A fuga da Ford – num mundo pós-fordista e ultraprecário

Uberização diminui poder sedutor do automóvel privado. Sucumbiu mesmo beneficiando-se de mão de obra barata, contrarreforma trabalhista e incentivos fiscais. Mas “analistas de mercado” falam em “excesso de impostos e direitos”

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Por Thiago Antônio de Oliveira Sá, na Carta Maior

Na semana passada, a montadora Ford comunicou o fechamento de suas unidades no Brasil. Os “analistas do mercado”, previsíveis como sempre, atribuíram tal fracasso econômico às suas causas-padrão: “a Ford fechou por causa do Risco Brasil” (ou seja: impostos e direitos trabalhistas). Segundo eles, para o desenvolvimento industrial não bastam isenções fiscais e um dos maiores mercados do mundo; é preciso sonegação e trabalho precário, sub-remunerado e desprotegido.

Tais explicações liberais, ortodoxas, ignoram que o faturamento insatisfatório da marca está associado às transformações tecnológicas contemporâneas. Os avanços das plataformas digitais e da internet têm influenciado significativamente os padrões de consumo, a logística, a mobilidade urbana e as relações de produção. O Airbnb embaralha os mercados hoteleiro e imobiliário. Carros surgem instantaneamente em nossa porta para nos levar onde queremos. Assistimos ao que queremos, e não ao que a TV oferece. Mercadorias customizadas nos chegam de qualquer canto do planeta. Uma oferta se anuncia na tela do celular. Os comércios da região estão georreferenciados e avaliados. Cozinhas remotas, algumas das quais informais e provavelmente não fiscalizadas, preparam a comida que nos será trazida por entregadores em troca de fretes miseráveis. Algoritmos e redes sociais farejam vendas na navegação dos usuários da internet, praticamente adivinhando-lhes o pensamento. Flexível, dinâmico, automatizado e desterritorializado.

O padrão produtivo fordista do século XX enfrenta vários desafios, atualmente. Engessado, de produção em massa de bens homogêneos e duráveis, de veículos produzidos para entupir as já congestionadas vias urbanas (exemplo claro da privatização do espaço público). Com seus trabalhadores formais, em tarefas especializadas, às quais dedicam uma vida inteira até a aposentadoria. De classe trabalhadora com identidade definida e organizada em sindicatos fortes e de regime de trabalho disciplinado por meio de jornada e horários regulares. Aquele mundo em que Henry Ford viveu e com o qual contribuiu na organização vertical do trabalho, da produção e da distribuição que caracterizou o capitalismo industrial, dá sinais de estar de partida, como sinaliza sua montadora no Brasil. Com a Ford, está indo também o fordismo. Num Brasil que se desindustrializa e chega ao capitalismo digital, mediado por aplicativos, inteligência artificial, algoritmos e trabalho “uberizado”, não surpreende que aquela montadora se vá, junto com o modo de vida com o qual ela contribuiu para consolidar.

O fordismo claramente sobrevive, de fato. Sua estrutura analógica tenta se adaptar aos desafios digitais. Por que alguém hoje compraria um caro carro de passeio, a não ser pelo status? Os preços inacreditavelmente baixos das corridas da Uber tornam a posse de um veículo inviável. Enquanto fecha suas unidades no Brasil, a Ford investe 580 milhões de dólares na Argentina, mas na produção de veículos utilitários, mais sintonizados com o tempo atual.

No mundo pós-fordista, Uber, Cabify, Airbnb e Ifood valem-se de uma ambigüidade inédita na relação capital/trabalho. Estas empresas alegam não ter funcionários, mas “parceiros”. Os trabalhadores não têm quaisquer direitos, proteção ou garantias, abandonados à própria sorte. Mas têm obrigações e metas. Estima-se que a Uber seja a maior empregadora no Brasil hoje, embora ela alegue não ter empregados. As plataformas dizem mediar a prestação de serviços, eximindo-se de qualquer assistência a seus “colaboradores”. Uma informalidade contratada.

Assim são os novos tempos: plataformas digitais controlam individualmente trabalhadores por meio da coleta online de seus dados, o que pode resultar em punição ou banimento (demitir alguém que não é funcionário?). O tratamento individualizado com a empresa dificulta a mobilização, articulação e associação dos trabalhadores. Uma horizontalidade ilusória. Os Estados nacionais ainda não conseguem lidar com tal realidade transnacional, optando muitas vezes pela conivência porque o trabalho uberizado gera alguma renda enquanto mascara as estatísticas de desemprego. Um carro, uma moto ou mesmo uma bicicleta se convertem em alternativa de sobrevivência. Profissionais agora arcam com os meios de produção, desde a estrutura doméstica do home office (espaço, equipamentos, mobília e eletricidade) ao veículo do motorista de aplicativo (pneus, peças e manutenção).

As novas configurações da era pós-fordista já provocam reações. Alguns países já enfrentam a inadiável tarefa de regulamentação do capitalismo digital e de suas novas configurações do trabalho. Cidades como Berlim, Barcelona e Lisboa impuseram limites ao Airbnb. Na Dinamarca, proibiu-se a Uber até que o ofício se formalizasse (registro, treinamento e vínculo trabalhista). A paralisação dos entregadores de comida no Brasil revela alguma organização da categoria contra a exploração extrema da qual são vítimas. Outros segmentos articulam o desenvolvimento de aplicativos dos próprios trabalhadores. Motoristas da Uber organizam-se em grupos de WhatsApp (a versão pós-fordista-digital das assembléias sindicais!).

O avanço das forças produtivas rumo a um capitalismo pós-fordista e digital não significa emancipação dos trabalhadores, uma sociedade mais colaborativa, mais justa ou sustentável. Pelo contrário: a precariedade, a informalidade, a insegurança e a incerteza se mantêm e se acentuam. Os entregadores de comida enfrentam condições subumanas de exploração. A ideologia neoliberal convence motoristas de aplicativos de que eles são empreendedores, de que têm autonomia e de que seus esforços são proporcionalmente recompensados. Apesar da taxação absurda da plataforma, das jornadas infindáveis, do desgaste do veículo (algumas vezes alugado) e das remunerações pífias.

Se o antagonismo de classes na era da Ford era óbvio, facilmente identificável, dicotômico e fisicamente localizável, agora é amorfo, difuso, abstrato, digital e transnacional. Mas não menos estruturante da desigualdade social. O fordismo parece estar partindo com a Ford. Suas contradições, não.

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