A maior corrida às armas desde a Guerra Fria

Em 2019, despesas militares somaram quase U$ 2 trilhões, recorde desde 1988. EUA lideram, com enorme folga – e seis países da OTAN, sozinhos, gastam tanto quanto o resto do mundo. China é a segunda da lista; Rússia, a quarta

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Por Daniel Heinrich, na DW Brasil

Em 2019, os governos do mundo gastaram mais de 1,9 trilhão de dólares em armamentos, valor mais alto desde 1988, segundo o relatório anual do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo (Sipri) divulgado nesta segunda-feira (27/04).

Comparadas ao ano anterior, as despesas aumentaram 3,6%. Este foi o maior aumento anual das despesas militares desde 2010. A Alemanha também contribuiu para a ampliação. O país incrementou seus gastos militares em 10% em comparação com o ano anterior. Nenhum outro país entre os 15 que mais gastam com armas no mundo registrou um acréscimo percentual tão acentuado. Berlim gastou um total de 49,3 bilhões de dólares em seus armamentos.

“Mesmo antes do governo Trump, já era exercida pressão sobre a Alemanha para que o país aumentasse seus gastos militares. Essa pressão agora está surtindo efeito”, explica o cientista político Max Mutschler, especialista em armamentos do Bonn International Center for Conversion (BICC), um dos principais institutos alemães de pesquisa da paz.

Ele cita também a questão da meta de 2% do PIB visada pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que decidiu, em 2014, durante uma cúpula no País de Gales, que todos os membros da aliança devem se aproximar da meta de gastar 2% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em defesa – dentro de 10 anos. “No entanto, também é preciso dizer que os gastos da Alemanha ainda estão significativamente abaixo desses 2%”, ressalta Mutschler.

Rússia como ameaça

O brasileiro Diego Lopes da Silva, pesquisador do Sipri, diz que o aumento nos gastos com armamentos alemães também se deve ao fato de “a Rússia ser novamente vista como uma ameaça”. A Rússia ocupa o quarto lugar entre as nações que mais gastam com armamentos no mundo, com despesas de 65,1 bilhões de dólares. 

Quando se considera o percentual do PIB, fica evidente o quanto o governo de Moscou se preocupa em expandir sua força bélica em comparação com outras áreas: a soma desembolsada em armamentos representa quase 4% do PIB russo. Em comparação, no ano passado, a Alemanha gastou apenas 1,38% do seu PIB em defesa.

Para Lopes da Silva, está claro que o governo de Berlim não está sozinho em sua avaliação sobre a ameaça da Rússia. Segundo ele, muitos outros governos dos países da Otan também estariam observando essa evolução atentos. 

O relatório do Sipri mostra claramente o resultado: seis dos 15 países que mais gastaram em armamentos são membros da Otan. Além dos Estados Unidos, Alemanha, França e Reino Unido, há também Itália e Canadá. Juntos, todos esses países são responsáveis por quase metade dos gastos militares do mundo. No total, os 29 membros da Otan gastaram mais de 1,03 trilhão de dólares em 2019.

Max Mutschler, do BICC, não se surpreende com os números. “Gastos com armas são baseados cenários worst case (o pior possível)”, diz o especialista. Ele observa que, aos olhos do público, os conflitos econômicos entre países estão frequentemente em primeiro plano, mas que possíveis conflitos militares ainda continuam ocupando o pano de fundo. “No caso de uma situação tensa entre os Estados Unidos e a China, por exemplo, não sabemos se haverá um conflito armado, mas os militares desses dois países planejam para esse caso e são muito bem-sucedidos em seu trabalho de lobby.”

EUA e China na liderança

Os gastos militares das duas superpotências se destacam novamente no relatório deste ano do Sipri. Em 2019, os Estados Unidos gastaram 732 bilhões de dólares, o correspondente a 38% dos gastos globais com armas. Só o aumento em comparação ao ano anterior corresponde à quantia total que a Alemanha gastou em armamentos em 2019. Parte disso é devido ao alto custo de gastos com pessoal. Nos últimos dois anos, as Forças Armadas americanas contrataram cerca de 16 mil novos militares. Além disso, o país está avançando com a modernização de seu programa de armas convencionais e nucleares.

Por outro lado, de acordo com o relatório do Sipri, a alta nas despesas dos EUA também se deve ao comportamento da China. A potência asiática foi a nação que ampliou suas contribuições de maneira mais significativa nos últimos anos e agora perde apenas para os Estados Unidos, com 14% das despesas globais.

Pequim também aumentou seus gastos militares no ano passado. Em 2019, os gastos militares chineses foram de 261 bilhões de dólares, uma alta de mais de 5% em relação a 2018. Pequim vem aumentando continuamente seus gastos militares desde 1994. Só desde 2010, essa ampliação soma 85%. Isso aconteceu quase em sintonia com o crescimento econômico: a parcela das despesas militares em relação ao PIB foi quase sempre de 1,9%.

Índia ultrapassa Arábia Saudita

Além da China, outra grande potência asiática chama atenção. A Índia aumentou os gastos com armas em pouco menos de 7% em 2019, para 71,1 bilhões de dólares. Para o pesquisador do Sipri Siemon Wezeman, isso está relacionado principalmente ao âmbito geopolítico. “A situação tensa com os países vizinhos Paquistão e China é a principal razão pelas quais o governo indiano aumentou seus gastos militares de maneira tão drástica”, sublinha. A potência nuclear superou a Arábia Saudita, passado a ocupar o terceiro lugar no ranking global.

Em comparação com outros países do Oriente Médio, o governo saudita foi o que, de longe, gastou a maior quantia em armamentos. Em 2019, foram 61,9 bilhões de dólares. Porém, em comparação com o ano anterior, os gastos com armas na Arábia Saudita caíram 16%. Tal evolução é surpreendente, de acordo com o relatório do Sipri, já que “a Arábia Saudita continua suas operações militares no Iêmen, e as tensões com o Irã aumentaram”. No ano passado, importantes instalações petrolíferas sauditas foram destruídas em ataques aéreos. Além do governo em Riad, EUA, Alemanha, França e Reino Unido culparam o Irã pelos ataques.

Gastos de países emergentes são muito menores

Os gastos com armamento do resto do mundo empalidecem em comparação com as enormes somas dos big players. Os países da América do Sul, por exemplo, gastaram “apenas” cerca de 53 bilhões de dólares. Só o Brasil é responsável por mais da metade disso.

Outro relatório do próprio Sipri divulgado no mês passado afirmou que, no período entre 2015 e 2019, o Brasil se tornou o maior importador de armas da América do Sul, superando a Venezuela, que liderou a lista de importadores do continente no relatório da entidade enfocando o período entre 2010 e 2014.

Os países do sudeste da Ásia juntos somam cerca de 41 bilhões de dólares, e os países do continente africano, pouco mais de 42 bilhões de dólares em despesas militares.

Na África, um destaque são as fortes flutuações nos gastos na África Subsaariana. Em Uganda, por exemplo, os gastos militares dispararam 52%, enquanto despencaram 22% em Burkina Faso. Para os autores do relatório do Sipri, o comportamento diferente referente a esses gastos depende do fato de um país estar envolvido em conflitos militares diretos ou não.

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