Ficarão as Universidades refém das emendas?

Cortes na Educação têm deixado as instituições dependentes de recursos parlamentares. O que deveria ser garantido por lei, agora, depende dos humores políticos. Retrocesso ofusca a necessidade de políticas públicas a longo prazo – e pode afetar continuidade de pesquisas

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Por Sarah Schmidt, na Pesquisa FAPESP

As emendas parlamentares, mecanismo pelo qual deputados e senadores direcionam parte do orçamento público de acordo com compromissos assumidos com estados, municípios e instituições, têm se tornado um recurso complementar cada vez mais frequente para as universidades públicas brasileiras. Seus usos variam do financiamento de projetos de pesquisa à manutenção de prédios e obras de infraestrutura, como a construção de laboratórios. O fenômeno se insere no contexto de crescimento geral no volume de emendas parlamentares federais e tem provocado debates entre especialistas da área: se, por um lado, esse tipo de recurso pode ajudar a compor o orçamento dessas instituições, por outro, são repasses incertos, que podem cessar de um ano para outro, e seu uso não deve ofuscar a necessidade de políticas públicas orçamentárias com previsibilidade de longo prazo.

Entre 2014 e 2025, as emendas passaram de 0,8% para aproximadamente 7,2% do orçamento das universidades federais. Dos R$ 7,89 bilhões previstos neste ano na Lei Orçamentária Anual (LOA) para as 69 universidades federais brasileiras, R$ 571 milhões devem vir de emendas parlamentares. Apesar de ligeira queda em relação a 2024, os valores têm crescido nos últimos anos – em 2014 foi de R$ 148,42 milhões, quando o orçamento discricionário da LOA para essas instituições foi de aproximadamente R$ 17 bilhões, mais que o dobro do atual.

Os dados são de um levantamento publicado em agosto pelo Observatório do Conhecimento, instituição ligada a sindicatos de docentes de universidades públicas, com valores extraídos do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) do Ministério do Planejamento. É importante ressaltar, no entanto, que esses valores correspondem à chamada dotação inicial, que se refere ao montante aprovado na LOA – sem garantia de que, de fato, esses recursos tenham sido repassados e executados em sua totalidade.

“Com a queda do orçamento transferido pelo Ministério da Educação [MEC], as instituições acabaram usando as emendas como um dispositivo compensatório. Mas elas nem de longe resolvem os problemas das universidades, que expandiram suas matrículas nos últimos anos e incluíram alunos pelas ações afirmativas”, avalia a cientista política Mayra Goulart da Silva, coordenadora do Observatório e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Além disso, as emendas estão sujeitas aos humores políticos e não há garantia de continuidade.”

“Ao mesmo tempo, há um montante cada vez maior de dinheiro público destinado às emendas parlamentares no país”, ressalta a economista Letícia Inácio, coordenadora de estudos técnicos do Observatório. Ela é autora de dois levantamentos sobre o tema – o primeiro, de 2023, já apontava uma dependência crescente desse tipo de financiamento. No total, R$ 50,4 bilhões estão destinados pelo governo para pagamento de emendas em 2025, em geral, diante de R$ 9,6 bilhões em 2014. “Esse tipo de financiamento coloca uma responsabilidade nos gestores das instituições e de grupos de pesquisa que não existia antes, de ter que fazer articulações com parlamentares”, pondera Inácio.

Para as universidades federais, neste ano, a previsão é de que R$ 302 milhões venham das chamadas emendas de bancada (quando parlamentares de um estado se unem para direcionar um recurso para uma instituição) e R$ 269 milhões via emendas individuais, destinadas por um único deputado ou senador.

“As emendas parlamentares, que antes eram usadas para ações pontuais, como equipar museus, agora são utilizadas para suprir necessidades fundamentais”, avalia a biomédica Helena Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). “O problema é que essas emendas, que deveriam ser complementares ao orçamento, estão sendo usadas para substituir o que teria de estar garantido por lei”, pondera.

Em 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) bloqueou a execução dos recursos dessas indicações orçamentárias do Legislativo para avaliar e discutir critérios de transparência, e o escrutínio chegou às universidades públicas. Em janeiro de 2025, o STF deu prazo de 30 dias para que o governo federal e os estaduais publicassem normas e orientações sobre prestação de contas de emendas parlamentares por universidades públicas e suas fundações de apoio, que em muitos casos administram o dinheiro vindo de emendas.

“Uma das requisições do STF foi que as fundações de apoio divulgassem com clareza os projetos de emendas”, explica Inácio. Como um dos resultados, em fevereiro, o MEC publicou uma portaria que estabelece orientações para o uso desses recursos e à prestação de contas pelas instituições federais de ensino e suas fundações de apoio. Inácio também levantou as 10 universidades federais com o maior volume de recursos previstos para este ano. A Fundação Universidade de Brasília, ligada à UnB, ocupa a primeira posição, com R$ 65,08 milhões, seguida pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com R$ 63,8 milhões, e pela Fundação de Apoio à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), com R$ 56 milhões (ver infográfico abaixo).

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Finalidades

Em um artigo publicado na revista Práticas em Gestão Pública Universitária em julho de 2023, pesquisadores da UFRJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF) apontam que, entre 2019 e 2022, R$ 132,72 milhões foram destinados à UFF, entre emendas individuais e de bancada. A universidade está entre as 10 que devem receber mais verbas de emendas em 2025.

Desse montante, a maior parte (76,8%) foi usada para reestruturar e modernizar a instituição, como obras e readequações estruturais. Outros 12,4% foram para ações de fomento à graduação, pesquisa, extensão e pós-graduação, e 10,8% para a ação classificada como funcionamento de instituições federais, como compra de mobiliários e equipamentos, pagamento de serviços de terceiros, entre outros. Os dados foram levantados pelos autores a partir do Tesouro Gerencial, sistema do governo federal com informações orçamentárias.

“Na UFF, foi um desafio dar continuidade às obras iniciadas durante o Reuni [Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais], que estavam paralisadas desde 2013”, conta a especialista em gestão universitária Gisele Fernandes, servidora da Pró-reitoria de Planejamento da UFF e primeira autora do estudo. “Por meio das emendas – especialmente as de bancada – conseguimos reunir um volume maior de recursos, finalizar obras inacabadas e equipar laboratórios”, complementa. Fernandes está temporariamente cedida para o Instituto Benjamin Constant, onde trabalha como diretora de Planejamento e Administração.

Entre as medidas concretas que puderam ser realizadas, destacadas no trabalho, está a retomada, em 2019, da construção da nova sede da Faculdade de Medicina por meio de uma emenda de bancada de aproximadamente R$ 25 milhões, fruto de uma articulação da Gestão Superior da instituição. A obra, que estava paralisada devido à falta de recursos, foi finalizada em dezembro de 2024.

“Diante dos sucessivos cortes, as emendas passaram a ocupar um papel estratégico como ferramenta de resistência institucional e de continuidade de projetos e de infraestrutura universitária”, avalia Fernandes. Em 2024, ela organizou um encontro sobre orçamento na UFF para discutir com a comunidade acadêmica boas práticas no uso de emendas parlamentares. Em junho de 2025, um conjunto de normativas, uma cartilha prática e um painel interativo, que mostra como as emendas são executadas pela universidade, foram apresentados ao público interno da instituição.

Entre 2016 e 2023, as quatro universidades federais rurais do país tiveram a maioria dos recursos oriundos de emendas individuais usados na reestruturação e na manutenção das instituições. Uma parte menor foi aplicada ao ensino, à pesquisa e extensão e assistência estudantil, como bolsas de permanência, segundo um artigo publicado na Revista Jurídica da Ufersa em julho de 2024.

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

O estudo focou apenas nas emendas individuais e nos valores de fato executados. A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) usou o maior montante no período, R$ 37,6 milhões, seguida pela Rural da Amazônia (Ufra), com R$ 11,3 milhões. A Rural do Semi-árido (Ufersa), no Rio Grande do Norte, com R$ 9 milhões em emendas individuais executadas, ficou em terceiro lugar, e, por último, a Rural de Pernambuco (UFRPE), com R$ 5 milhões.

O trabalho destaca que a atenção principal dos parlamentares foi direcionada para ações de reestruturação, expansão e modernização das instituições, categorias que corresponderam a 48% das emendas na Ufersa e 39% na Ufra. O funcionamento das instituições ficou em segundo lugar em termos de verbas. Apenas a Ufersa recebeu emendas para assistência aos estudantes (11%). “Hoje, conseguir emendas parlamentares se tornou uma questão de sobrevivência”, avalia o especialista em orçamento público Adailson Pinho de Araújo, professor de direito da Ufersa e primeiro autor do estudo.

Em dados preliminares de outra pesquisa, ele avaliou emendas individuais destinadas às 69 universidades federais entre 2015 e 2024, cruzando dados do Siop, Portal da Transparência, Sistema Integrado de Administração Financeira e Siga Brasil. Segundo sua análise, quase 39% foram para funcionamento e gestão administrativa, 31,1% para infraestrutura e expansão e 26,3% para ensino, pesquisa e extensão. Do restante, 2,6% foram destinados para infraestrutura e implantação de hospitais universitários federais; 0,4% para assistência estudantil e 0,3% para o que Araújo classificou como projetos especiais e ações emergenciais, como a reconstrução do Museu Nacional, da UFRJ.

A Universidade Federal do Tocantins (UFT), que está entre as instituições federais que devem receber mais recursos de emendas em 2025, com previsão de R$ 26,3 milhões, também tem investido em obras, principalmente. “Houve uma queda drástica nos recursos de capital a partir de 2014, que passaram de mais de R$ 10 milhões para cerca de R$ 1 milhão”, explica Marcelo Leineker, vice-reitor da UFT. De acordo com ele, após os cortes recorrentes de orçamento do MEC, a universidade passou a buscar emendas parlamentares para concluir obras, apoiar projetos de pesquisa e extensão e mais recentemente para construir um hospital universitário, com R$ 5 milhões captados em 2024 e R$ 25 milhões previstos para este ano. A obra total é orçada em cerca de R$ 300 milhões.

Leineker conta que a universidade tem desenvolvido um portfólio de ações para apresentar aos parlamentares. “Como o estado tem poucos habitantes, há um diálogo próximo entre parlamentares e órgãos federais. Todo fim de ano, participamos de reuniões com a bancada, e apresentamos nossas demandas.”

Entre as universidades estaduais, a busca de recursos entre os parlamentares também ocorre. Ao enfrentar dificuldades para financiar seu grupo de pesquisa, o diretor Juarez Xavier, da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Universidade Estadual Paulista (Faac-Unesp), campus de Bauru, conseguiu recursos para dois projetos via emendas parlamentares individuais de deputadas estaduais. Ele lidera o grupo de pesquisa Núcleo de Estudos e Observação em Economia Criativa – NeoCriativa e conseguiu cerca de R$ 250 mil para um projeto de atenção psicossocial voltado a estudantes negros e R$ 150 mil para a criação de um laboratório de podcasts sobre relações étnico-raciais, que contemplaram bolsas para alunos que ingressaram via reserva de vagas. Ambos terminaram no ano passado. Como ele já conhecia as deputadas, que apoiam causas raciais, foi convidado a apresentar projetos relacionados à temática.

Neste ano, um novo projeto em parceria com a TV Unesp, financiado por emendas estaduais, está em andamento. “Esses recursos, embora não substituam uma política pública estruturada, têm funcionado como um caminho para fortalecer pesquisadores negros e criar base para futuros financiamentos institucionais, contribuindo para superar uma desigualdade histórica no campo científico”, explica Xavier.


A reportagem acima foi publicada com o título “Caminho alternativo” na edição impressa nº 354, de agosto de 2025.

Artigos científicos
SILVA, G. S. S e OLIVEIRA, A. J. B. Alocação de recursos orçamentários provenientes de emendas parlamentares: O caso da universidade federal fluminenseRevista Práticas em Gestão Pública Universitária, v. 7, n. 2. jul. 2023.
ARAÚJO, P. A et alDistribuição de emendas parlamentares individuais em universidades federais rurais (2016-2023). Rejur – Revista Jurídica da Ufersa. v. 8, n. 16. jul. 2024.

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