Djamila Ribeiro: a anticolonial língua de santo

Em Portugal, pensadora aponta: religiões afro-brasileiras – com um panteão de divindades e palavras – são também espaços linguísticos que desafiam o eurocentrismo. E, ao preservar ancestralidades, restituem a humanidade

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Djamila Ribeiro visita Portugal pela primeira vez: “Estar num país diferente, onde eu posso falar português, muda tudo e me toca bastante”. A filósofa veio participar do Ciclo Cidadania da Língua, realizado pela Associação Portugal Brasil 200 anos. O roteiro contemplou a feira do livro de Coimbra, onde falou sobre “As muitas cores da língua portuguesa” numa conversa com a escritora Yara Nakahanda Monteiro, no fim da tarde da segunda-feira, 26 de junho.

Autora de Lugar de Fala, Pequeno manual antirracista e Quem tem medo de Feminismo Negro, é ainda a coordenadora da plataforma Feminismos Plurais, e já foi considerada uma das 100 mulheres mais influentes do mundo pela britânica BBC. Falou por uma hora, respondeu perguntas, cantou Racionais MCs e fez muitos questionamentos. Djamila trouxe para o debate o pensamento de Lélia Gonzales, Conceição Evaristo, Lima Barreto, Machado de Assis e ainda a força dos Orixás do panteão das divindades africanas.

Para Djamila, os desafios da diversidade linguística do português trazem as dificuldades próprias do processo de colonização, começadas quando esta língua foi imposta aos povos originários: “Olhar para a Língua Portuguesa do Brasil, em perspectiva, é olhar para um ato de resistência, esse nosso português com palavras africanas e indígenas é o rosto da nossa persistência, nós acabamos por influenciar esta língua que nos foi imposta”, diz a ativista.

Para a audiência portuguesa (mas com grande participação de brasileira), ela explica o conceito de Pretuguês, desenvolvido pela Lélia Gonzales, e evidencia a valorização da Língua Portuguesa falada: “A sociedade elitista goza do povo negro quando falamos framengo, mas não sabe das variações linguísticas de África onde, para muitos falantes, o L inexiste e eu pergunto: afinal, quem é o ignorante?”, ironiza.

De fato, muita gente ri dessa forma falada da Língua Portuguesa e esquece que a população negra foi excluída do processo de educação formal no país. A primeira Constituição do Brasil, feita em 1824, estabelecia que só podiam frequentar as escolas os cidadãos nascidos livres, mas nesta época pessoas negras ainda estavam escravizadas: povos negros não tinham o direito de aprender formalmente a língua falada no seu próprio país.

“As pessoas dão risadas, mas deveriam entender que esse processo é uma violência, que alijava determinadas populações de acesso à educação, não reconhecer o nosso Português com influências indígenas e africanas é uma violência eurocêntrica”, repudia Djamila.

A escritora angolana Yara Nakahanda Monteiro pergunta o que o Brasil tem feito de forma a não perpetuar esse colonialismo linguístico e Djamila responde que “nos últimos quatro anos nada, muito pelo contrário”. Mas coloca esperanças “agora que voltamos a respirar democracia no país” em iniciativas como a lei 10.639 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira dentro das escolas brasileiras. A lei modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que define os conteúdos obrigatórios que devem ser desenvolvidos para alunas e alunos. Essa lei foi feita no primeiro governo Lula e era uma reivindicação antiga dos movimentos negros, ainda muito difícil de se ver aplicada na prática.

Djamila fechou a sessão falando da Língua de Santo, que aprendeu com a avó Antónia, benzedeira em Piracicaba, a quem dedica seu mais recente livro “Cartas para a minha avó”. Explica que essa língua vem do Candomblé e de todas as religiões afro-brasileiras, e que foi nesse espaço que aprendeu novas palavras: “Eu agradeço com Adúpẹ́ e saúdo com Motumbá. Minhas palavras preferidas são as saudações para os Orixás e, como filha de Oxóssi, tenho preferência pelo Okê Arô! É lindo de ver que as saudações trazem sonoridades que combinam com eles, por exemplo, para Oxum, que é a Rainha da água doce, dona dos rios e cachoeiras, a saudação parece até uma onda… Ora Ie Iê Ô! Com estas palavras reverenciamos toda uma cultura.”

No pensamento de Djamila, essas religiões preencheram um espaço linguístico de restituição de humanidade, porque quando o povo negro vai pra escola não contam lá nada da sua história, falam só da escravidão. Mas num terreiro existe um panteão de divindades, de deuses e deusas, com várias palavras novas e ressignificados de outras tantas, dando novos sentidos ao que conhecemos no mundo.

Ela vê o mundo das palavras através do Candomblé, numa lógica anticolonial, com aqueles Orixás dançando em círculo no Xirê. A dança tem uma ordem, primeiro é Exu, Oxalá é o último, e todos eles aparecem quando são cantados: “O bonito é que todos os orixás são diferentes entre si mas todos dançam juntos, mesmo os que não se dão, Obá não se dá com Oxum e vice-versa mas elas dançam juntas no conjunto e eu acho que a gente tem muito a aprender com isso, apesar das nossas diferenças linguísticas. Para mim o Português é como um grande Xirê, porque temos nossas variações, mas estamos dançando sempre juntos e se a gente começar a olhar essas diferenças de maneira circular, que é muito melhor que insistir nessa lógica da imposição, a gente vai poder dançar mais.”

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