A dupla morte dos 111 presos do Carandiru

Governo Tarcísio extingue programa educativo que contava a história da chacina brutal, ocorrida em 1992. Ação tentava suprir uma lacuna inacreditável: “Espaço Memória” omite a tragédia que mais marcou história do presídio

Massacre do Carandiru (Imagem: Canal ciências criminais)
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Por Catarina Duarte, na Ponte Jornalismo

Desde que foi criado, em 2007, o Espaço Memória Carandiru (EMC), localizado no Parque da Juventude, na zona norte da capital paulista, vinha contando a história daquele que em sua época foi o maior presídio da América Latina omitindo o episódio mais marcante dessa trajetória: o massacre de 111 pessoas na Casa de Detenção do complexo penitenciário do Carandiru, em 2 de outubro de 1992, cometido por policiais militares do governo estadual — o mesmo responsável pelo espaço.

O resgate da história do massacre só ocorreu no ano passado, quando especialistas e egressos do sistema prisional criaram o Programa Educativo Acessível do EMC, financiado pelo Programa de Ação Cultural (Proac). O programa pela primeira vez levou memória do massacre para o Espaço Memória do Carandiru, por meio de rodas de conversa, palestras e roteiros de memória (visitas guiadas), além de garantir atendimento para qualquer pessoa visitar o local de terça-feira a sábado, sem necessidade de agendamento, como era antes.

Nádia, Maurício e Helen lutam para que projeto seja retomado no Espaço Memória Carandiru | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

A memória do massacre do Carandiru no Espaço Memória do Carandiru, contudo, está ameaçada. Segundo seus idealizadores, o projeto foi encerrado na última sexta-feira (6/10) pelo Centro Paula Souza, autarquia vinculada à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação, que é responsável pela Escola Técnica Estadual (Etec) Parque da Juventude, onde está localizado o Espaço Memória Carandiru.

Os responsáveis pelo projeto afirmam que o Centro Paula Souza recusou qualquer proposta para a continuidade da ação, mesmo após eles terem se oferecido para trabalhar voluntariamente, com o fim do financiamento pelo Proac.

“Eu vejo essa atitude como um apagamento da história. Há 31 anos atrás, eles mataram aquelas pessoas, e, agora, 31 anos depois, estão matando a história delas”, diz Maurício Monteiro, sobrevivente da chacina e um dos educadores que tocava o projeto. 

A falta de memória se junta à falta de conclusão do caso na Justiça. Em novembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decretou trânsito em julgado (fim do processo) em dois recursos sobre decisão de corte inferior sobre o massacre do Carandiru, que condenou 74 policiais militares pelo crime.

No mês seguinte, em uma das últimas medidas de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) publicou um decreto de indulto natalino que, na prática, perdoava os autores do massacre, ao indultar policiais condenados por crime praticado há mais de 30 anos.

O indulto de Bolsonaro foi julgado inconstitucional por decisões da ministra Rosa Weber, do STF, e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mesmo assim, até hoje nenhum policial cumpriu pena pelo crime.

O atual secretário de Segurança Pública do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) já disse que é contra a condenação dos autores do massacre do Carandiru e afirma que o Judiciário não conseguiu garantir a individualização das condutas dos envolvidos para garantir um julgamento justo. Em entrevista ao Uol, Derrite chegou a mentir ao dizer que “policiais que nem sequer entraram dentro da Casa de Detenção estavam condenados” — todos os condenados, porém, admitiram que estiveram no presídio e que atiraram.

Programa Educativo Acessível

O Espaço Memória Carandiru está localizado em uma sala do térreo da Etec Parque da Juventude e foi criado em 2007 pelo decreto 52.112/2007, assinado pelo então governador José Serra (PSDB). O texto dizia que o espaço deveria oferecer informações históricas, sociais e culturais sobre o Carandiru, organizadas em exposições permanentes e temporárias, ter programação relacionada à memória do local, voltada para estudantes e estudiosos, e desenvolver trabalho educativo junto à população em geral. Não havia qualquer menção ao massacre no texto do decreto, como também não existe até hoje no site oficial do EMC. Inicialmente alocado na Secretaria de Relações Institucionais, o EMC foi deslocado para a Secretaria do Desenvolvimento e depois para o Centro Paula Souza.

Maurício Monteiro em uma das visitas guiadas feitas pelo projeto | Foto: Helen Baum/Arquivo pessoal

Já o Programa Educativo Acessível do EMC foi implementado no ano passado, financiado pelo Proac, e atuou em duas frentes. A primeira buscou tornar o espaço físico mais acessível e plural, por meio da instalação de piso tátil para facilitar o deslocamento de quem necessitasse, entre outras melhorias. A segunda frente teve como foco o desenvolvimento de atividades relacionadas ao resgate da memória sobre a prisão, as histórias dos prisioneiros e o massacre.

Maurício Monteiro, sobrevivente da chacina de 1992, conta que o Espaço Memória Carandiru nem mencionava o massacre na cronologia que contava a história da Casa de Detenção. “Ela pula de 1970 para 2002. Muita coisa se passou naquele espaço durante esse tempo”, comenta Maurício.

Além de Maurício, atuaram no programa a historiadora Nádia Lima, técnica em museologia, e Helen Baum, egressa do sistema prisional e pós-graduada em Direito Penal, que é educadora. 

Registro de uma das visitas mediadas por Helen| Foto: Nádia Lima/Arquivo pessoal

Eles dizem também que o foco das visitas guiadas, antes do trabalho deles, estava na construção do local do ponto vista arquitetônico e não em questões sobre o cárcere. 

Helen defende que há um desconhecimento geral sobre a vida dentro das prisões. Como educadora do programa, ela enxergou a oportunidade de “contar como é dentro das muralhas”. 

“Para mim era muito importante fazer essa mediação e falar um pouco do abandono das mulheres dentro das penitenciárias. A gente podia contar um pouco de como é a verdadeira história. Recebíamos muitos grupos escolares, geralmente de adolescentes, e podíamos dizer o que nos levou para dentro de uma penitenciária”, comenta Helen. 

Nádia Lima conta que o EMC ficou ligado ao curso de Museologia da Etec e servia como laboratório para que os alunos aprendessem a prática, pesquisa e preservação. Todavia, não são oferecidas vagas para essa formação há pelo menos um ano, diz a historiadora. “Já é o terceiro semestre que não abre vagas para o curso. Quem vai assumir a responsabilidade de gerenciar o acervo do Espaço Memória Carandiru?”, questiona.

“Nossa proposta para a chefia da escola foi que a gente pudesse continuar com esse trabalho mesmo que de forma voluntária. O Espaço Memória Carandiru tem dois decretos de criação, mas em nenhum deles tem uma equipe com o espaço, ou seja, ele fica de portas fechadas”, comenta. 

Preconceito 

No tempo em que atuaram ali, Maurício e Helen relatam que sentiram preconceito por parte dos funcionários da Etec, por serem ex-detentos.

Helen diz que, entre o material exibido no museu, há facas que foram encontradas na prisão. “Um dos funcionários falou que era até perigoso ter facas com a gente. Incomoda demais ter egressos do sistema prisional nesses espaços, falando das suas histórias, das violências sofridas dentro do cárcere”, conta.

Maurício Monteiro, sobrevivente e testemunha do massacre do Carandiru, relata preconceito durante trabalho no EMC | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Abalada e em luto com o fim temporário do programa, Helen diz que o movimento de encerrar a atuação do grupo reflete um projeto de nação vigente. “Nós vivemos em um país do apagamento. As pessoas que estão no poder se  servem da impunidade e para que isso ocorra. Eles precisam que essas memórias sejam apagadas. Incomoda o Estado a gente estar ali”, reflete. 

Maurício endossa a visão de Helen. Ele conta que se sentia estigmatizado e que isso ocorria também com os ex-detentos convidados a falar em rodas de conversa. 

“Como um sentenciado da Casa de Detenção de São Paulo, minha experiência dentro do Espaço Memória, por conta do tratamento da diretoria, de muitos professores e de um funcionário que era o que abria e fechava a porta, me sentia preso lá e coagido”, afirma. 

Outro lado

A Ponte procurou a administração da Etec Parque da Juventude e a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação com os questionamentos trazidos ao longo da reportagem. Em nota, o Centro Paula Souza respondeu que o espaço segue funcionamento por meio de agendamentos.

Veja nota na íntegra

“Instalado no prédio da Etec Parque da Juventude, o Espaço Memória Carandiru segue aberto para visitação do público, mediante agendamento. Em 6 de outubro terminou o Projeto de Implantação do Educativo Acessível, do Programa de Ação Cultural (Proac), realizado em período previamente estabelecido de 12 meses. O fim do projeto não afeta a continuidade das visitas ao local nem provoca qualquer alteração no acervo.”

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