As riquezas ignoradas do trabalho dos imigrantes

Refugiados, que compõem 3,6% da população mundial, são fonte de sustento para as famílias que ficaram. Relatório aponta: remessas a seus países de origem cresceram 650% desde 2000. Precarizados no Norte, são alívio à pobreza de alguns países do Sul

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Por Vijay Prashad, no Globetrotter, com tradução na Revista Opera

Todos os anos, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) publica o seu Relatório Mundial sobre as Migrações. A maior parte destes relatórios são insignificantes, indicando um aumento secular da migração durante o período do neoliberalismo. À medida que os Estados das regiões mais pobres do mundo se viam sob o ataque do Consenso de Washington (cortes, privatizações e austeridade), e à medida que o emprego se tornava cada vez mais precário, um número cada vez maior de pessoas lançavam-se à estrada em busca de uma forma de sustentar as suas famílias. É por isso que a OIM publicou o seu primeiro relatório sobre as Migrações Mundiais em 2000, quando afirmava que “estima-se que há mais migrantes no mundo do que jamais existiu”. Foi entre 1985 e 1990, segundo os cálculos da OIM, que a taxa de crescimento das migrações mundiais (2,59%) ultrapassou a taxa de crescimento da população mundial (1,7%).

O ataque neoliberal às despesas públicas nos países mais pobres foi um fator determinante da migração internacional. Já em 1990, tinha-se tornado claro que os migrantes eram uma força essencial para garantir a entrada de moeda estrangeira nos seus países através do aumento dos pagamentos de remessas para as suas famílias. Em 2015, as remessas – principalmente da classe trabalhadora internacional – ultrapassaram três vezes o volume da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) e do Investimento Direto Estrangeiro (IDE). A APD é o dinheiro da assistência prestada pelos Estados, enquanto o IDE é o investimento realizado por empresas privadas. Em alguns países, como o México e as Filipinas, as transferências dos emigrantes da classe trabalhadora impediram a falência do Estado.

O relatório deste ano revela que existem cerca de 281 milhões de pessoas em todo o mundo que vivem suas vidas de país em país atrás de oportunidades. Tal número representa 3,6% da população mundial. É o triplo das 84 milhões de pessoas que se deslocavam em 1970, e muito mais do que as 153 milhões de pessoas em 1990. “As tendências globais apontam para mais migrações no futuro”, observa a OIM. Com base em estudos detalhados, a OIM considera que o aumento da migração pode ser atribuído a três fatores: a guerra, a precariedade econômica e as alterações climáticas.

Em primeiro lugar, as pessoas fogem de guerras e, com o aumento dos conflitos bélicos, esta tornou-se uma das principais causas de deslocamento. As guerras não são apenas o resultado de divergências humanas, uma vez que muitos destes problemas seriam sanados se houvesse interesse na paz; os conflitos são exacerbados e transformados em guerra devido à imensa escala do comércio de armas e às pressões dos mercadores da morte para que se renuncie a medidas de paz e se recorra a armamentos cada vez mais sofisticados para resolver disputas. A despesa militar global atinge quase 3 bilhões de dólares, três quartos dos quais são gastos pelos países do Norte Global.Enquanto isso, as empresas de armamento obtiveram lucros colossais de 600 bilhões de dólares em 2022. Dezenas de milhões de pessoas são permanentemente deslocadas devido a este lucro dos mercadores da morte.

Em segundo lugar, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula que cerca de 58% da força de trabalho global – ou 2 bilhões de pessoas – atuam no setor informal. Estas pessoas trabalham sob proteção social mínima e quase sem direitos no ambiente de trabalho. Os dados sobre o desemprego entre os jovens e a precariedade juvenil são impressionantes, e os números na Índia horripilantes. O Centro de Monitoramento da Economia Indiana mostra que os jovens da Índia – com idades entre os 15 e os 24 anos – são “confrontados com um duplo golpe de taxas de participação laboral baixas e em queda e taxas de desemprego chocantemente elevadas. A taxa de desemprego entre os jovens situou-se em 45,4% em 2022-23. Isto é um número alarmantemente seis vezes mais alto do que a taxa de desemprego da Índia de 7,5 por cento”. Muitos dos imigrantes da África Ocidental que tentam a perigosa travessia do Deserto do Saara e do Mar Mediterrâneo fogem das elevadas taxas de precariedade, subemprego e desemprego na região. Um relatório de 2018 do Grupo do Banco Africano de Desenvolvimento mostra que, devido ao ataque à agricultura global, os camponeses mudaram-se das zonas rurais para as cidades para serviços informais de baixa produtividade, de onde decidem partir em busca de melhores salários no Ocidente.

Em terceiro lugar, cada vez mais pessoas são confrontadas com os impactos adversos da catástrofe climática. Em 2015, na reunião de Paris sobre o clima, os líderes de governo concordaram em criar um grupo de trabalho sobre migração climática; três anos mais tarde, em 2018, o Pacto Global da ONU concordou que as pessoas que se deslocam por motivos de degradação climática devem ser protegidas. No entanto, o conceito de “refugiados climáticos” ainda não está estabelecido. Em 2021, um relatório do Banco Mundial calculou que, até 2050, haverá pelo menos 216 milhões de refugiados climáticos.

Riqueza 

O novo relatório da OIM salienta que estes migrantes – muitos dos quais levam vidas extremamente precárias – enviam para casa quantidades cada vez maiores de dinheiro para ajudar as suas famílias cada vez mais desesperadas. “O dinheiro que enviam para casa”, diz o relatório da OIM, “aumentou em impressionantes 650 [por cento] durante o período de 2000 a 2022, passando de 128 bilhões de dólares para 831 bilhões de dólares”. A maioria destas transferências no período recente, segundo os analistas, vão para países de baixo e médio rendimento. Dos 831 bilhões de dólares, por exemplo, 647 bilhões vão para os países mais pobres. Para a maioria destes países, as transferências enviadas para as famílias pelos emigrantes da classe trabalhadora ultrapassam largamente o IDE e a APD em conjunto e constituem uma parte significativa do Produto Interno Bruto (PIB).

Uma série de estudos realizados pelo Banco Mundial revelam dois aspectos importantes sobre os as remessas. Em primeiro lugar, que elas são distribuídas de forma mais homogênea entre as nações mais pobres. As transações de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) favorecem normalmente as maiores economias do Sul Global e destinam-se a setores que nem sempre vão proporcionar empregos ou renda às camadas mais pobres da população. Em segundo lugar, aas pesquisas com os familiares mostram que estas remessas ajudam a reduzir consideravelmente a pobreza nos países de rendimento médio e baixo. Por exemplo, transferências efetuadas por migrantes da classe trabalhadora levaram a uma redução da taxa de pobreza em Gana (em 5%), Bangladesh (em 6%) e em Uganda (em 11%). Países como o México e as Filipinas vêem as suas taxas de pobreza aumentar drasticamente quando as remessas diminuem.

O tratamento dado a estes migrantes, que são cruciais para a redução da pobreza e para a criação de riqueza na sociedade, é escandaloso. São tratados como criminosos e abandonados pelos seus próprios países, que preferem gastar quantias vulgares de dinheiro para atrair investimentos muito menos impactantes através de empresas multinacionais. Os dados mostram que é necessário mudar a perspetiva de classe em relação aos investimentos. As remessas dos migrantes são maiores em volume e mais impactantes para a sociedade do que o “dinheiro quente” que entra e sai dos países e não “escorre” para a sociedade.

Se os migrantes do mundo – todos os 281 milhões – vivessem num mesmo país, formariam o quarto maior país do mundo, depois da Índia (1,4 bilhões), da China (1,4 bilhões) e dos Estados Unidos (339 milhões). No entanto, os migrantes recebem poucas proteções sociais e pouco respeito (uma nova publicação do Fórum Zetkin para a Investigação Social mostra, por exemplo, como a Europa criminaliza os migrantes). Em muitos casos, os seus salários são suprimidos devido à falta de documentação e as suas remessas são fortemente tributadas pelos serviços de transferência internacionais (PayPal, Western Union e Moneygram), que cobram taxas elevadas tanto ao remetente como ao destinatário. Até agora, existem apenas pequenas iniciativas políticas que apoiam os migrantes, mas nenhuma plataforma que una os seus números numa força política poderosa.

Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista indiano. É redator e correspondente principal da Globetrotter. É editor da LeftWord Books e diretor do Tricontinental: Institute for Social Research. Escreveu mais de 20 livros, incluindo The Darker Nations e The Poorer Nations. Os seus últimos livros são Struggle Makes Us Human: Learning from Movements for Socialism e (com Noam Chomsky) The Withdrawal: Iraq, Libya, Afghanistan, and the Fragility of U.S. Power.

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