Enem, país em ruínas e Educação devastada

Em clima de terror, exame tem menor número de inscritos desde 2010. Na última avaliação, 22% dos estudantes não tinham acesso à internet, e quase metade sequer um computador – quesitos básicos ao ensino remoto. Mas MEC resiste ao adiamento

.

Por Edilson Veiga, na DW Brasil

Depois de um ano escolar completamente atrapalhado pela pandemia de covid-19, as provas da edição de 2020 do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) estão marcadas para começar no próximo domingo (17/01), sob a expectativa de revelar discrepâncias ainda maiores do que o usual.

De acordo com os dados da última edição da avaliação, 22,4% dos estudantes não tinham acesso à internet, e 46% não tinham computador em casa. Considerando que a situação sanitária decorrente do novo coronavírus deixou as escolas brasileiras fechadas por praticamente o ano todo, o déficit de aprendizagem deve se refletir na prova.

Originalmente previsto para ocorrer em novembro, o Enem foi adiado para 17 e 24 de janeiro por conta da pandemia. Apesar do aumento no número de casos de covid-19 no Brasil, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia federal responsável pela prova, descartou novo adiamento. Estão inscritos para esta edição 5.783.357 alunos — trata-se do menor número desde 2010.

Especialistas ouvidos pela DW Brasil acreditam que a prova deste ano vai escancarar ainda mais as desigualdades educacionais do Brasil.

“Importante frisar que esta desigualdade não deve ser apenas entre estudantes de escolas públicas e privadas de alto nível [como nas edições anteriores], mas entre os próprios estudantes da escola pública, que formam um grupo bastante heterogêneo”, afirma o ex-secretário de Educação de São Paulo Alexandre Schneider, presidente do Instituto Singularidades e pesquisador da Universidade de Columbia e da Fundação Getúlio Vargas.

“Os estudantes das escolas privadas partirão de uma posição ainda mais vantajosa do que nos anos anteriores e haverá uma maior disputa entre os alunos de escola pública nas vagas reservadas às políticas de cotas, o que prejudicará o acesso dos mais vulneráveis à universidade”, acrescenta.

Aprofundamento de desigualdades

Para a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, o momento é de “um processo amplo de exclusão escolar” e de “aprofundamento das desigualdades educacionais”.

“Esse Enem será reflexo dessa exclusão e marginalização dos grupos em maior situação de vulnerabilidade”, afirma. “O que deveria ser um meio de democratização do acesso ao ensino superior está brutalmente prejudicado por esse cenário.”

“Nesses dez meses sem aulas presenciais, em 2020, as condições e oportunidades que os alunos tiveram de aprendizagens foram muito diferenciadas”, afirma a pedagoga Anna Helena Altenfelder do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Ela ressalta o pouco acesso à internet de parcelas significativas da população, além da falta de acesso a equipamentos ou mesmo de condições de moradia que possibilitem o estudo necessário para sucesso no exame.

“A pandemia revelou também a insuficiência da aprendizagem remota e ampliou a consciência do papel fundamental da interação e das relações interpessoais no processo de aprendizagem”, acrescenta.

Aspectos emocionais

Além da falta de acesso às aulas, o aspecto emocional do ano atípico também joga contra os estudantes. Coordenador do curso de pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o pedagogo Ítalo Curcio atenta para este fator como algo a ser considerado, além da defasagem de conteúdo aprendido, nas discrepâncias que devem ser identificadas na prova deste ano.

“Penso que haverá uma distância muito maior [do que o usual] entre um pequeno grupo de bem preparados, e o grupo dos preparados medianamente e os não preparados”, afirma. Neste quesito, deve pesar a falta das aulas presenciais. “Normalmente, ao longo do ano, cria-se um clima de motivação para a realização do exame. Existem incentivos por parte da escola, por meio dos professores, colegas e amigos”, comenta.

Curcio lembra que muitos colégios realizam simulados e encontros específicos para revisão do conteúdo e “um conjunto de ações especialmente preparadas para mexer com o jovem”. “Isto, neste ano, não ocorreu como o habitual, pelo menos com relação à maioria dos alunos das redes públicas de ensino e mesmo em algumas escolas da rede não pública”, aponta.

Efeitos de longo prazo

De acordo com os pesquisadores esse desnível atípico de aprendizado deve seguir sendo visível nas próximas edições do Enem, demonstrando como o ano de 2020 afetou todas as séries do ensino. Diversos estudos têm evidenciado isso.

Em novembro, a revista científica Educational Researcher publicou uma pesquisa cravando que três meses de fechamento de escolas causam déficit de aprendizagem de 50% a 63% em matemática e 32% a 37% em leitura na educação básica — se não recuperada completamente, é uma lacuna que o estudante vai levar por toda a vida escolar.

“Em uma sociedade desigual, com baixa inclusão digital e em que as experiências de ensino remoto infelizmente não tiveram sucesso, é esperado que esta geração de estudantes precise de um maior apoio das escolas. E por mais de um ano”, diz Schneider.

Pellanda acredita que futuras pesquisas ainda precisarão ser feitas para mapear como a exclusão escolar e as desigualdades foram aprofundadas pela pandemia. Só assim, segundo ela, será possível planejar meios de reduzir os impactos de médio e longo prazos na vida desses estudantes. A perda de um ano de estudos é especialmente grave para aqueles que já enfrentam em suas vidas os desafios socioeconômicos, afirma.

Dupla função

O Enem foi criado em 1998 para servir como avaliação de desempenho dos estudantes brasileiros ao término da educação básica — a partir de 2009, o exame passou também a ser utilizado como instrumento de seleção para o ingresso em instituições de ensino superior. Atualmente, portanto, a prova tem dupla função: diagnóstico do ensino médio e forma de acesso a cursos de graduação.

“[O exame] pode e deve ser usado para correções e ajustes no sistema educacional pós-pandemia”, defende Altenfelder. “O importante é que se tenha como objetivo o enfrentamento das desigualdades educacionais, que já existiam antes da pandemia e que foram acirradas neste ano com a diferença de acesso e oportunidades de aprendizagem dos alunos.”

Leia Também: