SP: O capital engole os centros das cidades

Em nome da “revitalização”, frente de expansão imobiliária acelera o apagamento do Centro como território negro, imigrante e pobre. Segundo Observatório de Remoções, ações policiais atingem até ocupações em processo de regulamentação

Nos Campos Elíseos, pelos menos 28 famílias ficaram desabrigadas após intervenção da prefeitura (Comissão de Direitos Humanos da OAB/Reprodução)
.

Por Matheus Martins, Aluízio Marino, Benedito Barbosa, Vitor Inglez, Giovanna Milano e Raquel Rolnik, no LabCidade

A explosão dos lançamentos imobiliários na área central de São Paulo tem intensificado processos de expulsão e conflitos em torno da moradia de locatários e moradores de ocupações. É isso que revela o acompanhamento semestral realizado pelo Observatório de Remoções entre dezembro de 2022 e junho de 2023. As formas populares não proprietárias de morar estão ameaçadas tanto por projetos e políticas públicas de “revitalização” e “requalificação”, que não incorporam estes moradores, tanto pela ação da polícia, que tem atuado mais intensamente coibindo novas ocupações, mas também sistematicamente invadindo as existentes, inclusive aquelas já comprometidas com projetos de regularização e reabilitação, agravando a situação de insegurança habitacional.

Ocupações ameaçadas de remoção e removidas no Centro de São Paulo – clique aqui para conferir o mapa em tela cheia. Elaboração: Matheus Martins

Como já apontamos em textos anteriores, os planos e projetos urbanísticos propostos para o Centro não reconhecem a diversidade de necessidades habitacionais da região. Com o objetivo de promover a valorização imobiliária-financeira da área, promovem o apagamento do Centro como território popular negro, imigrante e pobre. A Parceria Público-Privada Paiçandu Núcleo Cultural é um exemplo: um projeto elaborado pela SP Parcerias que removerá mais de 400 famílias que vivem nas ocupações Rio Branco e Art Palácio para concessão dos imóveis à iniciativa privada, em um pacote que inclui outros dois edifícios e o próprio Largo do Paiçandu, para sua “ativação social” – “ativação” essa que desconsidera totalmente as famílias que neles vivem hoje .

No Campos Elíseos, a PPP habitacional ameaça remover a última ocupação que permanece nesse território, ali vivem pelo menos quinze famílias, em sua maioria mulheres e crianças que foram despejados durante a pandemia. Enquanto isso, as famílias que já foram desalojadas anteriormente não estão sendo atendidas pela política que os removeu, em parte por não se enquadrarem nos requisitos para acesso a crédito habitacional.

Em vários outros casos prevalece a violência praticada pelo Estado para conter as ocupações por meio da força policial. Duas ocupações, uma na Consolação e outra nos Campos Elíseos, foram removidas no mesmo dia por policiais, que inclusive, no caso da primeira, se utilizaram de métodos cruéis: a aplicação de gás lacrimogêneo nas tubulações do edifício, que abrigava 30 famílias, incluindo crianças e uma mulher grávida. Além disso, há registros de invasões policiais cotidianas truculentas em outras ocupações, sistematicamente identificando exatamente as formas populares de morar como criminais, em um contexto onde a escalada da violência cada vez mais reforça a representação do Centro como um território perigoso que necessita de policiamento e meios extralegais para contê-la.

O recrudescimento da repressão tem aparecido em três dimensões principais da suspensão dos direitos: na temporalidade das operações policiais, muitas delas ocorrendo imediatamente após a formação da ocupação, concentrando-se no período inicial (de chamada “flagrância”) para reprimir o surgimento de novas ocupações; nos meios empregados, intensamente violentos, com recorrente invasão de domicílio, uso de gás de pimenta e da força física, a imputação de crimes sem qualquer materialidade; e, por último, nos agentes da repressão, que além das Polícias Civil e Militar, passam a ter a atuação destacadamente violenta e crescentemente militarizada da Guarda Civil Metropolitana (GCM).

Além das ameaças e invasões nas ocupações, levantamento realizado no banco de sentenças do Tribunal de Justiça de São Paulo de 2020 a 2022 apontou que a região central de São Paulo é hoje um dos epicentros da concentração de processos de despejo de locatários residenciais. Esta é mais uma evidência dos processos de expulsão em curso, engrossando os números da situação de emergência habitacional.

Despejos na Região Metropolitana de São Paulo – clique aqui para conferir o mapa em tela cheia. Elaboração: Matheus Martins 

Embora o centro de São Paulo seja neste momento um dos epicentros dos conflitos em torno da moradia, foram registrados conflitos em outras áreas e nos demais municípios da Região Metropolitana, como evidencia o mapa abaixo, que registra ao menos 522 famílias removidas e outras 8.027 ameaçadas – números subestimados, tendo em vista que correspondem apenas às denúncias que chegaram ao Observatório de Remoções.

Ameaças de remoção e remoções na Região Metropolitana de São Paulo – clique aqui para conferir o mapa em tela cheia. Elaboração: Matheus Martins

Esses conflitos ocorrem em meio ao “regime de transição” estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal para retomada das desocupações coletivas, última decisão no âmbito da ADPF nº 828 que, entre julho de 2021 e outubro de 2022, manteve suspensas as remoções coletivas. Esse regime estabelece a criação de Comissões de Conflitos Fundiários nos Tribunais de Justiça, papel que, em São Paulo, foi assumido pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (GAORP), que já existia desde 2014, mas que só realizou sua primeira reunião após a pandemia no dia 2 de março.

Além de não proteger os casos de despejo (individuais e coletivos), as ocupações em “áreas de risco” e aquelas que se constituíram após o marco temporal de 31/03/2021, a aplicação do “regime de transição”, operacionalizada pelo GAORP, tem sido caracterizada pela inércia dos órgãos do poder público em construir efetivamente soluções habitacionais. Deste modo, as audiências redundam, muitas vezes, em tentativas de mediação entre as partes: a negociação de soluções entre as famílias removidas e os agentes da remoção, o que raramente é possível sem o apoio dos órgãos públicos.

Nesse contexto, o regime de transição está se esgotando para muitas ocupações que tiveram seus processos de remoção suspensos em razão da ADPF nº 828 sem que os conflitos fundiários tenham sido realmente solucionados por políticas públicas habitacionais. Uma nova Resolução foi recentemente aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (Resolução nº 510/CNJ) no sentido de dar maior amplitude às comissões de conflitos fundiários e uma maior ênfase à construção de soluções habitacionais concretas. Resta saber como será implementada em São Paulo e se conseguirá alterar o quadro que se anuncia de retomada das remoções sem qualquer amparo às famílias atingidas.

Leia Também: