A que ponto chega a obsessão carcerária

No Rio Grande do Sul, contra a Constituiição e a lei, Justiça “prende” dezenas de pessoas em viaturas ou algemados a geradores e bicicletários. Vítimas passam frio e interrompem tratamentos médicos. Muitos respondem por crimes de bagatela

.

Por Nathane do Vale, na Ponte Jornalismo | Imagens: Janaína Marques

No estacionamento em frente ao Palácio da Polícia, em Porto Alegre, carros estacionados se somam com viaturas que não estão só de passagem. Há mais de uma semana presos estão detidos nos veículos policiais por falta de vagas nos presídios do Rio Grande do Sul.

Nas viaturas, de modelo Renault Duster, que têm capacidade para cinco pessoas, os presos são algemados no volante, nas portas e dentro do camburão. Dormindo sentado nas poltronas ou na parte traseira do veículo, sem poder tomar banho, os dias que estão detidos ali variam para cada deles e a cada dia mais vai aumentando. Segundo a Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários), até 25/4, o déficit de vagas nos presídios do estado era de 13 mil.

A guarda é feita por brigadianos (policiais militares, no RS), que não estão autorizados a falar com a reportagem e muito menos dar permissão para qualquer contato com os detidos. Ao passar de um lado de uma viatura mais afastada, um preso fala de dentro da gaiola:

— Tu é da TV? Tem como ligar ‘pra’ minha irmã trazer um casaco? O número é [ele fala o telefone].

É outono e, mesmo com os dias alcançando temperaturas de até 28 graus, as noites gaúchas começam a ficar frias, chegando até 18 graus.

Um policial percebe a tentativa do preso e diz para eu sair de perto: “se der bola, ele passa a tarde todo falando contigo aí”. Outra policial chega e diz para eu me afastar pois “o preso está sob custódia do Estado e não pode falar com ninguém”.

Em outro espaço do estacionamento, a mãe de um dos detidos tenta falar com o filho, mas também é barrada pelos policiais. “É uma situação muito difícil. Meu filho está aqui há três dias, mas sei que vai ficar muito mais porque não tem vaga. Trouxe um moletom e umas meias, porque de noite é frio, mas não deixaram eu entregar. Não ‘tô’ pedindo para ele não pagar pelo o que ele fez, só quero que ele seja tratado com o mínimo de dignidade’, contou a mãe, que preferiu não divulgar o nome.

O problema soma ainda questões de saúde, pois entre eles há pessoas com tuberculose. Elisangêla, irmã de um dos presos, contou à reportagem que o irmão estava fazendo tratamento para tuberculose antes de ser detido, porém não pode continuar por ter sido preso.

Isolado no camburão, Marcos* tosse bastante. Faltando menos de um ano para ser solto, ele estava no regime semiaberto e trabalhava com a irmã em um negócio próprio de funilaria quando ultrapassou o perímetro permitido pela Justiça para fazer uma entrega, conforme relatou Elisângela. “A minha mãe falou com os policiais que ele ‘tava’ fazendo tratamento de tuberculose e que precisava continuar. A situação da saúde dele é grave, temos medo dele morrer assim só porque não pode continuar o tratamento. Não é só ele que ‘tá’ nessa situação, eles ‘tão’ sendo tratados que nem bichos. É desumano demais”.

A situação não é exclusividade da capital gaúcha. Na sexta-feira (26/4), até às 16h, o DPA-RS (Departamento de Polícia Metropolitana) registrava 70 pessoas presas em viaturas e 71 em delegacias em todo o estado.

Problema antigo que se agrava

O problema de superlotação nos presídios e a manutenção de presos detidos por longos períodos em delegacias e viaturas não é recente. Em 2016, o número de presos em delegacias, viaturas e até albergues chegou a 269. No ano seguinte houve até o caso de alguns, na cidade de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, serem algemados em bicicletários.

Em 2016, a Promotoria de Justiça de Controle Externo da Atividade Policial, do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, ajuizou uma ação pública contra o Estado para evitar que os presos permanecessem nas delegacias além do prazo para a realização dos procedimentos judiciários. O MP-RS pediu ainda que a Justiça determinasse o impedimento de recusa a presos em estabelecimentos prisionais próprios, de acordo com a Lei de Execução Penal.

Atualmente, a ação tramita em 1ª grau, mas segundo o Promotor de Justiça do MP-RS, Marcos Centeno, “de forma lenta”. “O juiz juntou todas as ações sobre esse assunto e isso atrapalhou um pouco. Ainda temos uma reclamação do próprio tribunal de que o poder Executivo não está cumprindo a decisão. Agora que assumiu o novo secretário de segurança pública, estou aguardando uma data para marcar uma conversa no gabinete sobre este problema que só vem se agravando”, disse o promotor.

Marcos Centeno destacou as prisões em viaturas e delegacias como ilegais. “É um risco para todos, principalmente para os policiais. O efetivo que cuida dos presos é quase o efetivo de uma brigada inteira. Sem contar que desloca policial, desloca viatura e a população fica sem atendimento”, afirma.

Defensoria presta atendimento

Segundo o defensor público dirigente do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e coordenador do DPE-RS (Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul), Mário Silveira Rosa Rheingantz, uma das prioridades, há alguns anos, é realizar o atendimento desses presos que estão fora dos presídios.

“Há uma inconstitucionalidade nesta situação. Se o Estado vai efetuar uma prisão, no mínimo ele precisa cumprir as normas da [Lei de] Execução Penal. Este detento está num limbo jurídico, ele não existe juridicamente”, aponta. “Afinal, se você está preso, existem regras, mas se você está preso em uma viatura ou delegacia, qual o regulamento que se aplica a isso?”, questiona Rheingantz.

Em inspeção em alguns locais da região metropolitana, na manhã da última quinta-feira (25/4), o defensor contou que há, em algumas delegacias, presos doentes que não estão sendo assistidos. “Em uma delas, havia três presos na gaiola da viatura, sendo que um deles está com tuberculose e o outro era diabético e não estava recebendo insulina”, alerta. “Seja na defesa individual, para esses casos mais específicos, ou na coletiva, estamos atuando tanto com as nossas ações, que estão em tramitação. Há ainda pedidos de habeas corpus e pedidos de revogação de prisão”, explicou o defensor.

Para Rheingantz é necessária uma “reflexão de compreensão da sociedade” sobre o aumento de presídios. “Precisamos pensar se a política de encarceramento no Brasil deva se basear em construir presídios e se é realmente isso que a sociedade quer. Se querem prender mais é necessário entender as consequências disso e avaliar. Já passou da hora para pensarmos sobre isso”.

Situação também prejudica policiais

Segundo o presidente da Ugeirm, sindicato que representa investigadores, escrivães e inspetores da Polícia Civil, Isaac Ortiz, há quatro anos denúncias são feitas sobre os presos mantidos em viaturas, delegacias e até em ônibus.

Em março, a assessoria da Ugeirm registrou duas situações que vão além da detenção em viaturas e celas de delegacias: presos algemados em um micro ônibus e em um transformador de energia, a óleo, extremamente tóxico, no pátio de uma delegacia, em São Leopoldo.

Presos foram flagrados algemados em um transformador a óleo em pátio de uma delegacia em São Leopoldo (RS). | Foto: Arquivo UGEIRM/Sindicato

Para Ortiz, a situação se agrava a cada ano que passa e prejudica também os policiais que cuidam da guarda dos presos. “Primeiro que deixamos de atender a população para cuidar de presos, algo que nem é da nossa função. É insalubre para os policiais terem que conviver com isso, afinal há presos doentes e presos de facções”, explica. “O Rio Grande do Sul deve ser o único estado do mundo em que os presos querem ir para o presídio”, critica.

Presos foram flagrados detidos em camburão, em São Leopoldo | Foto: Arquivo UGEIRM/Sindicato

Outro lado

Procurada pela Ponte, a assessoria de imprensa da Susepe alegou que “cotidianamente trabalha-se para minorar o problema, mas a demanda é imensa. Para isso, fazemos operações emergenciais, de esvaziamento de delegacias. A solução é aumentar mais vagas, com a criação de centros de triagem e novos presídios”. O órgão afirmou ainda que, no momento, há 116 presídios, com mais três em construção: penitenciárias de Bento Gonçalves e Sapucaia do Sul e Cadeia Pública de Alegrete.

Questionada sobre a alimentação dos presos, a pasta afirmou que todas as principais refeições estão sendo fornecidas. Já sobre os detentos que foram impedidos de receberem casacos, o órgão informou que “normalmente, a norma é o recebimento de agasalhos e repasse aos apenados, observados os dias de visita, por questões de segurança”.

Leia Também: