Tunísia, revolução e arte

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Imagens uma intervenção urbana radical: um coletivo de artistas plásticos cobre, com imensas fotos de gente comum, os antigos monumentos ao ditador. Por Bruno Cava, no Quadrado dos Loucos

Fotografias em preto-e-branco, fonte: Al-Jazeera

E pensar que a revolução árabe eclodiu quando um camelô teve a barraquinha apreendida numa operação “choque de ordem”. O levante tunisiano rompeu os diques e, cem dias depois, as revoltas inundam 19 países no norte da África e no Oriente Médio (ler aqui o estado da luta).

Tunísia e Egito estão na frente do que é o movimento político da geração, — um evento definidor das lutas para o século 21, dos modos de usar a revolução 2.0. Alguns temem que, se amainados os tumultos populares, o pêndulo da história inverta o balanço. O ladrão fugido pela janela retorna pela porta, como contrarrevolução, com a reorganização das elites num novo paradigma. Existe aí toda uma teoria do poder constituinte, ao redor do problema de sua “termidorização”. Por um lado, não se deve subestimar o golpismo, mas por outro o ranço fatalista não deixa de incorrer em non sequitur. Como se, relampejado o devir revolucionário, os problemas já não fossem outros. Conciso, arrematou Hugo Albuquerque no Descurvo: “nada será como antes e é isso que importa”.

Não há razão para descrer na força afirmativa da multidão. Acreditar em quê, do contrário? Pois ela tem calor e rosto, comunica-se, as suas organizações e redes, — inventadas e reinventadas na premência do choque de forças, — não se dissolvem. Uma mobilização dessa intensidade muda a percepção das pessoas e não tem como ser neutralizada. Porque a multidão tem voz para, da história oficial, irromper a sua narrativa polifônica. E tem olhos para enxergar as relações de poder, a materialidade das lutas e, sobretudo, a sua potência como sujeito constituinte. A jogada doravante, a despeito do afã de legalistas e constitucionalistas em estabilizar uma nova ordem, pode estar em não encerrar o ciclo revolucionário, em manter acesa a chama de amor e raiva que moveu tantos milhões a insurgir-se contra a exploração. E desse modo, numa versãosoft, porém determinada, da revolução, ir mais além do que as promessas interessadas de quem ainda tem muito a perder.

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Esses dias, deparei-me com o Inside Out Project na Tunísia. Quem não lembra, em 2008 o artista de rua “JR” (é um coletivo?) encheu o Morro da Providência, aqui no Rio, de olhares gigantescos. Se, do asfalto ou da praia, os brancos costumam contemplar a favela sem muita judiciosidade; essa intervenção lembra a todos como os negros lá de cima também miram-nos aqui embaixo. Pois então, na Tunísia de 2011, foram espalhadas cerca de cem fotografias em preto-e-branco em ruas, monumentos, prédios públicos, ao ar livre. Elas retratam tunisianos anônimos, colocados exatamente no lugar de fotos oficiais do ditador deposto e de símbolos do poder.

Desta vez, o processo mais colaborativo envolveu não só o misterioso “JR”, mas também seis fotógrafos tunisianos, além das centenas de pessoas que posaram, confeccionaram o material e sugeriram pontos estratégicos. Arte genuína de rua, à maneira do grafite, vertida não como criação transcendente de uma classe, mas prática social e socializante.

Rio de Janeiro, 2008
Tunísia, 2011: olhar penetrante de uma tunisiana, em paisagem tipicamente mediterrânea

Em vez da bandeira, o riso por vezes trágico de quem afronta o poder constituído
Esta foto, com o retrato de um anônimo colocado entre arquivos e fichas de dissidentes, na Goulette, — a incendiada sede da polícia secreta em Túnis, — me chamou muito a atenção. Que pregnância de sentidos! como não lembrar o conto Porta da lei? ou então os intermináveis arquivos do tribunal de O processo, ambos de Kafka? é isso, afinal, que o agrimensor encontra, uma vez dentro do Castelo? Toneladas e toneladas de papéis?
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2 comentários para "Tunísia, revolução e arte"

  1. Lettie disse:

    I much prefer inrfmoative articles like this to that high brow literature.

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