Liderança indígena confronta a “conciliação” infame

Maurício Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas, questiona uma escolha política do STF: reabrir debate sobre “marco temporal”, já rechaçada pela Corte. Em meio a escalada de violência, política de demarcação de terras pode sofrer alterações que prejudicam os povos

Maurício Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil-APIB
Foto: Reprodução redes sociais).
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Entrevista a Igor Ojeda, na Repórter Brasil

“Na medida em que o STF (Supremo Tribunal Federal) age de maneira política, estimula uma permissividade para que esses processos de violência e espoliação nos territórios tradicionais ocorram”, afirma Maurício Terena, advogado indígena da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e do Conselho do Povo Terena. “E, por óbvio, quem morre sempre é o indígena, né? Nunca é alguém do agronegócio, nunca é um não indígena”, complementa. 

Em entrevista exclusiva à Repórter Brasil, Terena – uma das principais lideranças do país – avalia que o STF fez uma “escolha política” ao abrir espaço para a discussão sobre a Lei 14.701/2023, que reinstitui o marco temporal, após a própria corte ter considerado a tese inconstitucional.

O marco temporal determina que os indígenas só têm direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988.

Diante da aprovação no Congresso da nova lei, o STF criou, em agosto de 2024, uma câmara de conciliação com lideranças indígenas, representantes de ruralistas e autoridades públicas. Naquele mesmo mês, no entanto, a Apib se retirou da mesa.

Terena se refere a muitos casos de violência contra povos indígenas que vêm acontecendo nos últimos meses, incluindo assassinatos e denúncias de brutalidade policial. 

Em 20 de março, por exemplo, uma operação conjunta da Polícia Civil e da Polícia Militar da Bahia na Terra Indígena (TI) Barra Velha do Monte Pascoal, no município de Prado, no sul do estado, resultou na prisão de 24 indígenas Pataxó. 

Uma nota do Conselho de Caciques do território diz que a ação foi violenta e incluiu invasões de casas e prisões arbitrárias. De acordo com nota da Polícia Civil da Bahia, a ação é parte de uma investigação que apura supostos crimes cometidos por indígenas na região. 

Dez dias antes, em 10 de março, o Pataxó Vitor Braz, da mesma terra indígena, havia sido morto em um ataque contra uma comunidade do território

A milhares de quilômetros de distância, no oeste do Paraná, os indígenas Avá-Guarani da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, localizada entre Guaíra e Terra Roxa, estão sendo alvo de uma série de ataques, desde dezembro do ano passado. Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul também têm denunciado uma escalada no número de ataques contra os povos indígenas do estado. 

Representantes do povo Pataxó Hã-hã-hãe, da Bahia. Foto: Verena Glass

“A permissão de matar e seguir com a violência estrutural dentro dos territórios indígenas passa por uma não resposta [do STF em relação à tese do marco temporal]. O papel do Supremo não é conciliar direitos que são fundamentais e que não são passíveis de negociação. É dizer se [uma lei] é constitucional ou não”, critica Maurício Terena.

Na avaliação do advogado da Apib, o projeto de lei proposto pelo ministro Gilmar Mendes em fevereiro deste ano para substituir a Lei 14.701 traz aspectos que “reestruturam a política indigenista” de maneira negativa. “Após 37 anos, estamos prestes a ver a Constituição Federal ser reescrita”, diz. 

A proposta, classificada como um “grande retrocesso” por três relatores especiais da ONU, dificulta o processo de demarcação de terras indígenas, dentre outros pontos. Na quinta-feira (27), um dia depois da realização desta entrevista, o gabinete de Mendes anunciou ter retirado do projeto de lei a possibilidade de mineração nos territórios tradicionais, um dos aspectos criticados por Terena.

Leia a entrevista a seguir:

Repórter Brasil – Nos últimos meses, têm aparecido muitas notícias de ataques e repressões a indígenas em várias partes do país. Como você e a Apib veem esses últimos acontecimentos? Há de fato uma escalada? Quais seriam os motivos?

Maurício Terena – Esses acontecimentos vêm de uma trajetória contínua. Pode-se dizer que o processo de violência territorial e espoliação dos povos indígenas acontece por causa da vigência da Lei 14.701, criada pelo Congresso Nacional em resposta a um julgamento do Supremo Tribunal Federal que rejeitou a tese do marco temporal. Desde então, há uma série de implicações. O STF fez uma escolha política ao abrir um espaço, como a Câmara de Conciliação sobre o Marco Temporal, para se fazer uma discussão política sobre essa lei. Na medida em que o tribunal age de maneira política, estimula uma permissividade para que esses processos de violência e espoliação nos territórios tradicionais ocorram. 

A proposta de conciliação do ministro Gilmar Mendes traz aspectos que reestruturam a política indigenista como um todo. Após 37 anos, estamos prestes a ver a Constituição Federal ser reescrita. E é uma grande incoerência mexer diretamente na questão da terra e dos direitos indígenas, da forma que se pretende, no ano em que o Brasil sedia uma COP [30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP 30, que acontece em novembro deste ano em Belém-PA].

E eu não colocaria isso apenas na conta do Supremo, mas também na do Congresso e do Governo Federal. Na nossa avaliação, a atuação do Governo Federal dentro da Câmara de Conciliação foi muito errática, desorganizada, sem um direcionamento político claro de alto escalão. Algumas vezes, até dando sobrevida ao projeto do ministro Gilmar Mendes.

Então, o que a gente assiste nos territórios é uma complexidade de acontecimentos políticos e que estão concatenados dentro das três esferas de poder. E, por óbvio, quem morre sempre é o indígena, né? Nunca é alguém do agronegócio, nunca é um não indígena. A permissão de matar e seguir com a violência estrutural dentro dos territórios indígenas passa por uma não resposta [do STF em relação à tese do marco temporal]. O papel do Supremo não é conciliar direitos que são fundamentais e que não são passíveis de negociação. É dizer se [uma lei] é constitucional ou não.

E a gente vê essas bizarrices acontecerem com um Ministério dos Povos Indígenas que não consegue dar conta do tamanho da demanda histórica. Sem recurso e sem pessoal fica difícil mesmo resolver essas questões e construir políticas públicas. 

Lideranças indígenas fazem passeata contra marco temporal na Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF), em setembro de 2023. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Você avalia então que o ministro Gilmar Mendes, em vez de se ater à análise técnica em relação à constitucionalidade da Lei 14.701, abriu a questão a uma disputa política e deu margem para que todos esses ataques aos povos indígenas acontecessem?

Sim, o Supremo decidiu fazer uma discussão política em torno da questão do marco temporal e da lei que foi questionada perante o tribunal. Constitucionalistas com quem conversei disseram que não existe precedente nenhum no mundo de uma suprema corte apresentar um projeto de lei da forma que o ministro Gilmar Mendes fez. E então os ministros do STF vão votar sobre a proposta, vão mandar para o Congresso, e quando o Congresso aprovar, quem vai avaliar a constitucionalidade dessa lei? A Câmara de Conciliação adotou questões procedimentais que colocam o tribunal numa posição de ator político. E o papel dele não é esse. 

Embora a proposta do ministro Gilmar Mendes derrube a tese do marco temporal, aponta-se uma série de problemas em seu conteúdo, inclusive de parte de três relatorias da ONU. Você poderia detalhar quais são os principais problemas?

Há, por exemplo, a possibilidade da mineração em terras indígenas, que não é mencionada nem na Lei 14.701 [Na quinta-feira (27), um dia depois da realização desta entrevista, o gabinete de Mendes anunciou ter retirado esse ponto do projeto de lei]. A proposta flexibiliza de maneira perversa o modo de se fazer e regular a consulta livre, prévia e informada. Por meio do projeto de lei, o ministro invade, de maneira unilateral, aquilo que o STF decidiu no Tema 1031 de Repercussão Geral [tese fixada pelo tribunal em setembro de 2023, após rejeitar o marco temporal; entre seus pontos, a decisão estabeleceu que cabe aos povos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas existentes em suas terras]. Foi um desrespeito à própria colegialidade. 

Além disso, quem acompanhou a Câmara de Conciliação sabe que existe uma forte interferência do poder econômico do agronegócio para se fazer com que as indenizações das desapropriações de propriedades localizadas em terras indígenas sejam de terra nua [o valor de mercado da terra, e não apenas as benfeitorias realizadas de boa-fé por não indígenas]. O Supremo havia estabelecido que isso poderia ser feito se fossem cumpridos alguns requisitos. Mas o ministro quer pegar esses requisitos e transformá-los em regra. 

Há também uma mudança radical no rito demarcatório. É provável que a gente faça o velório do Decreto 1775 [de 1996], que estabeleceu a política de demarcação de terras indígenas. A proposta do ministro contém uma abertura para um maior questionamento de terceiros – ou seja, estados, municípios, associações – sobre as demarcações. 

Os próprios procedimentos da Câmara de Conciliação foram bastante criticados. Inclusive, em agosto de 2024 a APIB se retirou da comissão. Quais eram os problemas relacionados aos procedimentos? 

O problema é que não havia procedimento. Tanto que a APIB questionou sobre o que seria negociado e qual era o objetivo da Câmara de Conciliação. Isso não foi respondido até hoje, mas descobrimos a resposta assim que surgiu o projeto de lei do ministro Gilmar Mendes. Havia também a questão da metodologia. É uma conciliação por maioria, algo que nunca vi em minha atuação dentro do poder judiciário brasileiro. Não há previsão legal para isso. O que impera nesse tipo de processo é o consenso. 

O último relatório do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) sobre violência contra povos indígenas no Brasil, lançado em julho de 2024, apontou uma queda no número de ocorrências, mas um aumento de 15% no número de pessoas indígenas mortas: de 180 em 2022 para 208 em 2023. E 2023 foi o primeiro ano do novo governo Lula, após quatro anos de políticas governamentais explicitamente anti-indígenas do governo Bolsonaro. Como se pode explicar esse aumento? 

São vários fatores. A ascensão do Bolsonaro à Presidência da República representou um crescimento da força da extrema direita, que adora usar a questão indígena como pauta. Então, o aumento do número de assassinatos pode ser explicado por um acúmulo vindo do governo Bolsonaro. Agora, temos o governo do presidente Lula, mas as forças políticas que estão dando as cartas são outras. Vemos uma dificuldade imensa do presidente de construir sua base de apoio no Congresso Nacional. Tudo isso impacta, não dá para atribuir a um único motivo. 

A Guarani Kaiowá Marli Gomes foi atingida por tiro de bala de borracha na ação de 12 de setembro da PM de Mato Grosso do Sul à Terra Indígena Nhanderu Marangatu (Foto: Renato Santana/Cimi)

Então, algumas medidas do governo Lula, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas e o fortalecimento da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) não têm sido suficientes para reverter o avanço reacionário em relação à questão indígena?

Melhorou muito, não tem como dizer que não. Esse reconhecimento precisa ser feito. Sem sombra de dúvida, existe uma mudança de orientação política do Executivo. Mas eu diria que o governo vem enfrentando enormes dificuldades em relação às demarcações e à proteção territorial dos povos indígenas. 

Segundo o mesmo relatório do Cimi, Roraima e Mato Grosso do Sul permaneceram como os estados onde mais indígenas foram assassinados em 2023: 47 e 43, respectivamente. O que pode explicar os altos números nesses dois estados serem constantes nos últimos anos?

Acho difícil cravar um único motivo nesse cenário em que há variáveis políticas nacionais, estaduais e locais. Roraima e Mato Grosso do Sul têm uma realidade muito preconceituosa contra os povos indígenas, em um contexto em que o agronegócio ocupa as mais altas instituições políticas e do judiciário. Eu diria que há um racismo estrutural permeado por essas relações políticas locais que colocam o agronegócio e os povos indígenas para duelarem numa arena onde só um lado morre, só um lado é ferido, só um lado é encontrado morto e as investigações não andam.

Em abril, vai acontecer a edição de 2025 do Acampamento Terra Livre. Quais são os pontos de reivindicação e de discussão que os povos indígenas pretendem levantar durante o evento?

O movimento indígena é diverso. Tem suas correntes políticas e direcionamentos. Uma parte do movimento quer um acampamento um pouco mais reflexivo e, também, propositivo em relação a essas questões que mencionamos. Debater como a gente se posiciona de maneira mais energética, ou não, frente ao governo, às instituições, ao Estado brasileiro. Acho que vai ser um momento de costura política interna entre os indígenas do Brasil neste momento que, na minha avaliação, é um dos mais graves pós-Constituinte de 1988. Espero que seja esse momento de avaliação de cenário e tomada de decisão, e que a gente faça o que vem fazendo há mais de 500 anos: independentemente de quem esteja no poder, que coloquemos em prática nossos modos de tradição e formas de resistência. Que o governo não sirva para silenciar a estratégia de luta do movimento. 

Como a APIB está se articulando para incidir nas discussões da COP 30?

A APIB ainda está em um momento de tomada de decisão sobre essa estratégia de incidência. Pessoalmente, creio que deveríamos conectar tudo o que vem acontecendo com a COP, e utilizar essa conexão como um mecanismo de constrangimento de todos os atores institucionais que estão dispostos a fazer uma das maiores alterações da política indígena brasileira dos últimos 37 anos. Precisamos usar da COP para fazer com que essa pauta ganhe uma melhor visibilidade. É importante destacar que o Brasil emite CO2 principalmente por causa do desmatamento na Amazônia brasileira. E as terras indígenas são as mais importantes para a preservação ambiental e o equilíbrio climático.

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