As “universidades operacionais”, segundo Chauí 

Elas são a nova faceta do Ensino Superior público do país, afirma a filósofa. em nome da produtividade, elas abandonam a inovação e dilemas universais. E, assim, se apartam da sociedade, com soluções imediatistas para problemas mais empresariais que coletivos

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Por Marilena Chaui, no A Terra é Redonda

1.

A primeira universidade que eu conheci é o que eu chamo de “universidade clássica”, que foi a universidade dos anos 1930 até o começo dos anos 1960. É a universidade de formação, sobretudo, e de reprodução dos seus próprios quadros. No caso da filosofia, isso era nítido, de reproduzir os quadros para o seu próprio trabalho.

A universidade que eu conheci, que eu frequentei, era isso que eu estou chamando de uma universidade clássica e, sob certos aspectos, uma universidade aristocrática, pensada para poucos, mesmo porque não havia um interesse, digamos, profissional, econômico, político, que fosse trazido pela universidade. Então, ela era mesmo um espaço de saber, um espaço de conhecimento e uma coisa aristocrática mesmo. Não é qualquer um que se interessa por isso.

A universidade seguinte que se tentou criar e não foi possível por causa das circunstâncias históricas seria a “universidade crítica”, que é aquela do ano de 1968. É aquela universidade que vai pôr em questão essa universidade clássica e aristocrática, mas vai pôr em questão também a própria sociedade, vai pôr em questão o saber constituído etc. E essa universidade foi a universidade bloqueada pela ditadura.

Então, aí vem a universidade da ditadura, que eu chamo de “universidade funcional”. É a universidade destinada a formar mão de obra para o mercado. E é o instante no qual as empresas começam a investir na universidade, na busca de mão de obra qualificada.

Essa universidade é substituída, na altura dos anos 1980, pelo que eu chamo de “universidade de resultados”. Então, o que é que se quer? Se quer uma universidade que prove para a sociedade que ela é útil. Então, quais são os produtos que essa universidade tem, que são úteis para a sociedade? Então, não é só a questão de formar mão de obra para um mercado dito qualificado, mas é a de mostrar a produção de bens e serviços para a sociedade, não em geral, mas para as camadas mais altas.

Médias e mais altas da sociedade. É essa universidade que termina no correr, a partir dos meados dos anos 1990, e é a que está em vigência até agora, e que é o que eu chamo de “universidade operacional”.

2.

A universidade operacional tem duas características principais. Primeiro, ela não se pensa, como as duas formas anteriores se pensaram a si próprias, como instituições sociais. Portanto, dotadas de regras e de valores internos a ela, formas internas de avaliação e de auto-avaliação e autonomia interna para a sua regulamentação. Essa universidade agora se pensa como uma organização. Theodor Adorno já chamava a atenção para isso.

O que caracteriza uma organização é que ela não é uma instituição social, ela é uma forma de ordenação de trabalhos e tarefas para uma finalidade pré-determinada, cuja finalidade é o sucesso no emprego daquilo que foi obtido. A organização, portanto, está voltada para si própria e para a solução, em curto prazo, de problemas determinados. Ao contrário da instituição, a organização nunca se volta para as questões de universalidade, de amplitude, históricas.

Ela trabalha com aqui e agora com um produto que está sendo preciso fazer. Então, o que essa universidade faz? Essa universidade operacional, organizacional age em função do que se denominou “produtividade”. Mas, o que é que mede a produtividade? É o quanto uma organização realiza, em tempo curto, um objetivo delimitado.

Então, a ideia da ampliação do campo do conhecimento, a ideia da ampliação do campo tecnológico, a ideia da ampliação do acesso, a ideia da ampliação do campo dos conhecimentos desaparece. Existe um problema aqui que precisa ser resolvido aqui e agora, e é função da organização resolver. Ou seja, uma organização trabalha com estratégias para um bom resultado estipulado de fora dela.

Há um agente externo que determina o que é que ele precisa, e a função da organização é realizar isso. E, terminado esse serviço, terminou o trabalho dela. Ao mesmo tempo, ela precisa de recursos, muitos recursos para fazer isso, que são obtidos de duas maneiras, por meio da noção de produtividade.

As agências de fomento à pesquisa estabelecem, a partir dos critérios organizacionais e empresariais, os critérios pelos quais ela financiará as pesquisas e os cursos. E ela estipula, então, o preço que você vai pagar, quantos artigos você vai publicar, em que lugar você vai publicar, quantas teses, é uma coisa quantitativa e vinculada a uma produtividade ininterrupta, da qual, vamos dizer, a prova mais alucinante é o currículo Lattes. Eu tinha uma amiga que dizia, você cospe na esquina e põe no Lattes, cospe na esquina para você ser produtivo.

Bom, ela faz isso e, de outro lado, ela elimina a noção de formação. O trabalho docente é visto como uma correia de transmissão de conhecimentos já estabelecidos. Ela não é um lugar de interrogação, ela não é um lugar de invenção e ela não é, muito menos, um lugar de inovação.

Ela é, pura e simplesmente, a reprodução, a repetição interminável como uma correia de transmissão do que já é sabido e conhecido. Não tem, portanto, formação. E o que é a pesquisa? A pesquisa é aquilo que responde às exigências particulares das organizações.

Então, a universidade operacional, eu digo, ela opera porque ela não age, não tem ação, tem operação. Uma operação atrás da outra. E ela é completamente inconsciente de si própria.

Ela realiza isto como se isto fosse a lei universal e necessária do mundo do conhecimento. O conhecimento desapareceu. Ora, tudo isso está impregnado dos elementos neoliberais.

3.

A universidade operacional, em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo. No caso da USP, e em várias universidades, a presença desse mundo organizacional e desse mundo empresarial foram aparecendo de um modo muito diluído. Eu costumo dar um exemplo de uma coisa que ninguém tinha prestado muita atenção e que é, digamos, um dos primeiros sinais na superfície do que vinha acontecendo.

Houve, no começo do século XXI, em 2001, uma defesa de doutorado na Escola Politécnica, um dos bastiões mais altos da engenharia brasileira. Foi uma tese sobre quais os caminhos mais adequados e lucrativos para a distribuição feita pelos caminhões de Coca-Cola. Isso é típico do que uma empresa precisa.

Então, a tese de doutorado estava a serviço de uma necessidade das fábricas da Coca-Cola de terem trajetos racionais para os seus caminhões. Isso foi uma tese de doutorado. Então, isso dá um pouco a medida do que estou colocando. Mas tem uma coisa muito pior, muito mais grave que está acontecendo agora. É o seguinte:

O início da cidade universitária como locus da universidade se dá com a construção e a instalação, lá no bairro Butantã, do IPT, o Instituto de Pesquisa Tecnológica, o que é de uma importância total. As grandes pesquisas que foram feitas para o país e para o estado de São Paulo e para diferentes ramos da vida social foram feitas pelo IPT, com uma capacidade imensa, semelhante ao que acontecia com o Instituto Butantã.

Então, nós temos dois gigantes que transformam o saber científico em resultados importantes para a sociedade. Nós vimos o que se tentou fazer com o Butantã, que descobriu, fez a primeira vacina do Covid. Quem fez foi o Butantã e que não foi levado a sério e que, sobretudo, foi esmagado pelo mundo empresarial.

Mas foi o Butantã que fez.

O IPT foi privatizado. Fez-se uma parceira na qual, na verdade, ele foi cedido para a Google. Ele é propriedade da Google.

 E o que é mais deprimente é que se trata de um prédio fulgurante, um prédio histórico. Ele marca um momento da arquitetura e um momento fundacional da USP. Agora a Google colocou na frente do prédio, tudo de plástico, arvorezinhas, florzinhas, criancinhas, gatinhos, cachorrinhos, todo mundo contente, todo mundo sorridente, um mundo feliz, que é o mundo da Google, que destruiu o IPT com a privatização.

Então, nós temos uma universidade que demole a noção de formação, porque faz da docência transmissão de conhecimentos já dados, que destrói a noção de pesquisa, porque a pesquisa não é a busca daquilo que não foi pensado ainda e daquilo que precisa e pode ser pensado, mas ela se torna resolução de problemas empresariais.

O processo de privatização que está ocorrendo, que é característico da universidade operacional, invadiu a Universidade de São Paulo. Eu não sei como é que estão as outras universidades públicas no Brasil, mas isto está ocorrendo na USP. Houve, no início deste ano, um congresso para o qual fui convidada, e evidentemente não compareci, sobre as melhores formas de relação entre a universidade e as empresas.

Então, eu diria, temos a universidade funcional, a universidade de resultados e a universidade operacional. A situação na Universidade só irá se modificar se nós, usando a liberdade em sentido espinosano da palavra, tomarmos pé e fizermos alguma coisa.

No momento ela é um desastre.

Marilena Chaui é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Em defesa da educação pública, gratuita e democrática (Autêntica).

Texto estabelecido a partir da entrevista concedida a Daniel Pavan, no site A Terra é Redonda.

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