Amazônia: Agrotecnologia há um milênio

Novas evidências confirmam: antes dos europeus, um povo indígena desenvolveu, na Bolívia, técnicas arrojadas. Complexo sistema de canais de drenagem, lagoas agrícolas e terraplanagem permitiram amplo cultivo milho na savana – e sem a necessidade de desmatar o bioma

lustração representando como os tanques agrícolas e canais de drenagem provavelmente eram usados pela cultura Casarabe para a agricultura de milho na Amazônia boliviana – Foto: J.P. Guevara / Reprodução Nature / Arte: Simone Gomes
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Nos últimos vinte anos, estudos arqueológicos vêm contribuindo para descortinar, um pouco mais, o passado ainda não revelado da Amazônia antiga e seus habitantes. Uma dessas culturas, a Casarabe, viveu entre 500 e 1400 da Era Comum (E.C.) na região do sudoeste amazônico, mais precisamente em Llanos de Moxos, no departamento de Beni, Bolívia. Ocupando cerca de 4.500 mil quilômetros quadrados, os Casarabe modificaram cuidadosamente a geografia do local com ações de terraplenagem e um complexo assentamento que gerou centenas de montes monumentais – estruturas formadas por plataformas retangulares compostas de quatro camadas e pirâmides cônicas que chegavam a 22 metros de altura.

“Esses sítios são conhecidos desde o século passado, mas começaram a ser escavados mais sistematicamente no final dos anos 1990 por um grupo de alemães e bolivianos. A gente sabe sua cronologia, qual tipo de cerâmica eles produziram, mas uma coisa que não estava clara ainda era o que eles comiam, qual era o padrão de dieta”, conta Eduardo Góes Neves, arqueólogo e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP. 

Ele integra um grupo de pesquisadores que acaba de confirmar a produção intensiva do milho no local, além de um sofisticado sistema de engenharia paisagística para fazer a drenagem da água na cultura do grão em savanas tropicais.  O trabalho foi descrito em um artigo que acaba de ser publicado na revista Nature

O estudo combinou o uso do LiDAR, uma tecnologia de sensoriamento remoto que usa feixes de laser para identificar locais potenciais para escavação, com um programa de perfuração de poços para coleta de sedimentos, datação por radiocarbono e análises de grãos de pólen e fitólitos – estruturas minerais microscópicas feitas de sílica encontradas em tecidos vegetais e que se preservam mesmo após a decomposição da planta.

De acordo com o artigo, o sistema criado pelos Casarabe permitia que algumas áreas úmidas de Savana fossem convertidas em campos drenados adequados para monocultura de milho na estação chuvosa. “Se você for lá agora, vai ver que está tudo alagado”, diz Neves ao Jornal da USP. “Como todo ano oscila, não era possível prever a precipitação, então essa estratégia permitia ‘amortecer’ a variação sazonal muito drástica”.

Já a construção de conjuntos de lagoas agrícolas fornecia um reservatório de água para irrigação em tanques, o que possibilitou a continuação da agricultura de milho durante a estação seca, com até duas colheitas por ano.

“A Savana é drenada muito lentamente no final da estação chuvosa, então as pessoas escavaram canais de drenagem para acelerar esse processo. Mas, quando a estação seca começa, a maior restrição à agricultura se torna a falta de água, então eles escavaram os lagos, que retêm água e permitem que a agricultura continue durante as estações secas também”, completa Umberto Lombardo, geomorfólogo da Universitat Autònoma de Barcelona, na Espanha, e primeiro autor do artigo. 

Lombardo afirma que o cultivo intensivo do milho provavelmente permitiu que a população crescesse. “Podemos assumir com segurança que a densidade populacional da cultura Casarabe era maior do que qualquer outra cultura na Amazônia, talvez exceto o Vale do Upano, no Equador, e o Marajó, no Brasil”.  

A hipótese que se coloca é que a alta disponibilidade de proteína a partir do plantio do milho combinado com outras sementes, como a abóbora e o feijão, está associada à emergência de sociedades hierarquizadas. No entanto, o grupo não encontrou a presença de outros cultivos além do milho. 

“Eu sempre defendi a ideia da policultura na Amazônia. Esses dados, de certo modo, contradizem um pouco as minhas hipóteses e mostram que, ali na Bolívia, tem uma correlação muito forte entre a emergência desse padrão de arquitetura monumental e o cultivo do milho”, diz Neves.

Revolução verde antes de Colombo

O tipo de sistema agrícola necessário para sustentar a cultura Casarabe em seus quase mil anos de existência ainda era desconhecido,  mas o artigo destaca que a construção de canais de drenagem permitiu o cultivo de sedimentos férteis das savanas sazonalmente inundadas na região dos montes monumentais da Amazônia boliviana, sem a necessidade de desmatamento da porção florestal. 

Os pesquisadores não encontraram qualquer evidência de cultivo e fogo nas áreas florestais próximas aos montes monumentais, sugerindo que a agricultura de corte e queima não foi praticada pelos Casarabe. “Em vez disso, essa cultura pré-colombiana provavelmente preservou o recurso florestal espacialmente limitado e, portanto, altamente valioso para outros serviços ecossistêmicos importantes, como lenha, materiais de construção, plantas medicinais e provavelmente agrofloresta”, destacam no artigo.

“A Amazônia é um berço de agrobiodiversidade, muita planta foi cultivada primeiro lá. Isso é importante porque a Savana é que nem o Cerrado, um bioma que pode ser interpretado como um local que não serve para nada. Não acho que o artigo irá resolver o problema do mundo, mas mostra que não houve apenas uma estratégia agrícola e apenas um modo de vida no passado” (Eduardo Neves)

Para os pesquisadores, a combinação desses dois tipos de engenharia paisagística — canais de drenagem e lagoas agrícolas — é exclusiva da região dos montes monumentais, e revela uma “revolução verde pré-colombiana”, além de “uma estratégia agrícola altamente inovadora que permitiu à cultura Casarabe aumentar substancialmente o período de cultivo do milho, além de fornecer acesso fácil a peixes, pássaros e caça”.

Foto aérea mostra vegetação rasteira com ilhas florestais em mosaico com áreas úmidas
A savana Beni é uma importante ecorregião na Bolívia, caracterizada por vastas planícies úmidas – Foto: Sam Beebe – Wikipédia

Cultura Casarabe

A cultura Casarabe recebeu o nome de uma vila próxima aos sítios arqueológicos encontrados por pesquisadores, que identificaram, em 2022, vestígios de assentamentos com mais de 300 hectares. O local contava com grande estrutura de gestão de água, espaços de ocupação humana, cerimonial e de sepultamento. 

Existem registros da presença humana nesta região da Amazônia há dez mil anos, mas não se sabe como a cultura Casarabe começou – nem por que passaram de construtores de pequenos montes para megaestruturas. Também não se sabe quando deixaram de praticar a monocultura. “Se a gente olhar para os dados isotópicos (átomos de um mesmo elemento), nos sepultamentos mais recentes o sinal para o milho vai ficando menos marcado. Então, precisamos entender se esse milho foi abandonado, se eles vão ficando mais policultores e mais florestais”, explica Neves. 

Ele menciona o recente trabalho do arqueólogo brasileiro Tiago Hermenegildo, formado pela USP e atualmente doutorando no Instituto Max Planck, na Alemanha. A pesquisa extraiu isótopos de carbono e nitrogênio dos ossos de 86 restos mortais de humanos de ambos os sexos e idades, identificando o milho como elemento central da dieta Casarabe.  

“Eu, particularmente, acho que essa cultura Casarabe começa com as mudanças na região do Altiplano, a emergência de Tiahuanaco, que é um importante centro político e religioso, próximo ao lago Titicaca, e é uma grande cidade dos Andes”, afirma Neves. “Eu acho que a demanda por comércio de penas, folhas de coca, essas coisas todas devem ter uma conexão com a emergência dessas formas mais centralizadas de organização política aqui na região das terras baixas”.    


O artigo Maize monoculture supported pre-Columbian urbanism in southwestern Amazonia está disponível neste link. A pesquisa é resultado de uma parceria entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Natural Environment Research Council (Nerc), do Reino Unido.

Mais informações: [email protected], com Umberto Lombardo; [email protected], com Eduardo Góes Neves

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