Como a China vê seu socialismo peculiar

Socialismo com mercado? Capitalismo de Estado? O debate sobre o caráter do sistema chinês é rico e necessário. Mas ao travá-lo, vale a pena levar em conta a opinião dos próprios teóricos chineses. Nossos textos ajudam a fazê-lo

Poster: Viva o Presidente Mao!, 1971 — Comitê Revolucionário e Equipe de Propaganda dos Trabalhadores da Escola de Belas Artes de Xangai
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Um texto da revista Wenhua Zongheng

O que o pensamento político chinês – que nossa coluna esforça-se em apresentar ao público brasileiro – tem a dizer sobre as notáveis mudanças vividas pelo país, a partir da revolução de 1949? É este, precisamente, o tema do novo número da edição internacional da revista Wenhua Zongheng, cujos textos Outras Palavras publica a partir de hoje. A leitura revelará a existência de um debate fértil a respeito do  tema – bem ao contrário do que sugerem os estereótipos difundidos pela mídia ocidental.

O primeiro texto, que vem a seguir, é a apresentação geral da edição. Embora introdutório, é incisivo e polêmico. Sugere que há, nos três momentos nitidamente distintos vividos desde a chegada do Partido Comunista ao poder, continuidades e rupturas. A ênfase na redistribuição da riqueza e a direção da economia pelo Estado, presentes no período de Xi Jinping, retomariam num novo patamar tendências da primeira etapa, dirigida por Mao. As políticas de hoje rompem com aspectos importantes da “abertura” aos capitais privados e às multinacionais, empreendida a partir de 1978. Mas elas só teriam se tornado possíveis porque houve nessa etapa anterior, sob Deng Hiaopong, um novo desenvolvimento das forças produtivas – que havia desacelerado no final da primeira fase.

Criada em 2008, Wenhua Zongheng (文化纵横) é uma revista proeminente de pensamento político e cultural contemporâneo na China. A edição internacional é editada pelo Centro Tricontinental e pelo Coletivo Dong Feng, que Outras Palavras orgulha-se de ter como parceiros. (A.M.)

Na China, a história da industrialização é inseparável da construção do socialismo, ao longo de suas diferentes etapas, progressos, tentativas e erros. Nas últimas décadas do século XX, o movimento socialista mundial se enfraqueceu com a dissolução da União Soviética. Nesse período, o sistema socialista da China passou por uma autotransformação por meio da reforma e abertura, sob a liderança de Deng Xiaoping. Ao mesmo tempo, observadores de todo espectro político interpretaram essa nova direção como a sentença de morte do projeto socialista na China, e como o início de um caminho capitalista do país. Essas análises iniciais, tanto de dentro como de fora do país, não tinham as informações necessárias nem o distanciamento histórico para avaliar o caráter socialista das reformas da China.

Apesar das conquistas sociais, econômicas e industriais do início do período socialista sob a liderança de Mao Zedong, três décadas depois da revolução, a China continuava sendo um país muito pobre, e a maioria do povo chinês permanecia vivendo na extrema pobreza. Nessa situação, Deng declarou que “pobreza não é socialismo. Socialismo é eliminar a pobreza”, e tentou construir um novo caminho para lidar com as necessidades de modernização do país e de melhores condições de vida para o povo. A reintrodução do capital privado e a integração da China no sistema econômico internacional fizeram parte dos esforços de desenvolver rapidamente as forças produtivas do país, priorizando estrategicamente algumas regiões para “deixar que aquelas que enriqueçam primeiro levem as demais junto consigo” (先富带后富, xiānfù dài hòufù). No Ocidente, de forma intencional ou não, essa formulação tende a ser reduzida a “deixar alguns enriquecerem primeiro”, omitindo a segunda parte da expressão, que responsabiliza os membros ou regiões mais ricos do país a “levar os outros consigo” em direção ao objetivo da prosperidade comum. Isso expressa a pobreza de informação sobre a China que existe fora do país, um fator crucial nas disputas sobre o conceito de socialismo.

No final de 2020, apenas quatro décadas após o início da experiência de Deng, a China anunciou o êxito da erradicação da extrema pobreza entre seus 1,4 bilhão de habitantes. Essa conquista histórica aconteceu em meio à pandemia global de Covid-19, durante a qual as crises sociais e econômicas se aprofundaram em todo o mundo e milhões de pessoas retornaram à situação de extrema pobreza, especialmente no Sul Global. A erradicação da extrema pobreza na China foi um dos dois objetivos centenários estabelecidos pelo Partido Comunista da China (PCCh), a serem cumpridos no aniversário de 100 anos do partido, fundado em 1921. Durante a última fase desse processo, de 2013 a 2020, a China empreendeu um programa de redução direcionada da pobreza (精准扶贫, jīngzhǔn fúpín), iniciado pelo presidente Xi Jinping, para tirar as últimas 100 milhões de pessoas chinesas da extrema pobreza. Isso se soma às mais de 700 milhões de pessoas que saíram da pobreza no país desde o início do programa de reforma e abertura. Desde 1978, a China respondeu por mais de 70% da redução da pobreza global. Como podemos compreender essa conquista impressionante? A quais processos e atores devemos dar os créditos e quais devem ser os fundamentos de nossa avaliação?

Apesar dos incríveis avanços econômicos da China nesse período, seria incompleto e equivocado atribuir a conquista da eliminação da extrema pobreza apenas à reforma econômica e à reintrodução das forças do mercado. Este número da Wenhua Zongheng, intitulado O caminho da China: da extrema pobreza à modernização socialista, é composto por três artigos que analisam detalhadamente a batalha centenária da China contra a pobreza, situando-a na experiência histórica de construção socialista no país.

No primeiro artigo, Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China, a Fundação Longway contextualiza a era atual do socialismo chinês e a batalha contra a pobreza dentro da busca histórica do PCCh por modernização e pelo objetivo duplo de industrialização e igualdade. Os autores argumentam que o método do partido para atingir tais objetivos, interrelacionados e, por vezes, contraditórios, evoluiu em três fases distintas. De 1949 a 1976, a era de Mao Zedong — chamada de “socialismo 1.0” — estabeleceu a propriedade pública dos meios de produção, mantendo a igualdade social e alcançando uma industrialização básica, mas encontrou limitações no desenvolvimento econômico. A essa fase se seguiu o “socialismo 2.0”, na era de Deng Xiaoping, que deu início a introdução da economia de mercado, em 1978, e alcançou grandes avanços econômicos e sociais. Porém levou a um aumento acentuado na desigualdade, a uma maior separação entre trabalhadores e meios de produção, e “estabeleceu as bases para uma grave crise”. Finalmente, no período contemporâneo, a China deve desenvolver um “socialismo 3.0”, a partir das eras anteriores, mas encarando seus limites, por meio do combate à desigualdade e da promoção dos interesses da classe trabalhadora. De fato, o 18º Congresso Nacional do PCCh, em 2012, marcou uma nova era no caminho socialista da China, com a elevação dos esforços de redução da pobreza à tarefa central do partido e da sociedade.

No segundo artigo, A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária alternativa na era pós-revolucionária da China, Li Xiaoyun (李小云) e Yang Chengxue (杨程雪) analisam a “batalha contra a pobreza” (扶贫攻坚, fúpín gōngjiān), argumentando que esta representa uma espécie de retorno do partido à sua agenda revolucionária. Os autores traçam as origens das políticas atuais de redução da pobreza nas práticas do início do movimento comunista na China, particularmente nas formas de governar do partido nas áreas das bases revolucionárias nas décadas de 1930 e 1940. Além de melhorar as condições de vida do povo, os autores argumentam que a batalha contra a pobreza teve um impacto político e econômico mais amplo, ao restabelecer a autoridade política do PCCh e reconstruir o consenso social no país. Li e Yang concluem que “isso expressa uma nova fase do governo do PCCh”, caracterizada pela “promoção de justiça social para concretizar a modernização do país”. Essa nova fase busca conduzir o país ao segundo objetivo centenário do PCCh, ou seja, construir uma sociedade socialista moderna até 2049, no centésimo aniversário da revolução chinesa. Para esses esforços, é fundamental o avanço do desenvolvimento e do bem-estar social nas áreas rurais. Com esse objetivo, em 2013, o PCCh lançou seu programa de redução direcionada da pobreza, para erradicar a extrema pobreza na China.

No terceiro artigo, Como a redução direcionada da pobreza mudou as estruturas de governança rural na China, Wang Xiaoyi (王晓毅) analisa como esse programa atingiu seu objetivo experimentando novas práticas, utilizando o método histórico de governo no modelo de campanha da era de Mao Zedong. Esse método se caracteriza pela mobilização de enormes quantidades de recursos humanos e materiais para a realização de tarefas de larga escala. Durante o período da reforma e abertura, devido ao desenvolvimento da economia de mercado, as áreas rurais foram esvaziadas com a migração em massa para as cidades, as organizações dos povoados se enfraqueceram e o partido e o Estado se distanciaram das bases, o que teve como resultado a diminuição do acesso aos serviços públicos nas áreas pobres. Wang detalha como, além de satisfazer as necessidades materiais imediatas da população rural, a redução direcionada da pobreza desempenhou um papel importante na reconstrução das organizações nos povoados, fortalecendo os processos democráticos de autogoverno local e reaproximando o partido de sua base rural – o que incluiu o envio de três milhões de quadros do partido para trabalhar nas áreas empobrecidas. Resta saber se essas experiências e inovações significativas da campanha de redução direcionada da pobreza poderão ser traduzidas em mudanças institucionais e se poderão efetuar transformações de longo prazo na governança rural.

Em novembro de 2022, em seu relatório ao 20º Congresso Nacional do PCCh, Xi afirmou que “a modernização chinesa é a modernização socialista conduzida sob a liderança do Partido Comunista da China”. Ele destacou cinco características do caminho da China rumo à modernização: a modernização de uma população enorme, prosperidade comum para todos, progresso material e ético-cultural, harmonia entre humanidade e natureza e desenvolvimento pacífico. Xi afirmou, ainda, que “ao realizar a modernização, a China não irá trilhar o velho caminho da guerra, colonização e espoliação adotado por alguns países. Esse caminho brutal e manchado de sangue do enriquecimento de alguns às custas de outros provocou muito sofrimento para os povos dos países em desenvolvimento. Nós iremos nos manter firmes no lado certo da história e no lado do progresso humano”. Assim como no caso do socialismo, a luta para redefinir o conceito de modernização, arrancando-o da hegemonia do Ocidente, é uma batalha ideológica fundamental em nosso tempo.

Não há dúvida de que o caminho da China para a modernização socialista tem importância global e, nele, a luta contra a pobreza desempenha um papel central. Entretanto, não se trata de um modelo único a ser reproduzido ou imposto a outros países, já que cada um tem suas próprias histórias e condições. Representa um caminho alternativo ao desenvolvimento capitalista ocidental e a possibilidade de que os povos e países do Sul Global sigam seu próprio rumo a uma modernização — e, talvez, para o socialismo —, defendendo firmemente a dignidade humana e a soberania nacional.

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Um comentario para "Como a China vê seu socialismo peculiar"

  1. José Mario Ferraz disse:

    Só analfabeto político não sabe que não só a qualidade de vida, mas a própria vida depende da forma como é administrado o erário. Se essa administração depende do tipo de política, e se a política ou é de direita ou de esquerda, e se a esquerda é do tipo da que existe na China, faz-se necessária uma terceira via política que comece diminuindo a diferença abismal entre os possuidores e os despossuídos, venha a buscar justiça social.

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