Bolsonarismo, um caso de amor

Freud explica: é a libido que mobiliza as massas. Mais que ódio, classismo e ignorância, apoiadores do presidente identificam-se pela devoção a um líder e, sobretudo, pelos vínculos afetivos com seus pares. Há o amor que liberta – e o que aprisiona

Imagem: Daniel Caballero/Valor
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A persistência do bolsonarismo parece ter se tornado um enigma. Não faltam argumentos e fatos que sustentem essa afirmação.

Bolsonaro não fez grandes promessas de campanha. Apesar de seus discursos truculentos dirigidos contra seus adversários, sua plataforma política nunca foi muito clara. Essa falta de clareza se tornou uma poderosa vantagem, pois cada eleitor podia preencher as lacunas ou estabelecer contornos mais nítidos do modo como bem entendia. E ainda havia uma alternativa inversa, mas igualmente vantajosa para aquele momento: sem promessas não há decepções. Essa sentença podia cair como uma luva para o eleitor desiludido e impotente diante da realidade política. Finalmente, não haveria decepções.

Evidentemente, as coisas não são tão simples assim. Enquanto houve eleitores que apoiaram Bolsonaro por conta de seu passado militar, outros esperavam um governo voltado para o fortalecimento da economia de mercado, e ainda havia aqueles que votariam em qualquer um que não fosse um candidato de esquerda ou progressista. Com tantas e tão variadas expectativas de renovação ou conservação sociais, nenhum candidato seria capaz de atendê-las integralmente. Nem mesmo Bolsonaro.

A situação se torna mais complicada se levarmos em consideração que o governo Bolsonaro não somente não contribuiu para o controle da pandemia da covid-19 como também aprofundou seus problemas. A procrastinação na compra de vacinas e o descaso com as vítimas da pandemia, por exemplo, foram atitudes reprovadas por políticos de qualquer espectro ideológico.

Ainda assim, o bolsonarismo persiste. Uma das respostas mais rápidas e imediatas utilizadas para explicar essa persistência sustenta que haveria uma inibição intelectual de seus apoiadores, estabelecendo uma associação direta entre bolsonarismo e carência cognitiva. Essa associação, no entanto, parece tomar o efeito pela causa. É verdade que a diminuição da capacidade intelectual pode ser uma das consequências das formações de massa, não somente das massas políticas, mas também das massas corporativas, empresariais e institucionais. Nas organizações militares, por exemplo, a disciplina e a hierarquia são princípios constitucionais que definem sua base. Dessa maneira, a diversidade de opiniões e a elaboração de pontos de vista divergentes devem ser inibidos. Mas isso não significa que o ingresso na instituição militar está vetado para pessoas de maior nível intelectual, e sim que o seu funcionamento depende do respeito à hierarquia e à disciplina, da interdição da liberdade de expressão e, consequentemente, da inibição de teorias e explicações que contrariem seus valores mais fundamentais.

O déficit intelectual, portanto, pode ser um efeito, mas não explica a manutenção duradoura do bolsonarismo. Poderíamos pensar que o bolsonarismo se mantém por conta da satisfação dos interesses particulares de cada um dos membros dessa massa política, no entanto não podemos sustentar essa explicação. O bolsonarismo se mostrou incapaz de satisfazer interesses de classe, por exemplo. É verdade que as madeireiras e o agronegócio tem se beneficiado com algumas das decisões desse governo, mas o que explicaria que a classe média ou mesmo que as camadas urbanas continuassem apoiando um líder que praticamente não satisfaz nenhum de seus interesses mais práticos, como a redução do desemprego ou a diminuição do valor do dólar?

Talvez, seja necessário abandonarmos tanto a hipótese da insuficiência intelectual como a hipótese da satisfação de interesses para pensamos, com o psicanalista Sigmund Freud, na hipótese libidinal. De acordo com Freud, todas as formações de massa são configuradas por ligações ou laços libidinais – a libido deve ser entendida enquanto energia psíquica da pulsão sexual, que pode se expressar tanto no encontro amoroso como no encontro sexual. Mesmo naquelas organizações em que a satisfação de interesses é seu principal objetivo, como nas empresas e grandes corporações, os laços libidinais acabam se sobrepondo aos interesses práticos ou utilitaristas. Não é por outro motivo que amizades e amores podem se constituir no interior de uma empresa.

Em uma massa política como o bolsonarismo, os indivíduos estabelecem dois tipos de laços: laços verticais, estabelecidos com o líder, e laços horizontais, estabelecidos entre os indivíduos. Os laços verticais predominam sobre os laços horizontais. Dessa forma, ao exercer o papel de liderança política, Bolsonaro ocupa o lugar de ideal para todos os indivíduos que compõem o bolsonarismo. Por sua vez, os indivíduos do bolsonarismo atribuem seu juízo e sua capacidade crítica ao seu líder, ao mesmo tempo em que devotam a ele uma modalidade de paixão. Como diz o ditado popular, a paixão é cega. E a paixão que mobiliza os indivíduos do bolsonarismo também é cega. Os valores e as referências responsáveis pela regulação do juízo e pela atividade racional, como a verdade, são substituídos pelos caprichos de Bolsonaro, que se tornam referência para cada um dos indivíduos do bolsonarismo. E aquela substituição é feita por amor.

Pode parecer estranho afirmar que a persistência do bolsonarismo não está baseada na ignorância, e sim no amor – ou em sua versão menos crítica: a paixão. Esse estranhamento é decorrente de uma avaliação idealizada do próprio amor, fundamentada em valores morais e religiosos ou em valores políticos. De acordo com esses valores, somente determinadas versões do amor podem ser reconhecidas como legítimas, pois atendem a condições específicas para sua realização. Em alguns âmbitos religiosos, o amor deve estar submetido à renúncia, ao sacrifício e à doação. Já em alguns círculos políticos, a reciprocidade, a simetria no par amoroso e a ausência de poder são valores que delimitam como deve ser uma experiência amorosa.

Se dermos um passo para trás e abrirmos mão dessas formas idealizadas, poderemos reconhecer a força da experiência libidinal no bolsonarismo. Essa força de atração exercida sobre todos os indivíduos dessa massa é praticamente proporcional à força de rejeição que essa mesma massa exerce sobre os indivíduos que não fazem parte dela. A aliança afetiva entre os indivíduos do bolsonarismo é acompanhada pela hostilidade dirigida contra os indivíduos não bolsonaristas. Mais uma vez, nos deparamos com um raciocínio que contraria as definições correntes de amor, pois nos mostra que a relação entre o amor e o ódio, entre a amizade e a inimizade é pura e simplesmente uma relação de inversão.

Chega o momento de concluir essa reflexão sobre o bolsonarismo. A hipótese libidinal utilizada para explicar sua persistência pode nos causar um estranhamento, mas esse estranhamento não é o único. Há um segundo estranhamento. À medida que vamos entendendo os laços libidinais que o configuram, começamos a perceber que o bolsonarismo não é somente um problema de conteúdo ideológico, mas também de forma afetiva. O problema não se reduz àquilo que se diz, mas também ao modo como os laços afetivos são estabelecidos. Substituir o conteúdo ideológico do bolsonarismo por uma perspectiva emancipatória ou progressista não resolve completamente o problema de como o amor e o ódio, a aliança e a hostilidade são manejados para atrair ou rejeitar indivíduos.

Existem alternativas – e essas alternativas já foram enunciadas antes de mim. Movimentos sociais baseados na organização coletiva e na autogestão são capazes de fazer prevalecer a horizontalidade sobre a verticalidade. Grupos de trabalho em que a função de líder é substituída pela função de mediador contribui para evitar – ou, pelo menos, minimizar – que o lugar de ideal possa ser ocupado por algum dos integrantes do grupo. Vale dizer que em nenhuma formação de massa há garantias, porém, talvez seja o caso de observarmos com mais atenção não somente o conteúdo ideológico que faz avançar ou retroceder, mas também a forma libidinal que nos liberta – ou nos aprisiona.


Bibliografia

FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos (1915). In: __________. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

__________. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: __________. Obras incompletas de Sigmund Freud (Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos). Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

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Um comentario para "Bolsonarismo, um caso de amor"

  1. Fábio Sanchez disse:

    Muito bom o artigo, bravíssima tentativa de explicar o bolsonarismo do ponto de vista da psicanálise, acho que explica mesmo.

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