Ayahuasca: A promissora ciência psicodélica no Brasil

Novas pesquisas aquecem debate sobre potencial terapêutico da planta usada há milênios pelos povos amazônicos. Técnicas usam “minicérebros” criados em laboratório e ajudam a desvendar complexa teia de compostos vastamente benéficos

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Por Carlos Minuano, na CartaCapital

A redescoberta do potencial terapêutico dos psicodélicos é um fato confirmado pela ciência moderna, inclusive brasileira. Enquanto avança o conhecimento sobre substâncias como a psilocibina, o LSD e outras, ironicamente, a ayahuasca – bebida usada há milhares de anos por povos indígenas amazônicos – segue ainda cercada por mistérios.

Um mistério que se arrasta há décadas, por exemplo, diz respeito ao princípio ativo do chá amazônico. A hipótese mais aceita cientificamente, diz que é a DMT (N,N-Dimetiltriptamina), um poderoso psicodélico presente nas folhas de umas das plantas usadas para preparar a beberagem, chamada chacrona. 

Para indígenas da Amazônia, entretanto, o elemento central da ayahuasca é o cipó usado na preparação da bebida, que contém uma substância chamada harmina. Pesquisas recentes trazem novidades que podem ampliar o debate.

Parte desses estudos estão sendo realizados em ‘minicérebros’ (organoides cerebrais) no laboratório do neurocientista brasileiro Stevens Rehen, no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, o Idor, no Rio de Janeiro.

O interesse de Rehen pelos psicodélicos, aliás, começou justamente em uma cerimônia de ayahuasca no grupo religioso Santo Daime, na década de 1990. O papel da bebida na evolução e organização das religiões ayahuasqueiras, com suas misturas, sincretismos, música, aguçaram a curiosidade do pesquisador. “A primeira coisa que eu fiz foi ligar o cronômetro do meu relógio para tentar ter uma noção do tempo”, relembra. 

Rehen conta ter começado a se questionar sobre qual seriam os efeitos da ayahuasca no sistema nervoso. “As alterações sensoriais foram muito marcantes.” Depois da experiência, o cientista decidiu investigar uma das substâncias presentes na bebida amazônica e as possíveis aplicações como antidepressivo.

Os efeitos biológicos da harmina 

Especializado em células-tronco, o neurocientista começou a estudar uma das substâncias presentes no chá que, até então, era pouco estudada: a harmina, a responsável pela “mágica” da beberagem psicodélica.

A ayahuasca, explica Rehen, é uma mistura de duas plantas. A folha da chacrona – que contém o DMT, a substância psicoativa – e o cipó mariri. “Sem o cipó, a bebida não teria nenhum tipo de efeito psicoativo, porque o organismo tem enzimas que destroem o DMT antes de chegar no sistema nervoso central”.

“No chá de ayahuasca, a harmina teria a função de preservar a integridade da DMT para ela alcançar a corrente sanguínea e depois, no cérebro, ativar os receptores de serotonina, desencadeando lá o seu efeito”, completa.

O pesquisador conta que a harmina é o objeto de pesquisa mais promissora do grupo. Os pesquisadores decidiram trabalhar com esse alcaloide isolado por causa dos desafios que encontraram de avançar nos estudos em nível molecular com extratos do chá amazônico.

“Estudar a ayahuasca é lidar com a complexidade de dezenas de compostos misturados” explica o neurocientista. “Nesse estágio de nossas pesquisas, gostaríamos de identificar qual substância está fazendo o quê”. 

Para testar a harmina, os pesquisadores usaram uma técnica de reprogramação celular criada pelo cientista japonês, Shinya Yamanaka, que ganhou o prêmio Nobel de Medicina em 2012. “Com qualquer tipo de célula do corpo de um adulto criamos células-tronco que se transformam em neurônios”, detalha Rehen. Esses pedacinhos de tecido cerebral humano são chamados também de minicérebros, ou organoides cerebrais.

Os estudos, um de 2016 e outro de 2022, demonstraram um aumento da neurogênese e alteração no transporte de uma proteína relacionada à doença de Alzheimer nesses organoides cerebrais. “Se formavam mais células, além de um efeito direto sobre o funcionamento dos neurônios estimulados com a harmina”. A pesquisa mostrou que o efeito neurogênico da ayahuasca, ou seja, essa multiplicação das células neurais, poderia não vir exclusivamente da DMT, como se imaginava até então.

Uma experiência poderosa

A discussão sobre a identificação científica do princípio ativo da ayahuasca, que passa pela questão da harmina, é tema de um capítulo de Plantas Mestras: Tabaco e Ayahuasca (Editora Dantes), de Jeremy Narby, antropólogo canadense radicado na Suíça. Escrito em parceria com o curandeiro peruano Rafael Chanchari Pizuri, o livro propõe um diálogo entre ciência acadêmica e saberes indígenas. 

“Em certas regiões da Amazônia, as pessoas preparam decocções ou infusões exclusivamente à base de cipós de ayahuasca, sem acréscimo de nenhuma outra planta”, escreve Narby no livro. 

O antropólogo cita diferentes referências que destacam os efeitos psicoativos da harmina, como, por exemplo, um artigo do químico italiano Matteo Politi, que descreve o consumo do chá amazônico contendo apenas o mariri como uma experiência poderosa, que lhe causou purgas e visões.      

Segundo Narby, nos últimos anos, pesquisadores entenderam que as substâncias contidas no cipó da ayahuasca tinham um amplo espectro de propriedades benéficas para a saúde. “Os três alcaloides da família da harmina induzem a formação de novos neurônios”. 

Estudos mais recentes, de acordo com o antropólogo, indicam que “a harmina possui também propriedades anti-inflamatórias, analgésicas, antimicrobianas, antioxidantes, antiaditivas, antidepressivas e, possivelmente, também antiparkinsonianas e antitumorais.”

Combinação de saberes

Com base no modelo de minicérebros, o grupo de Stevens Rehen avançou também na investigação dos efeitos de outros psicodélicos, como LSD, 5-MeO-DMT, e psilocibina, sobre as vias de sinalização celular relacionadas, por exemplo, à formação de memória, regeneração e inflamação. 

“Meu time de pesquisa, estudantes e colaboradores, acabaram se especializando nesse tipo de abordagem experimental”, comenta o neurocientista. Em 2022, o grupo publicou 10 artigos científicos em revistas de altíssimo impacto.

Professor licenciado do Instituto de Biologia da UFRJ, Stevens Rehen passa uma temporada nos Estados Unidos, entre o Instituto Usona e seu novo laboratório na Promega, empresa de biotecnologia em Madison, Wisconsin, de onde falou com a reportagem. 

Os organoides cerebrais funcionam como um avatar do cérebro humano (Foto: Karina Karmirian)

“Queremos nos tornar mais internacionais e essa parceria aqui [nos EUA] possibilita acesso a ferramentas tecnológicas que ainda não temos no Brasil”, conta Rehen. A sede do laboratório, porém, continua no Brasil, onde 90% do trabalho experimental acontece.

O cientista defende que a interação entre pessoas com visões do mundo diferentes pode ser enriquecedor para as pesquisas. “Eu aprendo muito a partir da combinação de saberes, isso vale para conviver com antropólogos, filósofos, psicólogos, com um xamã ou um pajé.”

Avatar do cérebro humano

A reportagem visitou o laboratório de Stevens Rehen no Rio de Janeiro no final de 2022. Uma das pesquisadoras do grupo, a bióloga Livia Goto, conta ter começado na equipe trabalhando em outro campo de estudos. Mas, após colaborar em uma pesquisa com LSD, se transformou em uma entusiasta do tema. “Sempre achei encantadora a pesquisa com psicodélicos, mas só observava de longe o que estava acontecendo.”

Além de ajudar a fotografar os minicérebros (eles realmente são pequenos, medem entre três e cinco milímetros), a bióloga falou sobre como os organoides cerebrais são úteis para estudar processos fisiológicos, bioquímicos e metabólicos observados no tecido cerebral. 

Lívia explica que o modelo funciona como um avatar do cérebro humano. “É uma maneira de estudar o cérebro fora da pessoa, com a vantagem de ter um conjunto de biomoléculas humanas, é diferente, por exemplo, de estudar em um animal.”

A pesquisadora vê com otimismo o cenário da ciência psicodélica no Brasil. Segundo ela, pesquisas brasileiras têm alcançado destaque no cenário internacional. “Há muitas possibilidades se abrindo, tem muita gente lá fora olhando para cá, ou vindo trabalhar aqui”. Mas, ela reconhece que faltam recursos. “Se a gente tivesse mais financiamento, conseguiria fazer muito mais estudos.”

Desafios da ciência psicodélica no Brasil

Outro pesquisador no laboratório do neurocientista Stevens Rehen é o biomédico José Alexandre Salerno. Salerno conta que o DMT começou a chamar a sua atenção quando ele percebeu que o renascimento psicodélico estava explodindo no mundo inteiro. “Acompanhava as notícias sobre as maiores instituições de pesquisa do mundo inaugurando centros dedicados à pesquisa com psicodélicos, me perguntava sobre o lugar do Brasil nessa história.”

Ele observa também que a DMT chamou muito sua atenção por estar associada a uma prática religiosa com a ayahuasca, que é regulamentada no Brasil. “Hoje sabemos que DMT está presente no metabolismo de um monte de espécies vegetais.”

O cientista Stevens Rehen (Foto: Divulgação)

O pesquisador não demorou muito para descobrir que o Brasil também estava avançando nas pesquisas. Hoje, dentro desse movimento, no grupo de Stevens Rehen, ele ajuda na busca por respostas sobre essas estranhas e fascinantes substâncias. 

“Os psicodélicos são moléculas muito parecidas com a serotonina que é uma molécula endógena, por isso temos receptores para eles em todos os tecidos do corpo praticamente”, explica Salerno.  

Atualmente um dos principais desafios do grupo de pesquisa, é entender como essas substâncias interagem com as nossas células de uma maneira mais geral, para explicar um efeito que é tão profundo e tão diferente de todas as outras moléculas. “Se a gente já tem a serotonina no nosso corpo, por que ela não é psicodélica?”, indaga o pesquisador.

O pesquisador reconhece que há pela frente um longo caminho até chegar às respostas. E além das dificuldades da investigação científica, há também desafios inerentes à ciência psicodélica no Brasil. “Temos dois problemas atuais muito grandes, um é a falta de investimento e o outro é a falta de credibilidade”. Um cenário desmotivador em alguns aspectos, lamenta. 

“Se você está num contexto em que a evidência científica não é tomada como base, é preciso um esforço enorme de uma pesquisa de muitos anos para construir uma evidência científica”. No caso dos psicodélicos, ele acredita que a situação é pior, por causa do preconceito. “E depois vai ter que destino?Esbarra ainda em muitos estigmas.” 

Liberdade religiosa e científica 

No Brasil, além do grupo de Stevens Rehen, outros cientistas estudam a ayahuasca. No Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), em Natal, pesquisas com o chá para tratamento de depressão são conduzidas pelo neurocientista Dráulio de Araújo. Na FMRP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto) da USP (Universidade de São Paulo), há décadas o também neurocientista Rafael Guimarães dos Santos se dedica ao mesmo tema. E na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), sob a direção do psiquiatra Dartiu Xavier, há anos se investiga o potencial da bebida para tratar a dependência química.

Estudos brasileiros acumulam evidências sobre o potencial terapêutico do chá amazônico para tratamentos diversos. Entretanto, apesar dos avanços da ciência, nos últimos anos não houve nenhuma movimentação no campo político na direção de uma regulamentação do uso terapêutico da bebida, que segue autorizada no país apenas para uso religioso. E mesmo essa utilização, para fins rituais, já foi alvo de perseguição, chegando até a ser proibida na década de 1980.  

A ayahuasca é uma bebida psicoativa preparada com duas plantas, o cipó Banisteriopsis caapi, conhecido como mariri, e o arbusto Psychotria viridis, chamado também de chacrona, que contém DMT, substância psicodélica controlada no Brasil por uma portaria de 1998 e em esfera internacional, pela Convenção  das Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971.  

A beberagem é utilizada por diversas populações indígenas da Amazônia e desde a década de 1930 por vários grupos religiosos no Brasil, incluindo o Santo Daime e a UDV (União do Vegetal). Em 1985, a ayahuasca chegou a ser proibida pela Dimed (Divisão Nacional de Medicamentos, um órgão vinculado ao Ministério da Saúde que em 1999 se tornou a atual Anvisa, Agência Nacional de Vigilância Sanitária).  

(Foto: Karina Karmirian)

Mas a proibição durou pouco. Um grupo de trabalho criado pelo Confen (Conselho Federal de Entorpecentes), o atual Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre  Drogas), conseguiu reverter a decisão. Após encontros extensivos com as comunidades ayahuasqueiras brasileiras, a suspensão definitiva e a autorização do “uso ritual e religioso” ocorreu em 1987.

Entretanto, o debate prosseguiu e o processo de regulamentação se arrastou por anos. A resolução final do Conad saiu apenas em 2010, decisão que segue valendo. Apesar do longo e sinuoso caminho até a liberação para o uso ritual do chá amazônico, a liberdade religiosa foi um passo importante. “Permitiu que muitos antropólogos pudessem se debruçar sobre a complexidade das igrejas da ayahuasca, e também de como elas foram se organizando no mundo, principalmente na Europa e nos Estados Unidos”, relembra o neurocientista Stevens Rehen. E abriu caminhos também para estudos em outros campos da ciência, como o dele. 

Mas, é consenso entre pesquisadores de diferentes áreas, que já passou da hora de uma regulamentação mais ampla. A própria resolução de 2010 do Conad que restringe o uso da bebida psicodélica para rituais religiosos aponta nessa direção. O documento resguarda a utilização com fins terapêuticos, se a eficiência for comprovada “por meio de pesquisas científicas”. Ou seja, enquanto pesquisas avançam, possíveis tratamentos permanecem na gaveta  paralisados. Talvez por preconceito, burocracia, falta de vontade política, ou, possivelmente, um combo de tudo isso.   

A série Yes, nós temos ciência psicodélica, publicada pela revista CartaCapital com apoio do Instituto Serrapilheira, vai contar a curiosa e intrigante história da pesquisa científica com substâncias psicodélicas no Brasil. 

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