Graham Murdock pensa a política digital dos Comuns

Filósofo da comunicação propõe ir além de regular os monopólios. Para ele, as redes, que reúnem pensamentos e afetos de bilhões de seres humanos, precisam ser geridas democraticamente pelas sociedades. Wikipedia mostra que é possível

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Graham Murdock, em entrevista ao DigiLabour

Graham Murdock é professor da Loughborough University e um dos nomes históricos da economia política da comunicação. Seus primeiros artigos são da década de 1970, incluindo uma resposta a Dallas Smythe em relação a pontos-cego no marxismo ocidental. É de 1973 o seu texto por uma economia política da comunicação de massa.

Murdock organizou livros como Carbon Capitalism and Communication, The Handbook of Political Economy of Communications e The Political Economy of the Media. Em português, publicou os artigos Comunicação contemporânea e questões de classe e Refeudalização revisitada: a destruição da democracia deliberativa. Ele também concedeu uma entrevista a Marco Schneider, publicada na Liinc em Revista

Ultimamente, seus textos tratam desde uma crítica à noção de midiatização até a proposição de uma economia moral das máquinas, que considere as materialidades midiáticas, e as relações entre capitaloceno e comunicação. Em entrevista à DigiLabour, Murdock trata de algumas dessas questões, além de suas visões sobre plataformas digitais e agenda de pesquisa para economia política da comunicação.

Em um texto de 2018, você defendeu uma economia moral das máquinas envolvendo materialidades midiáticas. De que maneiras a sua perspectiva se relaciona – com diferenças e semelhanças – às de Bruno Latour e Jussi Parikka, por exemplo?

Até recentemente, a pesquisa em comunicação tratava principalmente de três dimensões – comunicação como conjunto de instituições, como campo simbólico e como intervenção organizadora na vida cotidiana. Mas existe uma quarta dimensão. Os sistemas de comunicação também são conjuntos de infraestruturas (cabos, satélites, meios de transmissão) e conjuntos de dispositivos (televisores, celulares, notebooks). Nos últimos anos, essa dimensão material da comunicação atraiu pesquisadores que trabalham com uma variedade de perspectivas. Os escritos de Latour e Parikka são alguns exemplos. Meu próprio trabalho nos últimos anos faz parte dessa mudança em relação à comunicação. Para mim, esta é uma extensão lógica e necessária da base essencial da crítica da economia política na filosofia moral. Trabalhando nesta tradição, somos levados a perguntar “Como os modos de organizar a comunicação promovem ou impedem vidas boas e boas sociedades?”. Como definimos “bom” é, obviamente, uma questão de um debate infindável. Para mim, a busca por respostas girou em torno de como equilibrar e reconciliar as três demandas fundamentais da Revolução Francesa – por liberdade pessoal, igualdade social e justiça social, e uma sociedade com base no respeito e no cuidado mútuos. Na era do fundamentalismo de mercado, com as desigualdades cada vez mais exacerbadas e a celebração incessante do individualismo possessivo por meio do consumo contínuo, as lutas por igualdade e reciprocidade assumiram uma urgência renovada. Mas minhas pesquisas sobre a crise climática me forçaram a pensar muito sobre as bases materiais dos sistemas de comunicação e o impacto na sustentabilidade ambiental das formas como exploramos os recursos usados ​​na produção desses sistemas, a energia que eles empregam e os resíduos que eles geram. Isso nos leva a uma economia política da comunicação crítica que vê o espaço habitável, na útil metáfora de Kate Raworth, na forma de um donut que, por dentro, contém as lutas sociais de longa data por uma vida melhor para todos e, por fora, uma série de fronteiras ecológicas que definem os limites da atividade econômica sustentável. Uma versão dessa perspectiva está no cerne das várias propostas por um New Deal verde. Os pesquisadores de comunicação precisam estar centralmente envolvidos nesses debates. A adoção dessa perspectiva tem consequências importantes para a forma como pensamos sobre políticas de comunicação. Precisamos abordar não apenas as questões de longa data em relação a aspectos como acesso desigual, comercialização destrutiva e abuso do poder corporativo, mas também, como uma questão de urgência, o impacto das bases materiais dos sistemas de comunicação sobre o meio ambiente e a crise climática. Veja a inteligência artificial. Há grandes questões a serem abordadas sobre quem está conduzindo e definindo os desenvolvimentos atuais, quais usos tecnológicos estão promovendo e para quais propósitos. Mas há também questões vitais a serem feitas sobre os custos ecológicos da IA ​​em termos de esgotamento de recursos e demandas de energia. Do ponto de vista da sustentabilidade planetária, podemos permitir a expansão desenfreada da IA ​​ou precisamos definir limites, assim como fizemos com a tecnologia nuclear? O fato de ser possível desenvolver e implantar uma tecnologia não, é em si, uma razão para fazê-lo.

Como você relaciona pandemia, capitaloceno e comunicação?

A pandemia Covid-19 foi causada pela transmissão do coronavírus de animais para humanos. É o mais recente incidente de vários. Os seres humanos sempre foram vulneráveis ​​a doenças transmitidas por animais, mas nas últimas três décadas houve uma intensificação dos riscos. Enormes áreas de florestas foram desmatadas para extração intensiva de madeira, mineração e agricultura, destruindo os habitats de uma gama crescente de espécies de animais. Forçados a sair do que resta de seu habitat natural, eles estão em contato muito mais próximo com os humanos. Os morcegos são o elo principal. Eles são capazes de transportar uma variedade de vírus e se congregam em grande número. As evidências disponíveis sugerem que a Covid-19 foi transmitida por morcegos, provavelmente por meio de um animal hospedeiro intermediário. As pesquisas científicas confirmam que, nas atuais condições de uso da terra, podemos esperar que novos coronavírus surjam com frequência crescente, causando novas pandemias. Portanto, as ligações entre Covid-19, capitaloceno e comunicação são muito claras. A destruição da floresta tem duas consequências ambientais principais. Ela remove carbono vital que reduz os níveis de CO2 na atmosfera e isso está sendo realizado para gerar os recursos que atendem a uma cultura ecologicamente insustentável de hiperconsumo. As plataformas comerciais e dominantes de internet, onde a publicidade é onipresente, são agora a principal arena para promoção da cultura de consumo. Considere a crescente demanda global por uma dieta mais intensiva em carne. Esta tem sido uma das principais forças que impulsionam o desmatamento acelerado da cobertura florestal e sua conversão em pastagem. O esgotamento da floresta amazônica é o exemplo mais conhecido, mas é um processo mundial. Há uma ligação direta entre essa destruição ecológica e os discursos publicitários de hambúrgueres, nuggets de frango e outros fast foods que inundam a internet em uma variedade de novas formas promocionais. Ao contrário da imprensa tradicional e da televisão comercial, em que uma luta de longa data resultou em restrições à publicidade para crianças, as plataformas de internet são livres para desenvolver novas formas de publicidade, como advergames patrocinados por empresas.

Como você tem compreendido as plataformas digitais – em suas dimensões capitalistas e em relação ao mundo do trabalho, por exemplo?

Nos últimos anos, vimos crescer uma multiplicação de descrições sobre o capitalismo contemporâneo, como capitalismo de vigilância, por exemplo. O capitalismo de plataforma é outro exemplo. Não estou convencido de que essas nomenclaturas sejam inteiramente úteis, uma vez que corre o risco de separar a análise dos sistemas de comunicação das mudanças históricas, mais gerais, na composição do capital. Se você olhar a lista mais recente das empresas líderes mundiais classificadas por capitalização de mercado, verá que as principais empresas digitais dos Estados Unidos e da China dominam as dez primeiras. Não há dúvida de que agora elas são fundamentais para a organização econômica em nas principais potências econômicas globais. O capitalismo político da China é um caso especial devido ao papel organizacional dominante assumido pelo Partido Comunista. Mas olhando a situação no Ocidente, vemos o “capitalismo de plataforma” sustentado por mudanças de longo prazo em direção ao capitalismo rentista. O capitalismo industrial sempre coexistiu com um setor econômico substancial gerando lucros com renda. Os capitalistas rentistas originais que faziam fortunas com a posse de terras e propriedades físicas juntaram-se a empresários que comandam propriedade intelectual e agora a corporações com controle monopolista sobre dados pessoais. Meu próprio trabalho sobre a ideia de comum (commons) me levou a examinar mais de perto a história do cercamento, convertendo recursos que antes eram relacionados ao comum em propriedade privada. Para mim, a maneira mais interessante de pensar sobre o capitalismo digital é como a última extensão do cercamento e a ascensão de uma nova classe rentista. Como pontuou Marx, o primeiro movimento de cercamento aboliu as condições que sustentavam uma economia camponesa de autossuficiência na Inglaterra e forçou os camponeses a se tornarem trabalhadores, tanto nas novas propriedades rurais quanto nas fábricas industriais. Somos os novos trabalhadores, cada vez mais forçados a trabalhar nas propriedades pertencentes aos novos rentistas digitais, contribuindo para suas fortunas ao dar nossa atenção, nosso engajamento e nossos dados pessoais. Os proprietários clássicos alugam residências, escritórios e espaços comerciais nos prédios de suas propriedades. Os novos proprietários digitais alugam os dados, sobre os quais têm controle monopolista, para anunciantes e organizações políticas que desejam direcionar seus recursos para segmentos sociais cuidadosamente calibrados. A vantagem de pensar as plataformas digitais a partir dessa perspectiva é que ela reconecta a análise comunicacional a processos mais amplos de disrupção e mudança. O cercamento clássico de terras e recursos físicos ainda continua, pois os povos indígenas e outras comunidades são espoliados por empresas de mineração envolvidas na geração de materiais e energia de combustível fóssil que sustentam as plataformas digitais. Qualquer análise que ignore essa destruição é cúmplice dessa espoliação. A luta deles é a nossa luta, já que as condições para uma vida boa e um planeta sustentável são indivisíveis e envolvem todos os elos da cadeia de valor que começa com a recente destruição de sítios aborígenes sagrados na Austrália Ocidental pelo grupo Rio Tinto para tornar a extração mineral mais fácil e barata para a empresa, e termina quando abrimos celulares fabricados por grandes empresas que usam recursos minerais escassos e nos conectamos às plataformas digitais dominantes.

Para você, qual é a agenda de pesquisa a ser enfrentada pela economia política da comunicação nos próximos anos?

Como argumentei anteriormente, as preocupações já estabelecidas da crítica da economia política permanecem mais relevantes do que nunca. Estamos testemunhando uma concentração sem precedentes de poder comunicativo nas mãos de megacorporações. A luta para construir uma alternativa que forneça os recursos que permitam a todos se desenvolverem de forma criativa e contribuir para uma comunidade vibrante e justa é, portanto, mais urgente do que nunca. Mas, como falei, diante de uma crise climática e ambiental em aceleração, também precisamos nos envolver totalmente com a base material dos sistemas de comunicação que usamos e questionar sobre os recursos e energia que consomem, a poluição e o lixo que geram, e os custos sociais e ambientais impostos a cada elo da cadeia de valor que os produz. É impossível ter uma alternativa verdadeiramente crítica ao sistema de comunicação comerciais dominantes se essa alternativa empregar as mesmas infraestruturas e dispositivos que são social e ambientalmente destrutivos. Precisamos entrar nos debates em torno de alternativas sustentáveis ​​baseadas em novos materiais e energia limpa.

Sei que a questão difícil, mas precisamos imaginar outros mundos possíveis ou utopias reais, no termo do Erik Wright. Como construir alternativas viáveis ao neoliberalismo principalmente do ponto de vista da comunicação?Estamos agora observando movimentos crescentes para impor regulações sobre os conglomerados digitais. Existem propostas para dividi-los, forçá-los a pagar uma porcentagem mais justa de impostos, impor as mesmas regras editoriais e publicitárias que as da mídia tradicional, para quebrar seu direito de monopólio de coletar e usar dados pessoais. Todas essas intervenções são necessárias e urgentes, mas não são suficientes por si mesmas. Dado meu argumento anterior sobre o impacto ecologicamente destrutivo do hiperconsumo impulsionado pela publicidade, manter e ampliar os recursos centrais de comunicação sem financiamento publicitário é absolutamente essencial. O serviço público de mídia, pago com impostos e gratuito no ponto de uso, está atualmente sob ataque sem precedentes dos fundamentalistas do mercado. Há sérios problemas com os sistemas existentes, como paternalismo, falta de diversidade e captura corporativa e governamental, mas permitir que essas instituições públicas entrem em colapso marcaria uma nova escalada na destruição do campo cultural pela publicidade. O princípio do serviço público precisa ser defendido e as formas atuais reconstruídas. Em meu próprio trabalho, esse argumento é parte de um projeto mais amplo no sentido de pensar sobre o que estaria envolvido na criação de um comum digital. Se os conglomerados digitais representam um novo movimento de cercamento, como seria a restauração do comum? Erik Wright dá o exemplo da Wikipedia como uma “utopia real”, uma intervenção baseada em uma economia moral do dom, que construiu a maior enciclopédia que o mundo já viu inteiramente fora do sistema de mercado e sem nenhum subsídio estatal. Para muitos comentadores, essa é a aparência do comum. Eles veem o futuro como uma multiplicidade de projetos colaborativos baseados em doações voluntárias de tempo e experiência, operando fora do mercado e do Estado, e projetados para produzir recursos compartilhados disponíveis gratuitamente. Isso certamente é necessário, mas não é suficiente. Também precisamos ampliar economia de bens públicos. Construir o comum depende do acesso a espaços e a outros recursos, que são alocados de forma mais eficaz e equitativa pelo investimento público e pela tomada de decisão democrática. Portanto, para mim, construir um comum digital é forjar uma nova relação entre bens públicos pagos com impostos e economias com base em doações. Os parques públicos, por exemplo, são protegidos contra o cercamento privado por decisões públicas e sua estrutura mantida por investimento público, mas eles estão abertos a uma multiplicidade de usos. Uma forma de começar a conceber alternativas para os jardins murados dos conglomerados digitais é pensar em maneiras de generalizar a ideia de parque público para outras atividades.

Estamos agora observando movimentos crescentes para impor regulações sobre os conglomerados digitais. Existem propostas para dividi-los, forçá-los a pagar uma porcentagem mais justa de impostos, impor as mesmas regras editoriais e publicitárias que as da mídia tradicional, para quebrar seu direito de monopólio de coletar e usar dados pessoais. Todas essas intervenções são necessárias e urgentes, mas não são suficientes por si mesmas. Dado meu argumento anterior sobre o impacto ecologicamente destrutivo do hiperconsumo impulsionado pela publicidade, manter e ampliar os recursos centrais de comunicação sem financiamento publicitário é absolutamente essencial. O serviço público de mídia, pago com impostos e gratuito no ponto de uso, está atualmente sob ataque sem precedentes dos fundamentalistas do mercado. Há sérios problemas com os sistemas existentes, como paternalismo, falta de diversidade e captura corporativa e governamental, mas permitir que essas instituições públicas entrem em colapso marcaria uma nova escalada na destruição do campo cultural pela publicidade. O princípio do serviço público precisa ser defendido e as formas atuais reconstruídas. Em meu próprio trabalho, esse argumento é parte de um projeto mais amplo no sentido de pensar sobre o que estaria envolvido na criação de um comum digital. Se os conglomerados digitais representam um novo movimento de cercamento, como seria a restauração do comum? Erik Wright dá o exemplo da Wikipedia como uma “utopia real”, uma intervenção baseada em uma economia moral do dom, que construiu a maior enciclopédia que o mundo já viu inteiramente fora do sistema de mercado e sem nenhum subsídio estatal. Para muitos comentadores, essa é a aparência do comum. Eles veem o futuro como uma multiplicidade de projetos colaborativos baseados em doações voluntárias de tempo e experiência, operando fora do mercado e do Estado, e projetados para produzir recursos compartilhados disponíveis gratuitamente. Isso certamente é necessário, mas não é suficiente. Também precisamos ampliar economia de bens públicos. Construir o comum depende do acesso a espaços e a outros recursos, que são alocados de forma mais eficaz e equitativa pelo investimento público e pela tomada de decisão democrática. Portanto, para mim, construir um comum digital é forjar uma nova relação entre bens públicos pagos com impostos e economias com base em doações. Os parques públicos, por exemplo, são protegidos contra o cercamento privado por decisões públicas e sua estrutura mantida por investimento público, mas eles estão abertos a uma multiplicidade de usos. Uma forma de começar a conceber alternativas para os jardins murados dos conglomerados digitais é pensar em maneiras de generalizar a ideia de parque público para outras atividades.

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