Dossiê: o terror incendiário contra os povos do campo

Investigação mostra a devastação na Amazônia e Cerrado para além das imagens de satélite. Quem são os ruralistas “piromaníacos”. Quais os diferentes usos do fogo como arma na disputa por terras. Como deter essas redes criminosas

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Por Gustavo Serafim, no Agro é Fogo

Desde o dia 19 de agosto de 2019, o uso do fogo como arma vem à tona nos conflitos no campo no Brasil. Na ocasião, fazendeiros conspiraram para incendiar e atacar comunidades inteiras no sudoeste do Pará e suas áreas de floresta, no que ficou conhecido como “Dia do Fogo”. O caso do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, na mesma região, evidencia que essa prática é sistemática. Esta ofensiva do capital se destaca e se repete: após um ano, em 2020, o fogo que assolou o Pantanal também teve início de forma combinada em fazendas de gado; três anos depois, em agosto de 2022, foram descobertos os preparativos para um novo do Dia Fogo no Mato Grosso.

Para dar conta dessa realidade que já existia antes, mas que volta a se repetir e se intensifica com o governo Bolsonaro, as reflexões da Articulação Agro É Fogo provocaram o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno da Comissão Pastoral da Terra (CEDOC/CPT), que a partir do ano de 2021 passa a registrar os incêndios como mais uma das 18 violências contra a ocupação e a posse. Esses dados diferem de outros tipos de dados sobre incêndios, como os do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que utilizam imagens aéreas para contabilizar a quantidade de focos de calor. Aqui, entende-se por incêndios as ocorrências de conflitos no campo envolvendo o uso do fogo pelos capitalistas e seus aliados contra as comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, camponesas (es) e trabalhadoras (es) do campo como um todo. São formas distintas de analisar a mesma destruição: os incêndios criminosos.

Um único foco de calor pode representar coisas muito diversas que a vista de cima, de uma imagem de satélite, não é capaz de identificar. Aquele foco é um manejo tradicional de fogo usado pelas comunidades? Ou foi um grileiro quem incendiou uma parte da comunidade? No chão dos territórios, um único foco de calor pode vir a ser tão grave quanto uma quantidade enorme de focos de calor, porque representam coisas diferentes: esse único foco de calor pode ser resultado de uma casa incendiada por um garimpeiro em uma ação de pistolagem em que tentaram matar uma trabalhadora; da mesma forma, uma queima controlada ou um manejo tradicional do fogo pode significar uma enorme quantidade de focos de calor.

A resposta para essa dificuldade está em escutar e registrar o relato diretamente dos povos e comunidades, isto é, das fontes primárias. Sem o relato dos próprios sujeitos envolvidos sobre o que aconteceu, não somos capazes de atestar as violências.

Os conflitos envolvendo o fogo são mapeados junto ao conjunto de outros conflitos que são lançados e analisados anualmente no Caderno de Conflitos no Campo – Brasil, pela Comissão Pastoral da Terra. Esse levantamento é feito tanto por meio de uma clippagem regular – em redes sociais e sites de notícias e de movimentos sociais -, quanto por meio do relato primário dos agentes de base da CPT. O centro dessa abordagem são as vozes das comunidades, cujos testemunhos nos permitem entender o contexto da ocorrência, quem são os causadores do conflito da mesma época, quando o incêndio começou, o que ele destruiu, quais cicatrizes ele deixou. A frieza do satélite dificilmente capta tais nuances.

Os focos de incêndio podem diminuir, mas a quantidade de conflitos envolvendo o fogo pode crescer e até ser a mais elevada no mesmo período. Como veremos, essa foi a situação do Mato Grosso no ano de 2021, quando a quantidade de focos estava se reduzindo, a despeito de ser o segundo estado com a maior quantidade de conflitos desse tipo.

Neste, texto buscamos apresentar uma síntese do mapeamento dessa violência, indicando quem são os principais causadores desse tipo de conflito, diferentes tipos de uso do fogo como arma contra as comunidades, os principais sujeitos que foram alvos e como tudo isso varia regionalmente, em especial na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal.

Para além dos satélites, o que os dados apontaram em 2021

Em 2021, ocorreram 142 conflitos envolvendo fogo no Brasil em 132 comunidades, atingindo 37.596 famílias. Algumas comunidades foram atacadas mais de uma vez, explicitando a ação sistemática de terror tendo o fogo como arma.

Sazonalidade dos conflitos com fogo

Em 2021, os conflitos com fogo se concentraram na estação seca na Amazônia e no Cerrado, quando o fogo criminoso se alastra com mais facilidade, provocando incêndios florestais. Isso indica que o período de estiagem segue sendo utilizado como um álibi para acobertar as ações criminosas contra os povos do campo.

72% dos 142 conflitos com fogo em 2021 se concentraram em 4 meses, entre julho e outubro, a maioria dos quais por meio do alastramento de incêndios florestais.

Conflitos com fogo por unidade da federação

Os estados de Mato Grosso do Sul (26 ocorrências), Mato Grosso (22), Bahia (14) e Rondônia (10) somaram 50,7% de todos os conflitos com fogo ocorridos em 2021.

No Mato Grosso do Sul, além dos incêndios que se espalharam e impactaram 13 comunidades no Pantanal entre agosto e setembro, diversos foram os registros de incêndios contra o povo Guarani e Kaiowá. Na zona de transição Cerrado-Mata Atlântica, no município de Dourados, as retomadas Tekoha Avae’te e Aratikuty foram vítimas, em menos de dez dias, entre o final do mês de agosto e o início de setembro de 2021, de quatro ocorrências, nas quais famílias foram ameaçadas com tiros e tiveram três casas incendiadas. Os ataques fazem parte da estratégia dos fazendeiros da região para expulsar os indígenas da terra, fazendo uso de segurança privada armada, de tratores como o “caveirão” e de incêndios.

Ainda contra os Guarani e Kaiowá, os incêndios criminosos têm sido usados no complexo contexto de conflitos e arrendamentos de territórios, com a entrada das igrejas neopentecostais, tendo as casas de reza, espaços comunitários e sagrados como alvo de ataques. Houve até mesmo agressões direcionadas às rezadeiras mulheres acusadas de bruxaria por igrejas neopentecostais. Na Terra Indígena (TI) Rancho Jacaré, no município de Laguna Carapã, a cerca de 58 km de Dourados, foram registradas três ocorrências envolvendo a queima de três casas de reza em 18 de agosto, 19 de outubro e 21 de novembro. As retomadas Avae’te e Takuapiry, em Dourados, e a aldeia Amambaí e a retomada Guapo’y, no município de Amambai, também foram vítimas desse contexto, e juntas tiveram quatro casas incendiadas em setembro e outubro de 2021.

Só o povo Guarani e Kaiowá sofreu dez ocorrências envolvendo o fogo ao longo do ano de 2021. Além das já mencionadas, a retomada Ita’y Ka’aguyrusu/Ita’y Kagurusu, em Douradina, e a TI Pirakuá, entre Bela Vista e Ponta Porã, também foram vítimas do uso do fogo como arma direta.

Distribuição geográfica dos conflitos envolvendo fogo e causadores

Os conflitos envolvendo fogo se dão em todos os biomas conforme designação do IBGE. Se agregarmos os conflitos no Cerrado contínuo e em suas zonas de transição, aconteceram aí 54% de todos os conflitos com fogo no Brasil no ano de 2021. No Cerrado se concentra uma importante frente de expansão da fronteira agropecuária, conhecida por Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), onde a implantação de lavouras e pastagens avança sobre territórios camponeses.

De todos os conflitos ocorridos na Amazônia, Caatinga, Mata Atlântica e Pantanal, 19% ocorreram apenas nas áreas de transição com o Cerrado, expandindo o potencial conflitivo que se alastra dele para as regiões ecológicas contíguas.

Em algum grau, isso se assemelha com os dados gerais de conflitos no campo: projetos de desenvolvimento, como a Amacro e o Matopiba, concentraram, juntos, 19% dos conflitos em 2020 e 25% dos conflitos em 2021. A Amacro (ou Zona de Desenvolvimento Sustentável Abuanã-Madeira) corresponde a uma parcela dos estados de Amazonas, Acre e Rondônia e situa-se em zonas de transição entre Cerrado e Amazônia. Amacro e Matopiba somam, juntos, 36% das ocorrências de conflitos envolvendo o fogo em 2021. Ou seja, os incêndios são ainda mais concentrados nessas áreas do que no conjunto dos conflitos no Brasil, indicando que, como o desmatamento ilegal, os incêndios são violências com uma participação significativa na expansão da fronteira agrícola.

Olhando para os causadores dos conflitos envolvendo fogo, enquanto 57% das ocorrências provocadas por fazendeiros ocorreram no Cerrado e suas zonas de transição, 82% dos conflitos causados por madeireiros ocorreram na Amazônia. Já os conflitos causados por empresários concentraram-se na Mata Atlântica, com 50% das ocorrências.

Há diversas ocorrências cujos causadores são desconhecidos, porque é muito difícil identificar quem iniciou o incêndio e há ausência de investigação a respeito. Apesar disso, fazendeiros, grileiros e grandes arrendatários somados são aqueles que mais causam os conflitos com fogo, totalizando 28% deles. Nas atividades extrativas do campo, madeireiros, garimpeiros e mineradoras somam 10% do total de conflitos. A categoria “empresários”, que abrange grandes empresas do agronegócio, grandes empresas do campo e especulação imobiliária, concentra 9% dos conflitos. Como veremos adiante, os incêndios estão atrelados aos contextos mais amplo de invasões, desmatamento ilegal e grilagem, ou seja, atividades ligadas à expansão do agronegócio.

Quem sofre a violência com o uso do fogo

Os povos indígenas aparecem com maior número de ocorrências de ataques com fogo nos conflitos no campo (39%), seguidos pelas comunidades quilombolas e tradicionais (21%), o que demonstra a cobiça sobre as terras tradicionalmente ocupadas. Assentados da reforma agrária (14%), posseiros (11%) e trabalhadores rurais sem terra (9%) aparecem na sequência.

Dentre as comunidades tradicionais documentadas, estão comunidades geraizeiras, seringueiras, ribeirinhas, pescadoras, de fundo e fecho de pasto e extrativistas.

Chama atenção o fato de as comunidades de fundo e fecho de pasto, apesar de se encontrarem somente no estado da Bahia, terem sofrido 5% de todos os conflitos com fogo em 2021. Dentre elas, estão o Fecho de Pasto Vereda da Felicidade e as comunidades Cacimba Velha, Cacimbinha, Lagoa do Virgulino, Comandante e Baixão do Jacu, Caboclo dos Mangueiras e Baixão do Egídio, atingidas sobretudo no mês de agosto. No contexto, o Fórum de Entidades Populares de Campo Alegre de Lourdes suspeitava da ação de mineradoras para expulsar os camponeses de seu território.

Tipos de uso do fogo nos conflitos: duas armas capitalistas

O fogo pode ser usado de duas maneiras contra os povos do campo. A primeira delas – e que ganha mais destaque na mídia – são os incêndios florestais, que resultam do uso do fogo como arma para consolidar a invasão de terras. Geralmente, são causados por invasores de forma mais distante e mais anônima, motivo pelo qual há tanta dificuldade de identificar de onde partiram as ações: 64% dos causadores dos incêndios aparecem no banco de dados da CPT como indeterminados. Isso também se deve à morosidade para investigar os casos.

Por não ser fogo controlado, se alastra especialmente na estação seca atingindo, intencionalmente ou não, as áreas das comunidades rurais. Seu impacto não é menos grave, porque pode destruir 60% ou mais do território de uma comunidade e ainda causar secas que perduram até mesmo no ano seguinte.

O nível de violência e brutalidade é ainda maior na segunda forma de violência, quando há o uso do fogo como arma de forma direta e explícita: sem receio de se esconder, os jagunços mandados invadem o território e queimam casas, casas de reza, roçados e pertences como forma de impor medo e, assim, expulsar, conter ou silenciar os povos do campo. Neste caso, apenas 10% dos casos são de causadores indeterminados, em que a ausência de investigação e a impunidade também está presente.

Tanto os incêndios florestais como a queima de elementos comunitários constituem armas na disputa pelo controle territorial na esteira da expansão do agronegócio, mas são modalidades distintas para chegar a esse fim. Um destrói as condições de existência do modo de vida das comunidades, o outro as ataca diretamente e impõe o medo.

Apesar de distintas, a associação de ambas com o contexto de violência no campo é gritante. Quando olhamos para as 132 comunidades nas quais houve conflitos envolvendo o fogo em 2021, 27% delas sofreram com destruição de casas, 27% com destruição de pertences e 24% sofreram com invasões. A participação dos incêndios criminosos no ciclo de grilagem também é escandaloso, visto que 26% dessas comunidades sofreram com desmatamento ilegal e 11% delas sofreram com grilagem. Isso se acentua ainda mais quando observamos as áreas da Amazônia Legal, em que 44% das comunidades que sofreram com incêndios também sofreram com desmatamento ilegal e 18% delas sofreram com grilagem.

Para fins comparativos, dos 102 conflitos com fogo tipo incêndio florestal no Brasil, apenas 41% estão associados a outras violências. Das 40 ocorrências de uso mais direto do fogo como arma, 95% estão associadas a pelo menos uma outra forma de violência.

Se o maior número de ocorrências de incêndios florestais se dá contra indígenas, o uso direto do fogo como arma afeta mais aqueles povos e comunidades que lutam pela ampliação e conquista de seus territórios (indígenas em áreas de retomada, trabalhadores rurais sem-terra acampados e posseiros sem titulação da terra). Foi o que aconteceu no Acampamento São Vinicius, no Pará, no Acampamento Olhos D’Água, em Minas Gerais, no Acampamento Maria Bonita, no Tocantins, e com as retomadas Guarani e Kaiowá, que sofreram ataques diretos com fogo.

Para se contrapor à absoluta inação do Governo Federal face aos incêndios criminosos, após o “Dia do Fogo” e os incêndios no Pantanal, diversos governos estaduais começaram a adotar programas de contratação temporária massiva de brigadistas, com a montagem de infraestrutura de monitoramento e combate do fogo, como foi o caso do estado do Mato Grosso. Até algumas brigadas privadas do agronegócio foram criadas.

A mídia hegemônica já tem sugerido como solução mágica tornar o agro e seus incêndios criminosos algo “sustentável”. Isso faz parte da tentativa de construir uma ideia de que é preciso um esforço policlassista de combate ao fogo, como se os incêndios criminosos ocorressem por um descuido comum de latifundiários e grandes empreendimentos, de um lado, e de comunidades tradicionais, indígenas e trabalhadores e trabalhadoras do campo, de outro. No entanto, as classes distintas não são igualmente impactadas pelo fogo e se distinguem enquanto vítimas e causadoras.

É necessário ir além. Conforme demonstrado pelos dados, os conflitos envolvendo o fogo estão atrelados ao contexto mais amplo de grilagem e desmatamento ilegal, sendo que alguns deles envolveram a invasão direta dos territórios e destruição de pertences, roçados, casas e casas de reza. Esta é uma estratégia de apropriação dos territórios por fazendeiros, grileiros, madeireiros e grandes empreendimentos, que utilizam o fogo como uma arma. Todas essas são informações que o mero dado de satélite não dá conta. Assim sendo: enquanto houver agronegócio, haverá incêndios criminosos!

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