Bruno Latour, rebelde transfronteiriço

Neste domingo, morreu o provocador antropólogo francês, que debruçou-se nas novas “tribos da modernidade”: cientistas e burocratas. Entre o rigor e a fantasia, a física e a ecologia, ele propôs olhar o planeta além das amarras antropocêntricas

Imagem: Joel Saget/AFP
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Por Marino Niola, em La Repubblica, traduzido por Luisa Rabolini no IHU

Foi embora o antropólogo que estudou a tribo dos cientistas. Bruno Latour, um dos pensadores mais famosos e controversos do nosso tempo, faleceu em Paris aos 75 anos. Ele nasceu em 2 de junho de 1947 na Borgonha, em Beaune, capital mundial do vinho, de uma famosa família de viticultores, a Maison Louis Latour. Sonhador demais para ter sucesso na especulação econômica, Latour muito cedo escolheu o caminho da especulação filosófica. E, deixando a razão prática nas mãos de seu irmão mais novo, começou a escalar os despenhadeiros mais acidentados da razão pura. Graduou-se em teologia com uma tese sobre exegese e ontologia. Um tópico que causa suor frio.

Mas Bruno fez estourar como uma tampa de garrafa tanto a exegese quanto a ontologia, graças a um talento heterodoxo e indisciplinado. Uma espécie de fermentação natural do pensamento, destinada a desestabilizar as fronteiras dos saberes. Misturando, e às vezes confundindo, rigor e fantasia, sociologia e antropologia, física e ecologia, política e teatro.

Uma fusão cultural e contracultural, que está na origem de sua popularidade. Em janeiro de 2020, o Magazine Littéraire o incluiu na lista dos dez pensadores mais influentes do mundo, na companhia de nomes do calibre de Marta Nussbaum, John Searle, Jürgen Habermas, Judith Butler, Slavoj Žižek. Na origem desta influência global está também uma produção eclética e fluvial, culta e popular. O que, traduzido em números, perfaz pelo menos trinta livros, muitos dos quais também publicados em italiano. O mais recente pela Einaudi, que este ano publicou Dove sono? Lezioni di filosofia per un pianeta che cambia. Enquanto a editora Meltemi acaba de enviar às livrarias La sfida di Gaia e Riassemblare il sociale.

Anos atrás ele causou muita discussão com seu Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas, no Brasil publicado pela Editora 34. E precisamente em um oximoro como “humanidades científicas” está o cerne da obra de Latour. Que considera a oposição entre humanismo e ciência um fruto já desgastado da modernidade. Que realizou uma separação artificial. De um lado, as ciências naturais, como a química, a física, a biologia, a genética, que falam a linguagem exata dos números e aquela concreta do experimento. Do outro, aquelas culturais, as humanidades, que por sua vez voam nas asas da fantasia, da intuição, da imaginação. Nisso, o pensamento do nosso transfronteiriço saber aproxima-se singularmente ao de autores como Philippe Descola, sucessor de Claude Lévi-Strauss no Collège de France que, em sintonia com uma sensibilidade cada vez mais mainstream, defende a necessidade de sair de dicotomias obsoletas como aquela entre natureza e cultura.

O caráter inovador da prática científica latouriana fez dele um autor de culto, sobretudo entre as tribos ecológicas, antiespecistas, animalistas, antiocidentalistas, não binárias, às vezes confusas, todas fortemente antagônicas de uma modernidade que aos seus olhos produziu seu tempo e seus danos. E se o moderno no pensamento de Latour está em má condições, o pós-moderno está ainda pior. Porque, disse ele em 1991 em Nous n’avons jamais été modernes (jamais fomos modernos), já que a modernidade não passa de uma ilusão, a pós-modernidade é uma ilusão ao quadrado. Na realidade, não faz sentido distinguir ciências naturais de ciências sociais porque não faz sentido distinguir o mundo social daquele natural.

Latour argumenta que cada realidade é um híbrido entre esses reinos, cuja separação é fruto de um saber subserviente aos interesses de uma política de dominação. Que está na origem do atual desastre ecológico. Para consertar o rasgo entre nossa espécie e o ecossistema, Latour imagina um “parlamento das coisas”. Uma reconversão das funções políticas tradicionais que transforme os especialistas em representantes de coisas, objetos, animais, plantas, ambientes. O efeito seria o de limpar a ideia de representação de qualquer resíduo antropocêntrico. Porque os deputados desses estados gerais da Terra se tornariam portadores e garantidores do interesse de seus representantes.

E, para implementar esse programa de reeducação, os interesses subjacentes a cada descoberta científica devem ser trazidos à tona. Para isso, Latour tornou-se um antropólogo dos cientistas, mas também dos burocratas. E em vez de fazer trabalho de campo em mundos exóticos, ele o fez nos laboratórios de neuroendocrinologia do Salk Institute em San Diego. Ou nas salas secretas do Tribunal de Contas francês. Para revelar os pressupostos sociais e econômicos de uma ciência que nunca foi tão neutra quanto gosta de se representar. E de um direito igualmente tendencioso. Um objetivo visionário e ambicioso para aquele que foi definido como o mais famoso e o mais incompreendido pensador da França.

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