Da Lei da Vadiagem à Lei Anti-Oruam

Projeto de lei em SP busca proibir shows e festas populares, a pretexto de evitar “apologia ao crime”. Como tática, extrema direita fustiga o artista carioca que viralizou, e mobiliza estigma e medo para perseguir a cultura periférica

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Joselicio Junior, especial para a Ponte

A nova polêmica protagonizada pelo Movimento Brasil Livre (MBL) entorno da chamada Lei Anti Oruam, que ganhou bastante repercussão nas redes e nas mídias, traz reflexões importantes para pensarmos os desafios para a batalha das ideias contra a extrema-direita e a necessidade de a esquerda também se conectar com as culturas urbanas extremamente populares em nosso país. O nosso ponto de partida para essa análise é buscar compreender o método de ação desse grupo.

O início da polêmica se deu com a apresentação de um Projeto de Lei pela vereadora Amanda Vettorazzo (União Brasil/MBL), recém eleita para a Câmara Municipal de São Paulo, que propõe a proibição da contratação de shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil que envolvam, no decorrer da apresentação, expressão de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas. Para  fugir de armadilhas jurídicas a redação da proposta de lei não cita nenhum gênero musical, porém, é no discurso nas redes sociais que a vereadora define um alvo para polarizar e gerar engajamento. 

A escolha do alvo segue uma lógica, primeiro, porque para gerar polêmica é necessário ter um inimigo, preferencialmente maior do que você, pois se ele entrar no conflito a briga ganha uma proporção muito rápida. E segundo, a narrativa contra o inimigo, mesmo que distorcida, precisa ter um lastro na realidade com elementos verdadeiros, de fácil assimilação e que gere uma certa comoção. 

Neste sentido, o MC Oruam é a tempestade perfeita, pois é um artista de grande repercussão com números enormes de seguidores nas redes sociais, grandes números de visualizações e reproduções nas plataformas digitais de música, além disso é filho de um famoso traficante do Rio de Janeiro e em suas músicas, assim como outros artistas do seu estilo, trazem relatos do cotidiano das comunidades, favelas, onde o crime organizado tem um papel relevante. 

Só repressão aos pancadões

No caso de São Paulo, onde foi proposto originalmente o projeto de lei, há um outro elemento que gera comoção que são os Pancadões, que são festas realizadas nas ruas das periferias e que reúnem muitos jovens com um som muito alto, onde a trilha sonora é o Funk/Trap, sem limites de horário, gerando um incômodo no restante da comunidade e uma ausência de mediação do Estado – que reage apenas com violência e repressão, sem oferecer nenhum alternativa. 

Portanto, a narrativa da Amanda/MBL tem lastro na realidade e um certo apelo que permite um diálogo e uma disputa ideológica com setores sociais e aponta para uma perspectiva conservadora. Em seu vídeo, onde anuncia o projeto de lei, a vereadora é categórica em dizer que sua prioridade é combater o crime e afirma “afinal tornar São Paulo uma cidade segura, é tornar São Paulo uma cidade melhor, o combate ao crime não é só na bala é também na nossa cultura e no nosso imaginário”.

A estratégia desse setor da extrema direita está muito nítida, utilizar da criminalização do funk, pautada na cultura do medo, do combate a violência para organizar e ampliar o seu campo de influência na sociedade e a sua base social. A utilização da lei para criminalizar manifestações culturais e formas de organização da população negra não é uma novidade no Brasil. A vadiagem foi um crime previsto no Código Criminal de 1830, o único do Império, e no Código Penal de 1890, o primeiro da República, incluindo a prática da capoeira como crime em seu artigo 402 e desde 1941 foi incluída na Lei de Contravenções Penais. 

O uso do crime de vadiagem tinha endereço certo: controlar e disciplinar corpos negro libertos, criminalizando a capoeira, as religiões de matriz africana, mais a frente o samba e outras expressões culturais negras e populares. Ou seja, tudo aquilo que pudesse ameaçar aquela estrutura social altamente excludente.  Essa dinâmica de criminalização e repressão vai se renovando e se reelaborando de tempos em tempos. 

Nos anos 90 tivemos uma forte repressão ao Hip Hop, que através da música rap expressou o grito de uma juventude negra e periférica sufocada por uma sociedade excludente  e violenta. O funk desde sua origem sempre foi criminalizado, seja pelo erotismo das músicas, pelas letras que relatam a vida do crime e das facções, seja pelos bailes que atravessam madrugadas etc, criando um estereótipo de música proibida, música de bandido, de vagabundo. 

Uma nova indústria cultural

Se de um lado não é novidade o processo de criminalização das culturas negras, também é necessário ressaltar que com o avanço e desenvolvimento das comunicações e da indústria cultural no Brasil, somado a um projeto de setores da elite de construção de uma identidade nacional, se buscou ao longo do tempo assimilar, cooptar e até mesmo domesticar  essas expressões culturais. Não conseguiremos  aprofundar essa discussão, pois daria um novo texto, mas vale o registro para ajudar a entender a complexidade do cenário. 

Essa própria indústria cultural vem se transformando bastante nos últimos anos. Os avanços tecnológicos ampliaram as possibilidades de produção e gravação musical, diminuíram a dependência das grandes gravadoras e tivemos a migração dos discos físicos para as plataformas digitais de música. As redes sociais, cada vez mais acessíveis, possibilita o surgimento de novos artistas, celebridades e influenciadores, sem depender da TV aberta, por exemplo. 

Dentro dessa nova configuração quem mais conseguiu avançar e se adaptar foi a chamada cultura urbana, encabeçada pelo Funk e o Trap, formando de alguma maneira uma indústria paralela de produtoras com grande repercussão nas redes sociais, que fomenta carreiras artísticas com bastante sucesso e a cada dia  mais integrada às estruturas tradicionais da indústria cultural. Uma expressão disso é a participação cada vez mais frequente desses artistas em grandes festivais como Rock In Rio, Lollapalooza, AfroPunk, entre outros. O próprio Mc Oruam esteve em fevereiro de 2025 participando do Festival Mainstreet  em Portugal e foi ovacionado pelo público. 

Hoje o Funk/Trap só perde para a música sertaneja em reprodução nas plataformas digitais de música. No geral, além de trazer nas letras o erotismo, a vida do crime, problemas sociais, dilemas dos relacionamentos, muitas músicas também trazem uma perspectiva de superação da condição de pobreza, onde os MC’s fazem questão de ostentar uma vida extravagante  com carros de luxo, cordões e aneis de ouro. Ou seja, a música e o estilo proposto dialogam diretamente com a ideia da busca pela superação, pela prosperidade, por uma mudança da realidade. 

Em meio a toda essa polêmica, Oruam lançou um álbum novo chamado “Liberdade”. Valeria uma análise do disco como um todo, desde a capa com a família vestindo camisetas pedindo a liberdade do Marcinho VP, até uma análise de todas as letras das 15 faixas do disco – mas, neste momento, quero destacar alguns trechos da faixa “Lei Anti O.R.U.A.M”.

Já no começo da letra Oruam diz “O tráfico tá virando esporte / Formou foi mó complexão/ Mas o que falta é educação/ Um dia que o fuzil e a pistola/ Valer mais que um livro/ Aí tem algo errado” e na sequência ele afirma “Eles dão arma pra nóis, depois pergunta por que somo bandido/(Trem do ódio, porra, vai tomar só na cara)/ Terror do Estado”. 

Na estrofe seguinte o mc traz o seu trauma de infância e a ausência do pai “Tudo na vida são fases/ Por isso, ódio nas frases/ Explica pra uma criança por que seu herói vive dentro das grades”. Na passagem seguinte traz uma reflexão sobre dinheiro e poder “Julga, mas não vê o mundo que eu vejo/ Hoje ninguém me coloca medo/ Aprendi o segredo da vida, o dinheiro e o poder que impõe o respeito”, ou seja, o sucesso de uma alguma maneira é a busca pela superação da sua condição social. 

O pouco diálogo da esquerda

Diante de todo esse cenário vale destacar algumas reflexões. A primeira delas é que o funk é um gênero musical e uma cultura extremamente difundida entre a juventude e de alguma maneira expressa as subjetividades de milhares de jovens, sobretudo oriundos das periferias dos grandes centros urbanos, com seus dilemas, desejos e contradições inseridas na realidade concreta contemporânea, de uma vida cada vez mais corrida, fragmentada, individualizada, pressionada por resultados,  onde o baile é um dos poucos espaço de sociabilidade. 

A segunda reflexão é que além da indústria que tratamos um pouco aqui, a chamada cultura urbana se materializa principalmente em uma ocupação cotidiana das ruas e praças. Além dos pancadões, que já citamos, tem as rodas de passinho, as batalhas de rima, as batalhas de poesia (slam), os saraus, entre outras expressões, que ajudam a solidificar uma cultura popular. Agora, o que chama muito a atenção é a baixíssima presença de setores organizados da esquerda dialogando com essas expressões.

Enquanto a extrema-direita constrói estratégias para fomentar o campo conservador e a lei Anti Oruam é uma expressão disso, outros setores da burguesia buscam através da assimilação disputar uma parcela dessa cultura popular. Na esquerda tem setores no alto da sua arrogância e elitismo que simplesmente desconsideram essas manifestações como cultura, quase fazendo coro com a extrema direita. Os setores mais populares da esquerda tiveram dificuldade de renovar suas lideranças nas últimas décadas, tornando distante o diálogo com os mais jovens.

Esse quadro traz enormes desafios para a esquerda, pois a disputa do cotidiano é um elemento central para o acúmulo de força e disputa de projeto na sociedade. As culturas urbanas são expressões atualizadas das culturas de resistência organizadas pela classe trabalhadora negra que forjou esse país, portanto devem ser encaradas também como a nossa cultura, com suas contradições, dilemas e desafios. O distanciamento facilita o trabalho da extrema direita e torna o da esquerda ainda mais difícil. 

Joselicio Junior, jornalista, doutorando em Mudança Social e Participação Política EACH- USP, é diretor editorial da Dandara EditoraEste artigo foi publicado originalmente no site da editora.

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