MC Poze: O “crime” não importa – mas quem o comete
Análise sobre a farsa da prisão e soltura do funkeiro carioca, preso por “apologia ao crime”. Do espetáculo midiático à justiça seletiva, a hipocrisia, o silenciamento e a busca por um bode expiatório. Mas atacar artistas que narram o cotidiano das favelas não acabará com facções criminosas
Publicado 04/06/2025 às 16:55

Por Gabriel Miranda, no blog da Boitempo
No livro Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, o sociólogo francês Loïc Wacquant pontua, logo nas páginas iniciais da obra, que “a segurança é concebida e executada não tanto por ela mesma, mas sim com a finalidade expressa de ser exibida e vista, examinada e espionada: a prioridade absoluta é fazer dela um espetáculo, no sentido próprio do termo” (Wacquant, 2007, p. 9). Ao ver as imagens do MC Poze do Rodo sendo conduzido até a delegacia no dia 29 de maio, não pude deixar de recordar a referida obra e, em específico, a citação acima. Afinal, o que foi aquilo senão um espetáculo? Uma peça teatral apresentada ao longo de séculos e que, agora, teve como um de seus protagonistas MC Poze.
Assim como todo espetáculo, a prisão do Poze possui várias camadas e podemos analisá-la por distintos prismas. Não quer este texto negar a realidade. São vários os registros de shows seus nos quais faz menção ao Comando Vermelho em músicas. Contudo, ao contrário do que pode parecer, tal fato não esgota o debate e tampouco me parece o mais importante. Afinal, se toda prática delituosa fosse responsabilizada e o Direito aplicado a todos de maneira equânime, Jair Messias Bolsonaro teria sido preso logo após votar a favor da abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff em 17 de abril de 2016, ocasião em que, no plenário da Câmara dos Deputados, dedicou seu voto à “memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff.”
Ou seja, o mesmo crime atribuído ao MC também havia sido cometido pelo então parlamentar. Enquanto um teria feito apologia ao crime de tráfico de drogas por mencionar o nome de uma facção em seus shows, o outro cometeu o crime de apologia à tortura ao reverenciar a memória de um reconhecido torturador da ditadura civil-militar. Inclusive, essa não foi a única apologia ao crime cometida por Bolsonaro e da qual saiu impune. Em 2018, durante a campanha eleitoral, o então candidato da extrema direita bradou, em alto e bom som: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre”, contribuindo para aumentar ainda mais o cenário de violência política que marcou aquela disputa eleitoral. Diante desses fatos, adivinhem quem foi preso e quem se tornou Presidente da República. Aqui está, portanto, o primeiro ponto: para a justiça burguesa, mais importante do que o crime é aquele que o comete.
Mas a análise de nossa trama não se encerra aí. Há outro elemento que me parece incontornável. De acordo com matéria veiculada no site de notícias Metrópoles, é atribuído ao delegado Felipe Curi, Secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro, o seguinte comentário: “Temos que separar quem é artista e quem é integrante de facção criminosa, elemento travestido de artista. Essa ideologia, às vezes, é muito mais lesivo (sic) que um tiro de fuzil na favela”. É importante notar que, no discurso do delegado, há uma tentativa, tipicamente ideológica, de produzir uma inversão do real.
Ora, quando o sistema de justiça, representando o Estado brasileiro, elege o MC Poze como bode expiatório das mazelas sociais, assume a posição cômoda de não enfrentar os reais problemas da nação, aqueles que alimentam o desejo de jovens por se vincular a facções criminosas: a desigualdade crônica e a ausência do poder estatal na garantia de direitos sociais, sobretudo nos territórios periféricos. Considerando que nenhum espaço é deixado vago, a ausência do Estado é o que garante a possibilidade de as facções exercerem o papel de protagonistas nesses territórios esquecidos por todos, a não ser pela polícia.
Ou seja, não são as canções do MC Poze que fortalecem o Comando Vermelho. O que fortalece o Comando Vermelho é o próprio Estado em sua ausência ou em sua estapafúrdia ação deliberada de negar uma política efetiva de combate às organizações criminosas e centrar-se em ações exibicionistas, cuja efetividade se resume a chamar a atenção e movimentar as redes sociais. Sendo assim, é imperativo que se implemente uma política de segurança que encare o tema das facções sem cinismo e enfrente a questão como ela merece ser tratada, com inteligência e respeito aos Direitos Humanos. Assim, poderemos deixar os espetáculos para os artistas — e não para o sistema de justiça.
Antes de ser transferido para a Penitenciária Serrano Neves, conhecida como Bangu 3, tem início o segundo ato da farsa, quando o suposto prontuário de ingresso do MC Poze no sistema penitenciário foi vazado. Nele, em uma seção intitulada “Ideologia declarada”, o funkeiro carioca teria indicado “CV”, rejeitando outras opções como “A.D.A”, “T.C.P”, “LGBTQIA+”, “milícia” e “neutro”. A suposta indicação do CV na ficha de Poze seria, para alguns, a prova cabal de sua vinculação com a referida facção.
Na sequência, foram publicadas massivamente matérias em blogs e jornais informando a “ligação” ou o “vínculo” do MC Poze com o Comando Vermelho. Tais inferências objetivavam levar o leitor a crer que isso provaria a existência de alguma participação efetiva do funkeiro com a estrutura do crime. Contudo, concretamente, possuir um vínculo com alguma facção criminosa pode significar apenas ter nascido em um bairro onde aquela facção exerce o monopólio do comércio de drogas ilícitas.
Foi isso que analisei no livro Juventude, crime e polícia: vida e morte na periferia urbana (2019) e, posteriormente, no artigo “Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e facções criminosas” (2023), ambos publicados em conjunto com a Dra. Ilana Paiva. Em territórios dominados por facções, a ideia de vinculação é algo que não informa muito. Absolutamente qualquer um pode ser “vinculado”. Em primeiro lugar, porque pesa sobre os moradores desses territórios o estigma de pertencer à facção que ali atua. Trata-se, nesses casos, de uma vinculação compulsória. E, além disso, em um contexto de privação de liberdade, escolher ser alojado no espaço destinado à facção que atua em seu território de origem funciona como um mecanismo de autoproteção. Afinal, nesses contextos, cair no pavilhão errado pode custar a própria vida.
No caso do MC Poze, soma-se a isso o fato de que as letras de algumas de suas músicas fazem menção ao Comando Vermelho, indicando uma simpatia do cantor com a facção. Contudo, essa simpatia, a qual é compartilhada por outros jovens que carregam dados biográficos semelhantes aos do Poze, não surge ao acaso. E compreendê-la implica um acerto de contas do Estado brasileiro consigo mesmo.
Se há jovens que entoam essas canções e se há outros que fazem a defesa ou mesmo admitem vínculos com facções sem sequer pertencer a elas, conforme analisado em Miranda e Paiva (2023), é preciso identificar as razões pelas quais isso ocorre e enfrentá-las para que esse tipo de organização não se torne um elemento fundamental na constituição de subjetividades juvenis periféricas. Se o objetivo da repressão aos artistas que acolhem essa demanda for o de silenciá-los, acredito que o tiro sairá pela culatra.
Existem músicas sobre facções porque existem facções. Não o contrário. Atacar os artistas e suas produções não fará desaparecer as facções ou o desejo de jovens em se vincular a esses grupos criminosos armados. O que pode efetivamente contribuir com isso é a consolidação de um Estado que garanta direitos e assegure uma sociabilidade em que ser parte de uma facção não atraia tantos sujeitos que veem sabotados seus projetos de vida. Mas essa é uma tarefa difícil, é mais fácil prender o Marlon Brandon Coelho. É mais fácil assumir que o problema é, mais uma vez, um jovem negro da periferia.
Gabriel Miranda é cientista social e professor do Instituto Federal do Pará (IFPA). Publicou, pela LavraPalavra Editorial, os livros Necrocapitalismo: ensaio sobre como nos matam (2021) e Em defesa da dialética: ensaios sobre o Brasil (2023).
Referências
Miranda, G. & Paiva, I. L. (2023). Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação e facções criminosas. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 16, p. 193-218.
Miranda, G. & Paiva, I. L. (2019). Juventude, crime e polícia: vida e morte na periferia urbana. Curitiba: CRV.
Wacquant, L. (2007). Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva] (3ª ed.). Rio de Janeiro: Revan.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras