velocidade final era de 220 km/h. “Os outros não fazem nem sombra”, concluía a peça publicitária.

Essa mesma indústria, que reforça o tempo todo os atributos de aceleração, potência e velocidade máxima de seus produtos, é a grande fomentadora das competições esportivas entre carros. São elas que ajudam a referenciar o “voo” sobre quatro rodas como sinônimo de ousadia, habilidade e, acima de tudo, sucesso.

A minha geração, a de nascidos nos anos 1970, foi embalada pelas vitórias de brasileiros na F1 nas manhãs ensolaradas – ou chuvosas – de domingo. De fato, o glamour ao redor das corridas nos contagiava. Queríamos ir ao fliperama gastar nossas fichas em simuladores de GPs ou passar tardes nos videogames também simulando velocidade, ultrapassagens, recordes e – imagine – acidentes! Os mais velhos vão se recordar dos autoramas e das disputas para estabelecer os mais rápidos naquelas pistas de brinquedo.

Vivemos bombardeados por diversas mensagens enaltecendo a velocidade como se fosse um elemento formador do caráter e, especialmente, da masculinidade. As questões de gênero e a violência no trânsito estão intimamente ligadas a isso.

O discurso do glamour da velocidade sempre foi muito mais dirigido aos homens do que às mulheres. Automóveis foram concebidos para homens para serem adquiridos por outros homens. Um estudo recente mostra que as mulheres são mais propensas a mortes e ferimentos quando estão dentro dos veículos do que os homens. Os carros são desenhados para serem mais eficientes na proteção a eles do que a elas.

Em São Paulo, segundo o Detran,  93% das mortes no trânsito são causadas por homens. A sensibilidade masculina atende ao apelo do glamour da velocidade de maneira muito mais expressiva do que a feminina. Mulheres não enxergam automóveis como elementos de poder. São simples instrumentos de transporte. Homens, inebriados pela publicidade tóxica da indústria de veículos, são induzidos a comprar carros e a potencializar sua masculinidade através da velocidade e da agressividade.    

Nos dias de hoje, as redes sociais se tornaram as grandes impulsionadoras do culto à velocidade. Uma delas monetiza e permite monetização por meio da exaltação da velocidade e até de crimes de trânsito – como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Eu mesmo já denunciei vários vídeos com esse conteúdo. Em um deles, o indivíduo desce a serra vindo de Campos do Jordão em direção a São Paulo ultrapassando diversos automóveis irregularmente e em alta velocidade, guiando um veículo de marca alemã. Na Rodovia Carvalho Pinto, o contumaz criminoso de trânsito ultrapassa os 230 km/h e chega a disputar um racha com motocicletas. Todas as denúncias que fiz sobre essa postagem foram ignoradas pela plataforma.

Ela tem também diversos vídeos de crimes de trânsito cometidos na Estrada dos Romeiros (SP), onde há tráfego de ciclistas e pedestres. Em vez de tomar providências, a rede prefere seguir ganhando dinheiro com publicidade e permitir que os criminosos de trânsito participem dos lucros, incentivando um comportamento que é a maior causa de mortes entre jovens no planeta. Não por coincidência, as empresas desse segmento gastam fortunas em lobbies para evitar a regulação de suas atividades.

O consumo de cocaína é considerado um ilícito no Brasil. Logo, não esperamos encontrar uma loja anunciando a comercialização da droga nas esquinas de nossas cidades. Conduzir veículos nas vias públicas nacionais é atividade regulada pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Lá está definido que a velocidade máxima em tais vias é de 120 km/h. Ou seja, do mesmo modo que consumir cocaína é um ilícito, guiar acima desse limite também é. Contudo, não nos espantamos com o fato de as concessionárias venderem produtos que podem facilmente ultrapassar os 120 km/h, atingindo velocidades acima de 200 km/h. Mais do que isso, naturalizamos que comerciais desses carros enalteçam essa possibilidade como elemento sedutor para vendas. Claro que toda vida é valiosa, porém vale observar que a cocaína mata menos de 100 pessoas por ano no Brasil, contra 33 mil mortes no trânsito. Objetivamente: qual droga é mais perigosa? Não é intenção comparar carro com cocaína, mas apenas observar nossa preocupação extremada e correta com a droga e nosso conformismo com algo muito mais letal, a violência do trânsito.

Muitas medidas poderiam ser adotadas para melhorar nossa percepção quanto ao risco da velocidade – e também para conter a exposição a esse risco.

Desde cedo, nas escolas, as aulas de ciências deveriam demonstrar às crianças que velocidade é o maior risco no trânsito e nas demais atividades humanas. Aulas de física deveriam destacar o perigo ao qual um corpo é submetido quando exposto à velocidade.

Na formação de condutores, a velocidade deveria ser apresentada como a maior responsável por lesões e mortes. Poucos motoristas sabem que um pedestre tem quase 90% de chances de sobreviver quando atingido por um carro a 30 km/h. E que essa chance se reduz à medida em que aumenta a velocidade do veículo, caindo para 60% quando o carro está sendo conduzido a 50 km/h! Ou seja, a sensação de uma pequena variação de velocidade para quem está dentro do automóvel elimina quase integralmente a possibilidade de sobrevivência de um pedestre (ou mesmo de um ciclista ou motociclista).

Deveríamos nos inspirar na bem-sucedida política adotada na publicidade de cigarros. Há mais de vinte anos as embalagens desses produtos divulgam fotos chocantes que alertam os usuários sobre os riscos do fumo. Igual medida deveria ser adotada no caso dos carros. Junto a qualquer peça de propaganda de carros deveriam vir imagens de sinistros de trânsito. Essa seria uma forma de a indústria contribuir para diminuir o uso indevido dos veículos, algo que provoca tantas mortes e severas sequelas.

Na minha gestão como secretário, determinei que todos os ônibus urbanos, vinculados à prestação do serviço de transporte público de passageiros, tivessem suas velocidades limitadas a 50 km/h. Em menos de sessenta dias, mais de 14 mil ônibus foram parametrizados para cortar a aceleração em caso de ultrapassagem daquele limite. Bastaria uma simples resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) para determinar a parametrização da velocidade máxima dos veículos a serem vendidos no país destinados ao trânsito em vias públicas. Naturalmente, qualquer um poderia comprar um carro para alcançar qualquer velocidade desejada, desde que somente em pistas fechadas, sem risco a terceiros. Trata-se, porém, de uma discussão que nem sequer é cogitada nos órgãos de trânsito do Brasil. Parece-me óbvio: nenhum automóvel apto a ser licenciado para trafegar em vias públicas deveria estar habilitado a ultrapassar o limite de velocidade máxima previsto no Código de Trânsito Brasileiro. Do mesmo modo, o Conar já deveria ter editado normas para a publicidade de veículos proibindo qualquer alusão a potência, velocidade, manobras arriscadas ou quaisquer outros elementos que induzam a comportamentos ilícitos e perigosos no trânsito.

Não há dúvida de que medidas assim exigem coragem para enfrentar uma indústria gigantesca, que, como foi dito anteriormente, sempre fez da velocidade um elemento de atração para o consumo dos seus produtos. Também não será pouca a resistência de toda uma geração alimentada pelo glamour da velocidade. Mas, diante da mortandade no trânsito, a tragédia que ceifa cotidianamente no Brasil a vida de mais de 120 pessoas, fora as centenas de sequelados, qual a alternativa?

Vejo muitas montadoras fazendo propagandas sublinhando sua responsabilidade social. Por que não se reúnem e decidem, em conjunto, limitar a velocidade de seus produtos, protegendo e salvando milhares de vidas em todo o globo? Até quando o discurso que se apresenta nobre conviverá com a realidade da comercialização de veículos que são verdadeiras máquinas de matar?

Já passou da hora de a indústria automobilística e de os governos se conscientizarem de que a velocidade é o principal elemento causador das mortes e sequelas no trânsito. É preciso que eles ajam, imediatamente, para acabar com a rotina de carnificina nas vias públicas – que rouba o futuro das vítimas, devasta familiares e envergonha o país.

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