Apagão de leitos, em meio à segunda onda
Hospitais de campanha saem de cena, e país perde um terço das UTIs diante explosão de casos e mortes da covid. RJ fechou 82% das vagas. Colapso ocorre pela não alocação estratégica de recursos, que poderiam ser incorporados ao SUS
Publicado 18/12/2020 às 15:19
Por Diego Junqueira, na Repórter Brasil
O Brasil desativou um terço dos leitos de UTI criados no SUS
exclusivamente para tratar a covid-19. Em julho, quando houve o pico de
mortes e casos, havia 10.228 leitos para o novo coronavírus na rede
pública. Atualmente, quando o contágio volta a aumentar, são 6.941 –
queda de 32% (ou 3.287 leitos a menos). Quem mais perdeu foram as
regiões Norte e Nordeste, além do Rio de Janeiro.
Os dados são do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES), do Ministério da Saúde, e foram compilados pela Repórter Brasil na segunda-feira (14) – foram consideradas apenas as unidades para pacientes adultos. Os números mostram que, embora o país enfrente nova alta de casos e mortes por covid-19, as condições do sistema público para atender pacientes graves são piores agora do que há cinco meses.
O segundo Estado que mais perdeu UTIs de covid foi o Rio de Janeiro,
onde foram fechadas 82% das vagas. Dos 739 leitos habilitados em julho,
estão em operação apenas 130, segundo o Ministério da Saúde. As 609
vagas fechadas seriam suficientes para cobrir os 259 pacientes com covid
que, segundo a Secretaria de Saúde do RJ, esperam por tratamento
avançado no Estado.
Para se ter uma ideia, o vizinho Espírito Santo, com população quatro
vezes menor que o Rio de Janeiro, tem hoje mais que o dobro de UTIs
dedicadas à covid-19: 281 leitos.
A situação vivida pelo Rio de Janeiro é um símbolo de como os recursos financeiros da pandemia não foram bem aproveitados para melhorar a estrutura do SUS, segundo especialistas ouvidos pela Repórter Brasil. Um dos erros foi priorizar a construção de hospitais de campanha e deixar em segundo plano a ampliação das unidades de saúde permanentes.
“Investir em hospital de campanha não é suficiente para enfrentar as
ondas da doença, porque os leitos não são incorporados ao SUS”, critica
Ana Navarrete, do Conselho Nacional de Saúde, órgão de fiscalização do
Ministério da Saúde. Embora seja uma estratégia válida em situações de
emergência, este tipo de empreendimento é financiado com recursos
provisórios do governo, o que impede a incorporação definitiva na rede
pública por falta de orçamento.
Dez meses após o início da pandemia, a preocupação dos especialistas
agora é com as festas de fim de ano, já que são esperadas mais
internações em um sistema de saúde desfalcado.
O Estado do Rio só não perdeu mais leitos do que o Pará, onde 86% das
UTIs para covid-19 foram fechadas desde julho: passou de 290 para 40.
Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Paraíba também fecharam
mais de 50% das vagas de UTI para covid.
A redução de leitos no país vem ocorrendo sistematicamente desde
julho, mas se acentuou a partir de outubro, justamente quando o número
de casos voltou a subir.
A tendência geral de cortes se inverteu apenas este mês, após o Ministério da Saúde publicar portaria autorizando a abertura
de novas vagas de UTI exclusivas à covid – sinal de que não estamos no
“finalzinho” da pandemia. Nos últimos seis dias, 1.954 novos leitos
foram reabertos, segundo o cadastro do ministério.
O governo fluminense foi procurado, mas não respondeu. Já a
secretaria municipal de saúde do Rio questionou os dados e disse que não
houve fechamento de leitos de UTI. O órgão informou que existem 288
unidades de terapia intensiva no município, mas não detalhou quantas
estão aptas a receber pacientes de covid. Novas unidades foram
solicitadas ao Ministério da Saúde, mas o município aguarda autorização
do governo federal.
Questionada pela Repórter Brasil, a Secretaria de Saúde do Pará informou que foram solicitados 397 novos leitos de UTIs, mas que o governo federal aprovou apenas 40, “pois, segundo o Ministério da Saúde, o Pará tem baixa taxa de ocupação”. O governo paraense disse que os demais leitos estão funcionando com recursos estaduais.
Segundo o Ministério da Saúde, as UTIs exclusivas para covid têm duração de 90 dias, prorrogáveis por períodos de 30 dias, a depender dos pedidos de gestores locais. A pasta informa que a habilitação de novos leitos leva em consideração fatores como a curva de contágio e a taxa de ocupação. O ministério também informou que foram habilitados 114 novos leitos para a cidade do Rio na sexta-feira (11). A pasta disse ainda que gastou R$ 2,9 bilhões com a abertura de 16.248 leitos ao longo de toda a pandemia (veja o posicionamento na íntegra).
Leitos para quem?
Apesar do fechamento de leitos exclusivos para a covid-19 desde
julho, a rede pública criou novos leitos por conta da pandemia e o saldo
é positivo, na comparação com o início do ano. Antes da pandemia,
existiam 15.326 UTIs para adultos no SUS, e 22.725 agora – alta de 48%.
Na rede privada, também houve aumento de unidades intensivas: eram
16.306 em janeiro, contra 30.672 em outubro (alta de 100%).
O pesquisador José Antônio Sestelo, do Grupo de Pesquisa e
Documentação sobre Empresariamento na Saúde da UFRJ, pondera que parte
dos leitos considerados como SUS pertencem a instituições privadas (que
podem ou não atender pelo SUS), o que indica que o número real na rede
pública é mais baixo do que o informado pelo governo.
No caso do Rio de Janeiro, havia 1.195 leitos de UTI para adultos em
janeiro. Agora são 1.298 vagas habilitadas (alta de 8%). O total, porém,
é considerado insuficiente para atender a população fluminense, pois
está abaixo do patamar ideal de ao menos 1 leito de UTI a cada 10 mil
habitantes, segundo cálculo da OMS.
Antes da pandemia, apenas o Paraná alcançava esse patamar ideal no
SUS. Em julho, auge da abertura de novos leitos, 17 Estados atingiram
essa condição. Mas com o fechamento recente de UTIs, esse número caiu
para 13.
Isso significa que hoje 14 Estados não possuem a quantidade mínima de
UTIs no SUS para atender suas populações de forma satisfatória. São 6
da região norte (Amapá, Roraima, Pará, Tocantins, Acre, Amazonas), 7 do
Nordeste (Alagoas, Maranhão, Ceará, Piauí, Bahia, Rio Grande do Norte e
Paraíba) e o Rio de Janeiro.
“Esse acréscimo na quantidade instalada não representou de fato uma
mudança estrutural. Em essência, continuamos na mesma”, lamenta Sestelo.
Uma das explicações é porque boa parte dos leitos de UTI do SUS é
gerida por empresas ou entidades privadas, como as Santas Casas. “São
leitos que podem atender pacientes SUS ou de planos particulares, mas a
decisão depende do dono do leito”, afirma.
A construção de hospitais de campanha seguiu o mesmo modelo, com
gestão privada do sistema. Segundo Sestelo, os empresários “se uniram”
na pandemia para não perder o controle estratégicos sobre os leitos.
“Eles queriam que fossem construídos os hospitais de campanha porque
seriam montados e desmontados e não ficariam como patrimônio do SUS”,
diz.
A Repórter Brasil procurou a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) e aguarda um posicionamento.
Sem coordenação
Para o pesquisador Francisco Braga, da Fiocruz, a nova alta de
internações e mortes está diretamente ligada à forma como foi gerida a
pandemia no Brasil. Ele diz que a flexibilização do isolamento aconteceu
sem que o Ministério da Saúde fosse capaz de dimensionar a propagação
da pandemia.
“Testamos muito pouco e não seguimos as recomendações da vigilância
epidemiológica, que era testar, isolar o cidadão e fazer o rastreamento
de seus contatos. Esse foi o primeiro problema crucial”, disse.
Assim, a redução de leitos aconteceu enquanto o governo federal
estimulava a reabertura econômica, mas sem fazer a lição de casa. O
programa nacional de testagem ficou distante da meta de testar 24
milhões de brasileiros neste ano – foram pouco mais de 7 milhões até 21 de novembro.
Além disso, o governo federal deixou de informar a população sobre a necessidade de isolamento dos casos suspeitos e confirmados da doença. A Repórter Brasil revelou no início do mês que as campanhas de publicidade do Ministério da Saúde ignoraram recomendações importantes para enfrentar a pandemia, como a de evitar aglomerações, e apostaram na reabertura de comércios e até na exaltação do agronegócio.
“O governo considerou que a pandemia tinha passado, veiculou essa
mensagem e a população inclusive acreditou nisso. O repique da doença
era algo previsível, mas chega em condições piores [de estrutura do
SUS]”, afirma Sestelo.
“A falta de coordenação do Ministério da Saúde, a politização do tratamento da pandemia e o negacionismo de autoridades prejudicaram o combate à pandemia. A saúde da população foi colocada em segundo plano”, disse Braga.