Escola de Frankfurt, 100: Ela ainda está viva?

Teoria Crítica trouxe novas leituras da indústria cultural e, há três gerações, ainda é evocada para diagnosticar modalidades de opressão social. Porém, ficou presa à burocracia universitária. Poderá responder aos novos dilemas do mundo?

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Por Ronaldo Tadeu de Souza, no Blog da Boitempo

Dentre as inúmeras efemérides de 2023, uma das mais importantes para os debates acadêmicos, intelectuais, públicos e políticos, estão os 100 anos da assim chamada Escola de Frankfurt, hoje mais conhecida como Teoria Crítica. Formada por um conjunto de pesquisadores, escritores de partidos socialistas e intelectuais de esquerda, ela é a mais longeva corrente de ideias e pensamento crítico em importância e impacto nas ciências humanas. O que tornou isso possível? O sentido de fazer Teoria Crítica continua mantido hoje?

São os próprios fundamentos e pressupostos da Escola inaugurada no início dos anos 1920 na Alemanha que a fez (e faz) manter a permanência e a reputação ao longo do tempo. O contexto de formação do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt apresentava características entrecruzadas que o século XX jamais vivenciou novamente. A presença de um arco de revoluções que irromperam a partir da Russa em 1917, a circulação de sistemas de pensamento os mais complexos como os de Max Weber, Edmund Husserl e Martin Heidegger, a reconfiguração dos Estados modernos concernente ao seu posicionamento nas relações internacionais, as transformações da economia capitalista de concorrencial para monopolística e as modalidades em que a cultura expressava diversas dessas mudanças na sociedade constituíam um cenário inédito para o pensamento de esquerda.

Todos esses fatores lançavam as perspectivas de transformação social em processos cada vez mais labirínticos. A esperada revolução social tendo os trabalhadores como seu principal agente político perdia cada vez mais força após 1918-1919 com a ação derrotada dos espartaquistas na Alemanha. Era o momento de analisar o que havia ocorrido para que os sistemas de dominação e opressão não descem lugar a sociedades emancipadas.

Daí que teóricos e intelectuais como Felix Weil nascido na Argentina e que havia sido militante comunista, com Carl Grünberg, Friedrich Pollock e Max Horkheimer tiveram o tirocínio de fundar um instituto em que se pudesse realizar pesquisas sociais de modo a compreender quais eram os obstáculos para a emancipação social. A referência filosófica e sociológica ainda era Karl Marx, a dialética e a crítica da economia política. Mas ao pensamento marxista eles propuseram articular um conjunto de outras disciplinas das ciências humanas, bem como estudos empíricos sobre fenômenos sociais: a ideia de materialismo interdisciplinar foi um dos grandes feitos da Teoria Crítica naquele momento e que se mantém até hoje. Ele permitia que a teoria não se tornasse pobremente positivista refletindo as forças da ordem social e nem que o desejo de mudança da vida dos que sofriam as consequências da opressão da sociedade de classes fosse deslocada do quadro de referência histórico e político. Surgem, assim, a noção de diagnóstico (crítico) de tempo articulado dialeticamente à busca por emancipação – uma marca distintiva de toda a trajetória de cem anos da Teoria Crítica. Foi esse o aspecto particular que a fez adquirir espaço e se efetivar como área de investigação no âmbito da universidade.

Os problemas diagnosticados pelo grupo que criou o Instituto de Pesquisa de Frankfurt estiveram fortemente assentes na extensão da reificação das relações de produção – consequência da racionalidade instrumental – para outros espaços constitutivos das formas de vida: o caso mais tratado pelos textos do período que vai de 1923 a 1970 é o da perda de posicionamento crítico da cultura. Theodor Adorno aqui foi o mestre de toda uma geração com ensaios refletindo sobre música, literatura, psicologia, cinema e comportamento social. Nessa chave, livros e textos como “Estudos sobre a Personalidade Autoritária”, “Sociologia da Nova Música”, “Ensaio como Forma”, “Museu Valery-Proust” e “Industria Cultural como Mistificação das Massas” são um legado inestimável do artífice do pensar pelo negativo, sobretudo para os que buscam entender quais são os traços peculiares de nossas sociedades que propiciam a permanência da opressão, da exploração – e das possibilidades de superação desse estado de coisas.

A Teoria Crítica, então, passaria a ser tema de estudo em diversas disciplinas acadêmicas nas ciências humanas: sociologia e teoria literária, cinema e psicologia, filosofia e comunicação, arte e crítica da cultura. Mas não foram apenas glórias intelectuais e a realização de obras inovadoras que construíram esse centenário. Ao voltar para a Alemanha, Adorno passou a postular a existência de uma Escola de Frankfurt, uma etiqueta que delineava os contornos dos que pertenciam ao Instituto antes e durante o nazifascismo, tendo muitos deles se exilado nos Estados Unidos, e que reivindicavam o exercício da crítica radical da sociedade administrada. Contudo, quando a Teoria Crítica deveria ter ido à práxis, um ponto decisivo na negação da imparcialidade ingênua da sociologia positivista, ela recusou a si mesma. O debate triangulado de Adorno-Marcuse-movimento estudantil no fim dos anos 1960 era a expressão das contradições do projeto frankfurtiano. O caso de Adorno tendo de invocar a polícia em uma manifestação de estudantes, a recusa de seus alunos a aceitarem sua passividade diante da situação de enfrentamento contra a ordem vigente e as cartas de Marcuse advertindo a seu amigo Ted acerca do equívoco de convocar as forças de segurança para resguardar as tradições acadêmicas do Instituto foram os momentos mais delicados no percurso da Teoria Crítica até hoje.

Se lermos Adorno por suas próprias lentes, é possível sugerir que ele representava em alguma medida a “extensão da sociedade ao âmbito dos indivíduos”. Pois, em sua atitude diante das manifestações estudantis expressou o início de algo que se consolidou ao longo desses cem anos da Teoria Crítica: o intenso processo de institucionalização e profissionalização acadêmica e por conseguinte a perda do impulso crítico-radical com vistas à emancipação social. Entretanto, com sua obra maior, a “Dialética Negativa”, ele argumentou sobre a necessidade premente de refletirmos a partir do movimento incandescente e diabólico do não-idêntico – ou seja, de que na busca por uma sociedade livre da exploração e da opressão recusássemos a falsa totalidade racionalizadora do capital e seus arranjos sociais vigentes. É possível suspeitarmos o que Adorno diria das atuais posições e discursos da esquerda conformista e “bem pensante” de quando governa.     

A 2ª geração do Instituto de Pesquisa, tendo na figura imponente de Habermas o principal representante, assinalava uma mudança de orientação. A obra de Marx e a crítica às condições de existência no capitalismo já não eram o centro das análises; o projeto habermasiano de reconstrução da teoria social atendia a três requisitos: 1); propor um sistema de reflexão ancorada nas potencialidades da esfera pública; 2) reestabelecer o quadro das ciências sociais nos níveis da justificação, da epistemologia e da modernidade; 3) e reposicionar o empreendimento frankfurtiano frente à política, particularmente, a política da deliberação democrático-comunicativa. Assim, a agenda investigativa de Habermas, parte dela já em exercício no contexto das ideais neoliberais, se concentrou em obras específicas atendendo àquelas três exigências: respectivamente, “Mudança Estrutural da Esfera Pública”, “Conhecimento e Interesse”, “Teoria da Ação Comunicativa”, “Para Reconstrução do Materialismo Histórico” e “Facticidade e Validade” (ou Direito e Democracia na primeira tradução do texto para o português). Todo um corpo de estudos conduzidos por especialistas se formou nas universidades e em centros de pesquisa em torno da Teoria Crítica de Habermas a partir daí. O frescor da crítica, a forma do ensaio, o encanto pelas modalidades de expressão estética e a oposição frontal à sociedade capitalista perderiam espaço, ao longo do tempo, para preocupações com metodologia, epistemologia, justificações racionais, descrição da sociedade civil e seus atores e os procedimentos de deliberação para se chegar a decisões políticas no âmbito das democracias constitucionais.

Ainda vivo, produzindo e intervindo nas discussões públicas, Habermas recebeu dois tipos de crítica da geração subsequente. Já em circunstâncias históricas e políticas da forte presença de grupos minoritários e dos discursos contrauniversais, para a 3ª geração não se poderia aceitar mais uma Teoria Crítica que estivesse balizada por sujeitos universais e abstraídos de situações efetivamente materiais em várias dimensões da vida social. Por um lado, Axel Honneth enfatizava a necessidade de diagnósticos sobre  uma gramática dos conflitos que atravessava um conjunto de agentes sociais não mais à espera de soluções estruturais da política institucional, mas sim de modalidades de reconhecimento de tipos peculiares de sofrimento; e por outra, nos Estados Unidos três teóricas críticas, Nancy Fraser, Seyla Benhabib e Iris Marion Young afirmavam que a Teoria Crítica tinha de incluir noções de contra-públicos (no interior e frente à esfera pública, universalizada por Habermas), o outro concreto (raça, gênero, etnia) e a representação plural se quisesse manter o vigor intencionado do projeto de 1923 com vistas à emancipação. O diagnóstico de tempo como o momento da crítica emancipatória permaneceu nesses dois movimentos recentes da Teoria Crítica, mesmo que o processo de especialização e excesso de institucionalização acadêmica tenham trazidos perdas consideráveis em termos de radicalidade e intervenção pública – algo já presente em Habermas, e que se intensificou tanto na teoria do reconhecimento de Honneth como nas feministas norte-americanas, ambos cada vez mais enredados pela vivência de departamentos de ciências sociais, humanidades e filosofia. A absorção pelos ritos e hábitos no interior do mundo campi teve seus custos e prejuízos: o jogo por recursos de pesquisa, as tramas departamentais, a necessidade de prestígio entre os pares e a adequação aos procedimentos burocráticos da universidade não poderiam passar ilesos mesmo para a Escola de Frankfurt.    

Entretanto, com o avanço pelo mundo das forças neoliberais na economia, na política e na cultura, um conjunto de ideias que conseguiu hegemonizar mentes e corações nunca visto antes na história, a Teoria Crítica foi e é desafiada a prosseguir com seu legado. A formação de teóricos e teóricas críticas permanece intensa em diversas universidades, centros de pesquisa avançados e convênios internacionais; a construção de diagnósticos críticos se mantém na prática e no horizonte dos que se filiam à corrente na tentativa de responder às exigências contemporâneas, sobretudo, com o avanço de governos conservadores a partir de 2010, acompanhado às novas modalidades de opressão social, alienação da vida autêntica e do sofrimento psíquico. Na Alemanha, por exemplo, já há uma 4ª geração refletindo na esteira de Honneth, nos Estados Unidos pesquisadores da Teoria Crítica estão em departamentos de humanas na New School for Social Research e participam de consórcios internacionais sobre pensamento crítico como o sediado pela Universidade da Califórnia (Berkeley), na Inglaterra, o Birkbeck Instituto para Humanidades da Universidade de Londres nos encontros anuais recebe especialistas no legado de Adorno, Benjamin e Habermas para debaterem o mundo contemporâneo; no Brasil universidades públicas como USP, UFPE, Unicamp, UFMG e centros de pesquisa como o Cebrap e o Latesfip-USP abrigam teóricos e teóricas críticos que produzam em níveis acadêmicos altamente sofisticados e comprometidos com o diagnóstico do tempo presente. 

Entretanto, nestes 100 anos do Instituto de Pesquisa de Frankfurt a apreciação indagativa que deve ser feita é se: no âmbito de espaços institucionais universitários cada vez mais tecnificados pela razão quantitativa, com a incomensurável especialização da pesquisa e as competições instrumentais em nome das melhores pontuações em índices de avaliação o ideal de Felix Weil, Max Horkheimer, Jürgen Habermas, Nancy Fraser, Rahel Jaggi e Amy Allen  e tantos outros ainda pode responder aos anseios de emancipação em uma quadra histórica de ascensão da extrema-direita, do capitalismo extrativista e de uma crise ambiental profunda? Ou é a Teoria Crítica apenas mais uma disciplina, área e agenda de pesquisa dentre outras nas humanidades atuais com todos os seus problemas e implicações?

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