Em defesa de Anne Frank

Diário da garota judia perseguida pelo nazismo é taxada, por adultos sem imaginação, de “sexualização precoce” das crianças. Mas nesta cruzada moralista, talvez o que mais os assuste é a lição de esperança em meio ao horror de governos genocidas…

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Eu tinha 14 anos quando li pela primeira vez O Diário de Anne Frank. Leitor ávido, estava transitando entre os clássicos brasileiros de Machado de Assis, Jorge Amado e Erico Verissimo para uma literatura internacional. Lembro que tinha acabado de ler O Apanhador no Campo de Centeio quando me sugeriram a leitura de O Diário de Anne Frank. Devorei o livro em poucas horas, mas aquelas páginas me acompanharam pelo resto da vida. Desde então, não há um ano em que eu não releia este livro – inclusive as novas edições – sempre aprendendo e me surpreendendo com a resiliência desta pequena adolescente, cuja paixão pela vida não conseguiu ser sufocada pelos horrores do Holocausto.

Impossível não se emocionar com a história desta menina judia e alemã. Em meio a tragédia da 2ª Guerra Mundial, ela precisou se esconder em um pequeno bunker no depósito de seu pai em Amsterdã, para se proteger da perseguição nazista. Ela passou dois anos nesse esconderijo, apertada lá dentro com seu pai Otto, sua mãe Edith, sua irmã Margot, juntamente com outra família, os van Pels. Apesar de viver sob o constante terror de serem descobertos pelos nazistas que controlavam a Holanda, Anne conseguiu estudar francês, álgebra e história dentro do “anexo escondido”. Em 1944, por meio do canal clandestino da emissora de rádio BBC, Gerrit Bolkestein, o ministro da Educação holandês apelou a sua população que deixasse cartas e diários sobre os sofrimentos infligidos a eles pelo exército invasor.

Foi assim que nasceu o diário de Anne Frank. Por meio dele, ficamos sabendo que a menina enclausurada tinha ideais, sonhos e planos. Possuía ambições de se tornar uma escritora e uma jornalista. Suas reflexões sobre o amor e a condição humana mostram que Anne era uma adolescente inteligente, cuja mente e corpo despertavam para a vida; seus escritos demonstram todo o seu idealismo e fé na humanidade, mesmo vivendo sob um horror cotidiano. Em uma passagem marcante, ela coloca que

“é um milagre eu não ter abandonado todos os meus ideais, eles parecem tão absurdos e impraticáveis. No entanto, eu me apego a eles, porque eu ainda acredito, apesar de tudo, que as pessoas são realmente boas de coração”.

Por qualquer ângulo que se analise, O Diário de Anne Frank é um clássico da literatura mundial. Traduzido para mais de 70 línguas, tem ensinado gerações ao redor do mundo não apenas sobre a história do terror da 2ª Guerra Mundial por alguém que viveu e foi massacrada por esta barbárie; O Diário nos conta sobre a impossibilidade da existência humana sem a presença da esperança, mesmo sob as mais terríveis condições.

Assim, fiquei extremamente chocado ao saber que os pais de uma escola de elite de São Paulo se reuniram para protestar contra a leitura do livro por seus filhos e filhas de 11 e 12 anos. Aparentemente, o protesto aconteceu porque nas novas edições do livro há passagens em que Anne se refere as explorações que faz em sua vagina, e faz divagações sobre como um pênis poderia entrar em um buraco tão estreito… Como qualquer adolescente, Anne explorava os caminhos da sua mente e de seu corpo, e deixou estas explorações registradas nas páginas de seu Diário, de uma forma pungente – mas segundo consta, a prole da elite paulistana não está preparada para ouvir estes “nomes feios” – certamente, nenhum destes pré-adolescentes tem celular, tampouco navega pela internet (sic). Será que estes pais nunca escutaram as letras dos funks que as babás de seus filhos tocam para estes? Se prestassem atenção, talvez escutassem algo menos inocente que vagina, oh! Esse palavrão…

Entretanto, tive um choque ainda maior ao ler na Folha de São Paulo, no dia 2 de junho, um artigo em que uma jovem liderança da elite empresarial brasileira defende a atitude dos pais! O tal texto, ignorando a abrangência histórica e mundial da obra de Anne Frank, já em seu título se refere ao Diário não pelo seu nome, mas como “livro com conteúdo sexual”. O autor do texto, que deve ter frequentado as melhores escolas (ou talvez as mais caras, mas que pelo visto ficam a desejar em termos de educação humanista), não consegue entender a dimensão humana e histórica de O Diário de Anne Frank, e tenta reduzi-lo a um panfleto pornográfico…

Diga-se de passagem: os trechos do Diário nos quais a narradora conta as suas explorações corporais e explora sua sexualidade incipiente são de uma profundidade e de uma beleza literária incomuns; deveriam ser conteúdo de qualquer aula de educação sexual para crianças e adolescentes. Infelizmente, são textos que não podem ser compreendidos por adultos sem imaginação, tampouco sensibilidade, pessoas que, em sua cruzada moralista e inquisitória querem transformar uma obra literária imortal em um “livro com conteúdo sexual”.

Gabriel Kanner, autor do malfadado texto, prossegue no seu proselitismo, contra uma suposta escalada da “sexualização precoce” das crianças nos dias de hoje. Sem nenhuma formação de educador, ele desconhece que o aprendizado dos nomes das partes do corpo – perna, cabeça, pênis, vagina – é parte de qualquer currículo normal de pré-escolares. Citando, sem obviamente nunca ter lido, Rousseau, Derrida e Foucault, ele protesta contra a “nossa atual sociedade onde a sexualização virou parte intrínseca e prevalecente na formação da identidade de cada indivíduo”. Talvez a sexualidade não faça parte da identidade de Kanner, mas certamente é importante para o resto da sociedade. Todas as pesquisas sérias neste campo há décadas apontam que, quanto maior o diálogo franco sobre a temática da sexualidade, em conjunto com a informação de qualidade que crianças e adolescentes recebam de adultos confiáveis – incluindo neste rol seus professores –, maiores as possibilidades delas desfrutarem de uma vida sexual mais saudável e protegida de abusos, de DSTs, de gravidez precoce e outras dificuldades que aparecem na vida sexual humana.

Contudo, não se deixem enganar. O Diário de Anne Frank mal fala de sexo, e nunca foi considerado um livro com conteúdo sexual. Trata-se de uma obra-prima da literatura mundial, que mostra uma escritora refinada que nos apresenta a cada passagem, um libelo de coragem e esperança, em meio a uma situação desesperadora.

Quando tantas crianças e adolescentes se encontram sem aulas, em isolamento social, longe dos amigos, em meio a este caos provocado pela condução criminosa da pandemia no Brasil, o Diário de Anne Frank é mais que uma luz no fim do túnel: ele inspira, traz renovação, emoção e confiança para os corações jovens – aliás, para os corações e mentes de qualquer idade.

Quem diria que um dia as lideranças da elite brasileira iriam atacar Anne Frank? Pensando bem, talvez esse ataque se coadune bem com o apoio que essas elites prestam a um genocida que, como a cada dia se comprova, vem procurando intencionalmente assassinar a população a qual deveria proteger.

Leiam O Diário de Anne Frank. Visitem pela internet a casa de Anne Frank, que funciona no mesmo lugar onde Anne e sua família viveram escondidas dos nazistas. A casa foi montada pelo seu pai, Otto, o único membro da família Frank a escapar com vida dos campos de concentração nazistas. Um pai, que ao ler os diários da filha, viu ali com muito orgulho a expressão inteira de uma adolescente valorosa; um pai que, lutando contra o luto imenso da perda de toda a sua família, construiu um memorial e publicou o livro, verdadeiros legados humanistas que continuarão a inspirar gerações que clamam por justiça e liberdade ao redor do mundo.

Anne Frank vive em nós. Não deixaremos que ela seja novamente escondida e massacrada por pseudolideres ignorantes. Parabéns aos professores e professoras que recomendam a leitura do Diário de Anne Frank para seus alunos e que, mesmo nestes tempos obscuros, promovem uma educação libertadora.

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