Bolívia: as possíveis digitais brasileiras no golpe

Munições argentinas enviadas por Mauricio Macri alimentaram as repressões para a derrubada de Evo. Agora, investigações apontam conexões suspeitas entre o clã Bolsonaro e empresário boliviano, que se tornaria ministro do governo golpista

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Por Nathália Urban, na Jacobin Brasil

Segundo o porta-voz do governo boliviano, Jorge Richter, os governos do Brasil e Chile podem ter se envolvido nos confrontos entre os manifestantes e as forças de segurança ocorridos no país após a renúncia de Evo Morales em 2019. Richter,  sem dar mais detalhes, disse que agora será investigada uma possível colaboração internacional. 

O anúncio de Richter veio depois que o governo boliviano denunciou a participação do ex-presidente da Argentina, Mauricio Macri, no golpe de Estado de 2019 contra o então presidente reeleito da Bolívia, Evo Morales. O chanceler boliviano Rogelio Mayta revelou documentos que comprovam o carregamento de munições argentinas, bem como de seu homólogo equatoriano Lenín Moreno, que foram utilizadas pelas forças policiais da Bolívia para reprimir protestos populares contra o governo golpista de Jeanine Áñez.

O presidente da Câmara dos Deputados da Bolívia, Freddy Mamani, anunciou a proposta de criação de uma comissão de inquérito para investigar não só as denúncias contra Macri, mas também a possibilidade de que outros governos tenham colaborado com os golpistas.

Mamani não escondeu quais governos serão investigados: Jair Bolsonaro do Brasil e Sebastián Piñera no Chile. Abertamente hostis a Evo Morales e seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS), os dois países mantiveram uma animosidade em relação ao novo governo progressista de Luis Arce que ganhou as últimas eleições. Em contraste, ambos apoiaram o governo de Jeanine Áñez, a presidente “interina” que foi instalada pelas Forças Armadas após o golpe de 2019.

O vice-ministro do Interior da Bolívia, Nelson Cox, alegou que o Executivo estuda a possibilidade de instaurar processos penais no exterior contra “altas autoridades” de outros países e organizações internacionais por suposta participação no golpe de 2019.

Bolsonaro e a direita ruralista na Bolívia 

A relação entre Bolsonaro e a extrema direita boliviana é bem extensa e as ligações entre fascistas brasileiros e seus homólogos bolivianos são muito claras. O Brasil foi um dos primeiros países do mundo a reconhecer Jeanine Áñez como presidente.

Outro fator chave é que um dos principais oponentes de Evo Morales, Branko Marinković, viveu no Brasil por aproximadamente 10 anos para não responder acusações de terrorismo que pesavam sobre ele na Bolívia, e nessa época fez “amizades poderosas” incluindo o filho de Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro.

O agroempresário croata-boliviano tem uma interessante história de vida. A família Marinković, originária da ilha de Brač, emigrou para a província boliviana de Santa Cruz em meados da década de 1950. Graças a um negócio agrícola de sucesso, entre outras coisas, a família se tornou uma das mais ricas e influentes da Bolívia.

A família Marinković possui quase 40 milhões de acres de terra e tem participação em um banco local extremamente significativo, o Banco Econômico. Branko é conhecido como o rei da soja e, ao longo dos anos, tem sido um adversário ferrenho das políticas de nacionalização e da postura política do governo Morales em relação à distribuição de terras. “A reforma agrária pode levar à guerra civil”, advertiu Marinković.

Em agosto de 2020, Jeanine Áñez nomeou Branko Marinković como Ministro do Planejamento. No entanto, em 28 de setembro, os ministros da Economia, Trabalho e Desenvolvimento Produtivo da Bolívia deixaram seus cargos após desentendimentos entre o ministro da Economia e o governo. No mesmo dia, Áñez nomeou rapidamente substitutos e Branko Marinkovic foi escolhido para assumir o ministério da Economia. Seu antecessor, Óscar Ortiz, saiu reclamando que não havia renunciado.

Apenas nove dias antes do pleito eleitoral onde seu governo tinha pouca ou nenhuma chance de ganhar legitimamente, Marinković foi ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para pegar um empréstimo de US$ 330 milhões.

Apoio diplomático

Outro grande amigo da família Bolsonaro é Luís Fernando Camacho, líder político de Santa Cruz de la Sierra, que também expressou profunda admiração pelo governo brasileiro. Em maio de 2019, Camacho divulgou um vídeo nas redes sociais em que afirmava ter pedido ao ex-chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, ajuda para consultar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre a possibilidade de impedir a tentativa de Morales de ganhar um quarto mandato. Camacho também disse que havia se reunido com Araújo pedindo que o governo brasileiro realizasse uma consulta à CIDH da Organização dos Estados Americanos (OEA) contrária à Morales.

O Itamaraty informou que a audiência, ocorrida no dia 2 de maio, era, na verdade, com a deputada Carla Zambelli, e que ela estava acompanhada de Camacho e um grupo de parlamentares que estiveram com o chanceler para “tratar de temas de interesse para as relações bilaterais”. De acordo com o Itamaraty, Camacho não manteve nenhuma reunião ou conversa específica com o ministro.

O contato entre os aliados de Camacho e Bolsonaro começou muito antes. No final de 2018, muitos líderes e empresários latino-americanos viajaram para a cidade brasileira de Foz do Iguaçu para participar de uma cúpula conservadora organizada pelo deputado Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara. Nessa mesma cúpula, Marinkovic fez uma fala onde foi chamado por Eduardo Bolsonaro de o “pior inimigo de Evo Morales”.

Não podemos esquecer o caso dos suspeitos e repetidos voos do avião presidencial boliviano para o Brasil que, a princípio, o governo inconstitucional procurou negar. No entanto, dados da empresa estadunidense de rastreamento de voo FlightAware, acessados pelo jornal argentino Página/12, mostram que a aeronave estava em Brasília nas primeiras horas do primeiro dia do golpe, em 11 de novembro de 2019.

Conspiração regional

O atual presidente argentino, Alberto Fernandez, pediu desculpas ao povo boliviano em nome de seu antecessor pelo envio das armas. As investigações argentinas mostram indícios de que o ex-presidente Mauricio Macri enviou armas e munições para reprimir os partidários de Evo Morales. O Ministério Público da Argentina abriu uma investigação formal para apurar a extensão dos crimes cometidos pelo ex-presidente. Entre as autoridades a serem investigadas pela acusação de interferência internacional e embarques de armas, além do próprio Macri e de dois ex-ministros: Patricia Bullrich, da Segurança, e Oscar Aguad, da Defesa.

Segundo o jornal argentino El Orsai, a estação da CIA em La Paz encarregou o chefe da Agência Argentina de Inteligência (AFI, sigla em espanhol) da Bolívia, José Sanchez, de apoiar a coleta de informações sobre Evo Morales, seu governo e aliados – todos os funcionários cubanos, venezuelanos e nicaraguenses residentes na Bolívia, incluindo diplomatas. Para o cumprir essa ordem, José Sánchez não só utilizou seus representantes no país, como também solicitou o apoio de representantes no Brasil, Colômbia e Peru.

Documentos da embaixada argentina em La Paz mostram detalhes de uma reunião em julho de 2019, onde o secretário de Estado adjunto para o Hemisfério Ocidental dos Estados Unidos, Kevin Michael O’Reilly, alertou que Evo provavelmente venceria as eleições presidenciais e pediu para a Organização dos Estados Americanos (OEA), a União Europeia (UE), o Brasil, a Argentina e o Peru para questionarem a transparência e legitimidade das eleições. Uma das passagens mais interessantes do documento diz que o cenário político boliviano é dependente do que acontece na Venezuela, o que aumenta a evidência de um plano mais amplo de desestabilização da esquerda regional. As viagens de Evo Morales ao exterior também foram analisadas e O’Reilly destacou que havia preocupação com a crescente aproximação entre Morales e o governo russo.

Recentemente, Morales alertou sobre a implantação da nova Operação Condor na América Latina. Levantando movimentos sociais para lutar pela paz em defesa da democracia e da soberania, Morales rejeitou os golpes apoiados pelos EUA que “causam dor aos povos latino-americanos”.

Os temores de Morales se solidificaram ainda mais depois que o diretor da CIA, William J. Burns, visitou o Brasil e a Colômbia.

Questionado sobre a visita, Bolsonaro disse: “Não vou dizer que isso foi tratado com ele [Burns]”, e em seguida Bolsonaro passou a falar do cenário político da América do Sul. “A gente analisa como estão as coisas. Na Venezuela o pessoal não aguenta mais falar, mas olha a Argentina. Para onde está indo o Chile. O que aconteceu na Bolívia? Voltou a turma do Evo Morales e mais ainda: a presidente que estava lá com um mandato tampão está presa, acusada de atos antidemocráticos. Estão sentindo alguma semelhança com o Brasil?”, concluiu o presidente aflito que tenha o mesmo destino em solo brasileiro.

As estratégias da Operação Condor, que deu certo nos anos 60-70 para implantar regimes ditatoriais na América Latina com apoio dos EUA, parecem não estarem mais funcionando no século XXI, após amadurecimento e acúmulo da esquerda latino-americana. Ou, pelo menos, não tem a mesma durabilidade e ditaduras que antes duravam décadas agora resistem apenas alguns anos – ou meses, como é o caso da Bolívia.

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